Como Beyoncé dita os termos da sua narrativa

Beyoncé está de regresso à capa da Vogue de Setembro. Só que, desta vez, quem assumiu o controlo não foi a revista, foi ela. Mais política do que nunca, revelou que descende de “um dono de escravos que se apaixonou e se casou com uma escrava”. É Beyoncé a mostrar que é dona da sua história.

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Eduardo Munoz/Reuters

De todas as revistas que redigem perfis de celebridades, talvez nenhuma tenha o estatuto da edição de Setembro da Vogue americana — aquela que é considerada tão influente que deu origem a um documentário. O convite para aparecer na capa recaiu este ano sobre Beyoncé, que inverteu os papéis, dignando-se a dar a cara, mas assegurando o total controlo criativo. Em vez de se sentar para a típica entrevista que acompanha o trabalho fotográfico, ditou na primeira pessoa o seu ponto de vista acerca de alguns temas escolhidos a dedo, como a sua ascendência e a pressão sobre a imagem corporal depois da maternidade.

Já em 2015, quando também foi capa da Vogue de Setembro, a cantora tinha dispensado a entrevista. Beyoncé responde a cada vez menos perguntas, mas isso não significa que tenha menos para dizer. Simplesmente escolhe onde, como e quando fazê-lo — desde a forma como anuncia as gravidezes àquilo que revela sobre a vida pessoal através da música.

Omise’eke Tinsley, professora de Estudos Africanos e de Diáspora Africana na Universidade do Texas, em Austin, e autora de trabalhos como Finding Beyoncé: A Black Femme-inist Journey Through Popular Culture in the U.S. South e Beyoncé in Formation: Remixing Black Feminism, observa que nos últimos dois álbuns a mensagem de Beyoncé tornou-se claramente mais política, centrando-se no legado da cultura afro-americana e na mulher negra. Lemonade — o álbum surpresa de 2016 — está cheio de referências à escravatura no Sul dos Estados Unidos e ao movimento Black Lives Matter.

Para o videoclip de Apeshit — parte do álbum Everything  Is  Love, editado em Junho — Beyoncé e Jay Z fecharam o Louvre, em Paris, o que em si já é uma clara demonstração de poder. A historiadora de arte Alexandra Thomas, citada pela revista Time, interpreta o vídeo — no qual o casal e bailarinas de diferentes tons de pele posam e dançam à frente de peças como a estátua de Vitória de Samotrácia, um retrato de uma mullher negra e Mona Lisa — como uma “intervenção corporal da arte ocidental”.

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Beyoncé responde a cada vez menos perguntas, mas isso não significa que tenha menos para dizer. Simplesmente escolhe onde, como e quando fazê-lo Brian Snyde/Reuters

“Ela comprou a sua liberdade”, comenta a professora. “Trabalhou para chegar a uma posição em que tem uma voz suficientemente potente para as pessoas ouvirem e darem atenção.” Ao mesmo tempo, ressalva, “o clima político nos Estados Unidos mudou desde que [Beyoncé] começou a gravar. É visível a mudança em Beyoncé, mas também no que se passa à sua volta”.

É uma evolução que Juliana Santos Wahlgren, responsável de advocacia política do European Network Against Racism (ENAR), identifica igualmente no percurso da maior parte dos ícones que procuram espoletar algum tipo de mudança social e que “começou com aceitação e legitimidade dentro do seu espaço”. “Beyoncé sempre falou de empoderamento feminino”, aponta. E soube “desenvolver diferentes mensagens para diferentes grupos em diferentes momentos”. “Não é que não tenha falado disso noutras músicas e noutros momentos, mas agora pode ser mais vocal, mais visível, reivindicar uma agenda mais progressista”, acrescenta ao P2.

No texto da Vogue, Beyoncé deixa claro que um dos seus propósitos é abrir portas para jovens artistas negros. “Se as pessoas em posições de poder continuarem a contratar pessoas parecidas consigo, nunca vão ter uma maior compreensão das experiências diferentes das suas.” Por essa razão, deixou-se fotografar pelo jovem Tyler Mitchell, de 23 anos — o primeiro fotógrafo negro a fazer uma capa da Vogue. E é algo que tem feito na sua música também. Exemplos disso: assinou um contrato — através da sua produtora — com as irmãs Chloe e Halle, que descobriu no YouTube, e incluiu na canção Formation a voz da rapper Big Freedia, de Nova Orleães.

O sonho de Beyoncé 

Como uma das entertainers mais ricas do mundo, Beyoncé está longe de representar as dificuldades que enfrentam as mulheres negras de diferentes estatutos socioeconómicos. Ainda assim, a sua música reflecte outras experiências.

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Capa da Vogue de Setembro DR

Omise’eke Tinsley criou uma disciplina na Faculdade do Texas chamada Beyoncé Feminism, Rihanna Womanism, que ganhou atenção da imprensa. “Muitas pessoas acharam que era uma ideia horrível e alguém protestou que a Beyoncé não é uma imagem realista da experiência de vida da mulher negra e que deveria abordar alguém que os estudantes possam ambicionar ser quando crescerem”, lembra.

Não descurando que a cantora tenha o dinheiro e a influência a seu favor, a professora defende: “Beyoncé obriga-nos a imaginar algo além daquilo que temos agora.” Com Lemonade, por exemplo, mostra “um mundo onde as mulheres negras são poderosas” — justapondo imagens referentes à época da escravatura, no Sul. E em Freedom fala de “justiça reprodutiva”, imaginando “como seria se as mulheres negras pudessem criar os filhos num mundo seguro”.

“Torna-se uma imagem de esperança numa altura em que, penso, algumas de nós precisamos”, acrescenta. E exemplifica com o caso da activista negra transgénero CeCe McDonald, que falou na Universidade do Texas sobre como Beyoncé foi importante quando era sem-abrigo em Chicago com outras mulheres negras transgénero. “Era a imagem de que era possível sobreviver e ter sucesso como mulher negra.” “Não acho que essas imagens sejam insignificantes. Podemos retirar poder delas, se o escolhermos fazer”, remata a professora.

Wahlgren reconhece a importância de falar sobre racismo de uma perspectiva construtiva e positiva. “A cultura unifica muitas vozes que não têm uma filiação partidária ou que não concordam em 100% com um partido.”

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Omise’eke Tinsley: “Beyoncé teve de conter-se até ter suficiente poder criativo para conseguir contar a sua própria história” Larry Busacca/PW18/Getty Images for Parkwood Entertainment

Mas até que ponto é que Beyoncé conseguirá mudar formas de pensar? Para Wahlgren a mensagem de Beyoncé é “combustível para uma grande reflexão de sociedade que vai do individual ao estrutural”. Mas é preciso que as pessoas entendam ou estejam dispostas a entender os conceitos fundamentais que enquadram essa mensagem, como o racismo estrutural, ressalva. A forma como a cantora assumiu controlo da edição de Setembro da Vogue, defende Wahlgren, é motivo para aplausos. “Beyoncé fala normalmente dentro de espaços em que as pessoas já estão convencidas [pela sua mensagem]”, aponta. Assim, considera que “ter espaço para falar num ambiente dirigido para uma categoria privilegiada é uma vitória”. 

Ascendência familiar

Entre as revelações que decidiu fazer na Vogue — como a cesariana de emergência a que se submeteu para o nascimento dos gémeos —, Beyoncé divulgou uma descoberta que a própria fez recentemente: “Sou descendente de um dono de escravos que se apaixonou e se casou com uma escrava.” No parágrafo anterior contava ainda que vinha “de uma linhagem de relações homem-mulher mal sucedidas, de abuso de poder e desconfiança”, aludindo possivelmente a um historial de infidelidade.

“Achei que essa secção era interessante por aquilo que não contava”, aponta Omise’eke Tinsley. “Diz que teve de processar a informação, mas não diz o que é que nela é perturbante: será que acha que o mestre estava a abusar do seu poder, será que é a ideia de que nunca poderá saber se [a relação] era consensual, será que é por uma mulher negra ter amado alguém que era seu opressor?”, interroga-se. Ao P2 a professora observa ainda até que ponto esta revelação não é uma reinvenção “da tradição de mulheres negras contarem a verdade selectiva e estrategicamente, de forma a tentar obter a sua liberdade”. Cita o exemplo de duas abolicionistas, Harriet Jacobs e Mary Prince: “Negavam terem sido vítimas de abuso sexual para terem credibilidade, pois procuravam angariar dinheiro para a causa abolicionista. Tinham de negar qualquer relação sexual com os seus donos, se não as pessoas pensariam que eram prostitutas.”

“Beyoncé teve de conter-se até ter suficiente poder criativo para conseguir contar a sua própria história”, comenta Tinsley. E acrescenta: “Seja em Lemonade, seja neste artigo, nunca sei se o que Beyoncé nos está a contar é autobiográfico.” E há uma lição a tirar da forma como dita os termos da sua narrativa: “É importante para que as mulheres negras possam reivindicar esse direito e poder. Nem sempre precisamos de contar as nossas histórias na íntegra.”