Não te vás Voltaire!

A lição de Voltaire ensina-nos a virtude da tolerância ao serviço da diferença, oxigenada através da liberdade de expressão, do espírito crítico e da rejeição firme do dogmatismo.

Je Suis Charlie exprime com renovada atualidade o desafio que os tempos rasgam no horizonte do quotidiano em que baseamos o nosso modo de vida, posto que só a abertura à diferença o viabilizará alicerçada na tolerância, na liberdade de expressão e no espírito crítico. Isto é, porque vivemos tempos de transição e mudança social, tecnológica e político-jurídica. Assistimos à escalada do nacionalismo, ao encorpar de um ambiente internacional tenso, agravado por lideranças temerárias, radicalismos ou vagas de populismo surgidos em países com vocação de esteios do modo de vida ocidental.

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Je Suis Charlie exprime com renovada atualidade o desafio que os tempos rasgam no horizonte do quotidiano em que baseamos o nosso modo de vida, posto que só a abertura à diferença o viabilizará alicerçada na tolerância, na liberdade de expressão e no espírito crítico. Isto é, porque vivemos tempos de transição e mudança social, tecnológica e político-jurídica. Assistimos à escalada do nacionalismo, ao encorpar de um ambiente internacional tenso, agravado por lideranças temerárias, radicalismos ou vagas de populismo surgidos em países com vocação de esteios do modo de vida ocidental.

Acresce que as liberdades cívicas, em especial a privacidade, enfrentam perigos que ameaçam as instituições das democracias ocidentais, tantas delas em agonia devido a escândalos, nepotismo e corrupção. Isto é tanto mais sensível quanto, como está perante todos, guardiões do ideal democrático como o Direito ou a Liberdade de Imprensa dão sinais de perda de independência e de estarem debilitados como valores civilizacionais, incluindo o direito de defesa. Acrescem ainda os perigos do novo ambiente estratégico, tais como os da information weaponising, de que são exemplos as fake news, o surgimento de ciberataques com poder de destruição massivo, de violar a integridade de processos eleitorais ou o dia-a-dia da civitas.

Outras subtis mudanças no nosso quotidiano respeitam à tirania entreaberta pelo florescimento desregrado da inteligência artificial, ao processo técnico de trabalho intelectual, no qual a font arial ou outra tende a substituir a caligrafia, e o ato de ler no papel, feito da esquerda para a direita, tende a passar para o ecrã, feito na vertical ao sabor de um escovar do dedo, mais ou menos acelerado, navegando countless open sources, num exercício cognitivo para o qual o processo educativo português parece não ter ainda encontrado a dosagem certa na articulação entre memorização, raciocínio e fundamentação, porventura porque o desenvolvimento de espírito crítico, da autoconfiança ou o investimento intelectual nos cidadãos, não constitui ainda uma prioridade da organização social.

As alterações que mencionei contribuem para originar um sentimento geral de insegurança e incerteza e para a difusão de uma angústia de existir que se vai propagando e exprimindo através da construção de muros, preconceitos e fanatismos. Propagação favorecida pela epidemia de yes man, do garbo the winner takes it all, da glorificação do homem no topo e da justificação da acção baseada no argumento “é inquestionável”, visível até na ponta da língua de media de referência. E que a aposição de uma redoma de vidro blindado em redor da Torre Eiffel, 29 anos após a queda do Muro de Berlim, confirma em pleno berço do Iluminismo não ser um impulso fugaz.

Tenho para mim que a diferença é a característica especificadora do Ser e o fundamento legitimador da opção. Elejo o verde por ser verde. E só é verde se for verde. No que o vermelho me auxilia a reconhecer o verde, e a afirmar ou a rejeitar a opção pelo verde. Tudo isto renova Voltaire. É o nome literário de François Marie Arouet. Nasceu em França e nela morreu aos 83 anos, em 1778. Três anos após o terramoto em Lisboa. Homem de muitas amantes, exprimiu de múltiplas formas o seu empenho cívico, em especial através da escrita, inclusive de combate, sendo considerado um dos pensadores que melhor exprimiu o espírito do século XVIII, em particular o movimento intelectual chamado de Iluminismo. Esteve preso na Bastilha, onde adoptou o nome literário e exilou-se em Inglaterra entre 1726 e 1728.

Não arrisco uma síntese ou um rótulo sobre si ou o seu contributo, pois as fronteiras de uma palavra ou qualificação são redutoras. Como referem Dajci Leal e Terezinha Oliveira, Voltaire entendia que os homens são iguais em todos os lugares por serem racionais e que a educação é a base da formação da sociedade. Atribuiu prioridade à instrução do espírito humano e importância decisiva à leitura, posto que entendeu que através dela os homens podem alcançar a razão, o que os torna mais iguais e os guia para o esclarecimento e assim para a estruturação de instituições e sociedades mais civilizadas. Rejeitou posturas sectárias, dogmas e cultivou a tolerância e a liberdade de expressão, como sendo as virtudes que permitem viabilizar as transformações na sociedade e nas instituições. Foi um paladino da justiça contra as perseguições e um crítico feroz da corrupção das instituições.

A grande viragem na sua vida parece ocorrer aos 67 anos, com o caso Jean Calas em 1761. Este Pai protestante agiu no sentido de que a morte do seu filho fosse atribuída a causas naturais, e não ao suicídio, para evitar a sujeição à pena de cruel humilhação pública. Porém, surgiu o boato de que o teria assassinado, e sem julgamento foi preso, torturado e morreu em sequência. A família socorreu-se de Voltaire, que se deu conta de que o caso era mais um entre muitos. A partir de então no lugar da sua bonomia surgiu uma escrita ferina e irónica, numa luta sem quartel aos abusos das instituições que oprimiam a liberdade individual ou que viviam na corrupção e no privilégio, como a Igreja e a Aristocracia.

A história credita-lhe um papel decisivo na queda do regime teocrático e do absolutismo, e Pat Tavares lembra que não se deixou domar pela tentativa de suborno da Mme. de Pompadour. Outros dados definidores da sua persona são o seu mote “Ecrasez l'infâme”(Esmagai o infame), os livros Tratado sobre a Tolerância ou o Cândido, bem como os célebres ditos: “Não estou de acordo com aquilo que dizeis, mas lutarei até ao fim para que vos seja possível dizê-lo”; “É melhor correr o risco de salvar um homem culpado do que condenar um inocente”; “Todo o homem é culpado do bem que não fez”; e “O tédio é o pior de todos os estados”.

Perante uma União Europeia cada vez mais em desencontro consigo própria, muito devido a uma união monetária que priorizou uma arquitetura maligna, e de um presidente dos Estados Unidos perdido no labirinto da negação da razão de ser dos EUA, Voltaire oferece-nos uma inspiradora lição para os desafios que a transformação social em curso nos coloca no horizonte e que inegavelmente exigem abertura à diferença, ao outro.

A lição de Voltaire ensina-nos a virtude da tolerância ao serviço da diferença, oxigenada através da liberdade de expressão, do espírito crítico e da rejeição firme do dogmatismo. Assim como da importância da educação e da prática da leitura como ginásio da razão e de um diálogo mais esclarecido, apto a gerar conhecimento e a originar uma sociedade assente em melhores instituições. Ensina-nos também que há um limite para se deixar ao abandono o inaceitável, e a partir do qual há um imperativo ético de agir. Ensino que é um impulso civilizacional que gosto de sintetizar na divisa: não há longevidade sem integridade... inclusive a do quotidiano em que assenta o nosso modo de vida.