Sánchez preparado para tirar Franco do Vale dos Caídos e sarar as feridas da ditadura

Governo do PSOE já tomou a decisão de trasladar os restos mortais de Francisco Franco e reconverter o Vale dos Caídos num “lugar de honra à paz, à democracia e à memória comum”. Falta saber quando e como.

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O novo Governo espanhol do PSOE quer concretizar finalmente uma das propostas mais simbólicas do partido dos últimos anos: sarar as muitas feridas ainda abertas quase 40 anos após o fim da ditadura franquista. Uma das etapas para alcançar esse objectivo é a trasladação dos restos mortais do general Francisco Franco do Vale dos Caídos, o monumento erguido pelo próprio ditador na serra de Guadarrama, a 40 quilómetros de Madrid, e que é ainda visto como o símbolo maior do seu regime.

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O novo Governo espanhol do PSOE quer concretizar finalmente uma das propostas mais simbólicas do partido dos últimos anos: sarar as muitas feridas ainda abertas quase 40 anos após o fim da ditadura franquista. Uma das etapas para alcançar esse objectivo é a trasladação dos restos mortais do general Francisco Franco do Vale dos Caídos, o monumento erguido pelo próprio ditador na serra de Guadarrama, a 40 quilómetros de Madrid, e que é ainda visto como o símbolo maior do seu regime.

Para o fazer, o executivo liderado por Pedro Sánchez terá de ultrapassar algumas barreiras jurídicas e políticas, e tocar num dos pontos mais sensíveis da História recente de Espanha.

Assim que Sánchez subiu ao poder em Junho, depois de ter conduzido uma bem-sucedida moção de censura contra o executivo do PP e de Mariano Rajoy, começou a ser noticiado que a retirada dos restos mortais de Franco iria avançar, informação que foi sendo confirmada por vários responsáveis socialistas. As dúvidas neste momento centram-se no prazo e na forma.

Em entrevista ao El País, publicada no dia 24 de Junho, Sánchez garantia que a exumação dos restos mortais do general e ditador espanhol iria ocorrer de forma “imediata”.

Nos últimos dias, os jornais espanhóis, citando fontes próximas do Governo, noticiaram que a intenção é consumar o processo antes do período de férias que se inicia em Agosto.

Na terça-feira, a vice-presidente do Governo, Carmen Calvo, voltou ao assunto sem referir a questão dos prazos.

“Queremos que o Vale dos Caídos seja um lugar público de honra à paz, à democracia e à memória comum, de encontro de todos os homens e mulheres,” disse Calvo perante uma comissão do Congresso, acrescentando que o executivo vai trabalhar “em todos os níveis administrativos correspondentes” e assegurando que a decisão política está “tomada”.

Qual o caminho?

Calvo aludiu às etapas que o Governo terá de percorrer para alcançar a meta a que se propôs. E para as compreender é preciso recuar ao último executivo socialista, então dirigido por José Luiz Zapatero.

Em 2007, Zapatero fez aprovar a chamada Lei da Memória Histórica que tem como objectivo último “reconhecer e ampliar os direitos a favor de quem sofreu de perseguição ou violência, por razões políticas, ideológicas, ou de crença religiosa, durante a Guerra Civil e a ditadura, promover a sua reparação moral e a recuperação da sua memória pessoal e familiar”.

Com a subida ao poder do PP de Mariano Rajoy, a legislação acabou por ficar parada devido, fundamentalmente, a questões orçamentais.

Agora, o Governo de Sánchez quer reactivar a lei de Zapatero e, inclusivamente, ampliar o seu âmbito.

Em 2011, ainda com o Governo de Zapatero em funções, uma comissão de especialistas, liderada pelo então ministro da Presidência e hoje eurodeputado, Ramón Jáuregui, encarregue de estudar o futuro do Vale dos Caídos, recomendava, entre outras coisas, que os restos mortais de Franco fossem retirados e trasladados para um local escolhido pelos seus familiares, ou para um lugar “digno e mais adequado”.

Este parecer junta-se a outro, das Nações Unidas, que em 2014 também aconselhava Madrid a avançar com a trasladação e a aplicar a Lei da Memória Histórica.

Em Maio de 2017, um mês antes de Sánchez conquistar a liderança do PSOE, os socialistas apresentaram no Congresso uma proposta que não era de lei, mas meramente simbólica, pedindo a aplicação de “forma decidida e urgente” das recomendações dos especialistas espanhóis de 2011. Foi aprovada com 198 votos a favor – entre os quais do PSOE, Podemos e Cidadãos – e 140 abstenções – do PP e da Esquerda Republicana da Catalunha.

Sustentado por este respaldo parlamentar, Sánchez cozinhou todos os documentos anteriores (desde o parecer da comissão de especialistas às recomendações da ONU) para apresentar, em Dezembro do ano passado, um projecto para tornar a Lei da Memória Histórica mais ambiciosa. Entre as medidas propostas estão a criação de uma Comissão de Verdade para investigar os crimes do franquismo; localizar e identificar as vítimas da Guerra Civil e da ditadura; ilegalizar as associações e fundações que defendam o “franquismo, fascismo e nazismo”, como a Fundação Francisco Franco; e reconverter o Vale dos Caídos (há quem defenda a criação de um museu no local em memória das vítimas do franquismo) retirando de lá os restos mortais do ditador.

O então Governo do PP chumbou a proposta com o argumento de que a sua aplicação originaria um peso adicional no Orçamento do Estado de centenas de milhões de euros.

Com o regresso do PSOE ao poder, a proposta está novamente em cima da mesa. Agora o que se estuda é a forma de materializar em lei as intenções socialistas. Ou por via de um projecto de lei, que é da competência do Governo e que tem prioridade no calendário parlamentar, ou através de um decreto de lei real – este tipo de norma é reservado a situações de carácter de urgência, sendo que é o rei que a publica e que assegura o seu cumprimento. O Congresso tem apenas uma palavra a dizer relativamente ao carácter de urgência do conteúdo, e a tramitação da norma é muito mais célere pois não é necessária a discussão parlamentar.

Em qualquer dos casos é relevante a actual composição parlamentar, visto que o PSOE conta com apenas 84 deputados de um total de 350. Porém, se o sentido de voto dos partidos for igual ao de Maio do ano passado, a exumação de Franco será aprovada.

Família é contra

Dois dias depois da morte de Francisco Franco, a 22 de Novembro de 1975, o então rei Juan Carlos, que acabava também de ocupar o trono espanhol, escreveu uma carta ao abade de Vale dos Caídos pedindo que “sua excelência o Chefe de Estado e generalíssimo dos exércitos de Espanha” fosse sepultado na basílica construída no interior do imponente monumento. Concretamente, “no sepulcro destinado para o efeito, sito no presbitério entre o altar maior e o coro da basílica”.

Este facto é relevante para as questões jurídicas sobre a trasladação dos restos mortais de Franco e, especialmente, sobre o papel dos seus descendentes nesta questão. Vários especialistas ouvidos pela comunicação social espanhola têm o entendimento, à semelhança do Governo, de que a família não tem poder para impedir a retirada do ditador. Primeiro, porque a custódia do corpo foi sempre do Estado espanhol. Além disso, o facto de estar enterrado numa basílica que é património nacional, mas gerida por uma abadia beneditina, outorga a competência relativamente ao seu destino à Igreja espanhola – que já garantiu que não se vai envolver nesta situação.

Apesar disso, o Governo socialista tenta, de acordo com que tem sido noticiado, chegar a um entendimento com os descendentes de Franco, que se mantêm contra a exumação.

Em Junho, Francis Franco, neto do ditador, escreveu um texto no jornal La Razón onde fazia um pedido directo ao novo presidente do Governo espanhol: “Não dê razão ao meu avô, e deixe de fazer disparates e faça coisas construtivas e não destrutivas”, acrescentando que, juntamente com os seus seis irmãos, escreveu uma carta à abadia do Vale dos Caídos para que informasse o Vaticano que a família se opõe à trasladação.

A reforçar a posição do Governo está ainda o objectivo de tornar este um monumento de homenagem às vítimas da guerra e da ditadura.

No decreto publicado a 1 de Abril de 1940, dia do primeiro aniversário da vitória nacionalista na Guerra Civil, explicava-se a construção de “um templo grandioso para os nossos mortos, e no qual durante séculos se reze pelos que caíram no caminho de Deus e da Pátria”. “Lugar perene de peregrinação onde a grandeza da natureza ponha um marco digno no campo onde repousam os heróis e os mártires da Cruzada”, diz ainda o decreto redigido por Franco.

Destinado, por isso, aos soldados caídos na Guerra Civil, estão sepultados actualmente no Vale dos Caídos quase 34.000 vítimas do sangrento conflito de ambos os lados, das quais quase metade está por identificar.

Ora, isto sustenta o argumento que o Vale dos Caídos - que se tornou num local de adoração ao ditador dos seus defensores e admiradores - não é lugar de repouso de Franco pois não morreu durante a guerra.

Este pressuposto aplica-se também a José Primo de Rivera, fundador da Falange Espanhola (partido de índole fascista), que se encontra sepultado junto a Franco. O Governo espanhol quer também trasladar os seus restos mortais mas apenas para os mover para um local menos preeminente da basílica. Ou seja, Primo de Rivera permanecerá em Vale dos Caídos pois, ao contrário do ditador, morreu no início da Guerra Civil executado pelos republicanos.

A sociedade espanhola divide-se nesta questão. Segundo uma sondagem da SocioMétrica para o jornal online El Español, 46,3% estão a favor da trasladação e 34,7% estão contra, enquanto cerca de 19% estão indecisos.

A maior vala comum 

Os trabalhos para a construção do Vale dos Caídos começaram em 1940 e terminaram apenas em 1958. Neles estiveram envolvidos, calcula-se, cerca de 20 mil prisioneiros republicanos da Guerra Civil, que podiam trocar o encarceramento por este tipo de trabalhos.

Na cerimónia de inauguração do projecto, que esteve a cabo dos arquitectos Pedro Muguruza e Diego Méndez, Franco destacou o heroísmo dos nacionalistas que morreram na guerra: “A nossa guerra não foi, evidentemente, só mais uma contenda civil, mas uma verdadeira cruzada”. “Jamais na nossa pátria houve mais e maiores exemplos de heroísmo e de santidade, sem uma debilidade, sem uma apostasia, sem uma renúncia. Seria preciso recuar às perseguições romanas contra os cristãos para encontrar algo semelhante”, discursou.

A imponência do monumento tinha como objectivo simbolizar este heroísmo de que falava o ditador, mas também deixar um marco visível do franquismo para as décadas vindouras. A enorme cruz de pedra de 150 metros de altura, com braços que alcançam cerca de 24 metros cada um, erguida sobre a basílica, é exemplo disso.

Com mais de 260 metros de largura, o templo é maior do que a Basílica de São Pedro no Vaticano. No centro, em cima da cripta, encontra-se o altar maior junto ao qual Franco e Primo de Rivera se encontram sepultados um à frente do outro.

As sepulturas dos 33,872 combatentes aí enterrados encontram-se vedadas ao público, tornando o Vale dos Caídos conhecido como “a maior vala comum de Espanha”.