A revolução que chegou antes de 1789

Fez-se na arte, depondo o rocaille e preparando caminho para o neoclássico. No século XVIII a Antiguidade era contemporânea

Terrina em prata dourada atribuída a Paul Charvel (1769-1770) do Serviço Orloff, assim chamado por ter sido encomendado por Catarina da Rússia para o seu amante, o conde Orloff. Secretária, estante e escritório de Pierre Garnier (c. 1762-1765) de linhas direitas pertencente à colecção Gulbenkian. "É raro encontrar as três peças juntas. É um exemplar magnífico", diz a conservadora do Louvre
a Nos salões de Madame Geoffrin, na Rua Saint-Honoré, uma das mais movimentadas do bairro parisiense onde vivia a elite financeira francesa na primeira metade do século XVIII, era possível encontrar alguns dos melhores pintores da época, ver condes e marqueses lerem textos dramáticos de Voltaire ou simplesmente conversar com o enciclopédico Diderot, um dos amigos íntimos da dona da casa.
Música, literatura e artes plásticas juntavam nas soirées de Geoffrin banqueiros e diplomatas, académicos e escritores, arquitectos e aristocratas, entre os quais alguns dos homens de maior influência na corte de Luís XV (reinou entre 1715 e 1774). Em comum tinham o gosto pelas viagens, o hábito do debate de ideias e... o dinheiro.
"Esta elite foi fundamental para a ruptura com os excessos fantasistas do rocaille e a passagem a uma arte mais depurada, assente nos modelos da Antiguidade Clássica com que todos eles conviviam nas suas viagens a Itália ou à Grécia, que nesta época começaram a ser cada vez mais frequentes", diz Marie-Laure de Rochebrune, conservadora do departamento de artes decorativas do Museu do Louvre e comissária da exposição O Gosto "à grega" - Nascimento do Neoclassicismo em França (1750-1775), que pode ser visitada a partir de hoje e até 4 de Maio na Fundação Gulbenkian, em Lisboa.
Mais de 120 obras de pintura, gravura, porcelanas de Sèvres, peças de ourivesaria, mobiliário e bronzes, na sua maioria da colecção do Louvre (há ainda peças de outros museus franceses, do Património Nacional de Espanha e da Gulbenkian), mostram 25 anos de produção artística num período de transição "ainda pouco estudado em França" entre o rocaille e o neoclassicismo.
Para a comissária, também responsável pelo trabalho de investigação ligado a esta exposição, que já foi apresentada no Palácio Real de Madrid (é co-organizada pelo Património Nacional de Espanha), as peças distribuídas pelos três núcleos mostram, ao mesmo tempo, "o compromisso com referências do passado" e o "desejo de um gosto novo" capaz de criar uma ruptura irreversível.
Esta fase de preparação para o neoclassicismo - estilo que se viria a prolongar até meados do século XIX e se estendeu a toda a Europa -, "excitante como todos os períodos de transição pelo debate de ideias que geram", exigiu em França o regresso a um outro momento alto da arte e da literatura: o da corte de Luís XIV (1638-1715), o Rei Sol, bisavô de Luís XV.
"A ideia de regressar à época de ouro não podia deixar de fora Luís XIV, um grande patrono das artes, muito mais atento à pintura ou à música que o seu bisneto", explica Marie-Laure de Rochebrune ao P2, acrescentando que os interesses de Luís XV recaíam, sobretudo, na arquitectura, de que era grande conhecedor e com base na qual "transformou por completo Paris", redesenhando a planta da cidade através da criação de novos bairros e da encomenda de praças, como a actual Praça da Concórdia, e grande edifícios.
O papel da arqueologia
Entre as figuras mais decisivas para a criação e desenvolvimento deste gosto à grega em França estão La Vive de Jully - diplomata, chefe de protocolo de Versalhes e amigo de Madame Geoffrin e Madame de Pompadour (a mais famosa e influente das amantes de Luís XV) -, os duques de Choiseul e Aumont, e o marquês de Marigny.
É precisamente Marigny que abre o primeiro módulo da exposição, dedicado aos precursores do novo estilo. É ele que aos 21 anos faz uma viagem iniciática a Itália com um académico (o abade Le Blanc), um gravador (Cochin) e um arquitecto (Sufflot). O objectivo era enriquecer culturalmente o irmão mais novo da favorita do Rei, Madame de Pompadour, uma das grandes mecenas da época, que acabava de conseguir que o monarca nomeasse Marigny como director-geral dos Edifícios do Rei, uma espécie de ministro da Cultura da época, explica a comissária.
É nesta viagem que Marigny e os que o acompanham ficam definitivamente convencidos de que era preciso romper com o rocaille, diz Rochebrune: "Quando voltaram a França, queriam uma verdadeira revolução e tudo fizeram para que ela acontecesse. Baseava-se na recusa dos excessos decorativos e das formas lúdicas e arredondadas, e na adopção de uma estética de linhas mais direitas, alicerçada no vocabulário da arquitectura, sobretudo grega, e muito voltada para os temas dionisíacos."
Quem percorre a exposição da Gulbenkian, sobretudo o segundo núcleo, encontra inúmeras peças que ilustram a revolução de que fala a conservadora do Louvre. Estão lá as colunas e capitéis jónicos, evocados em edifícios, gravuras e quadros; os sátiros, carneiros e bacantes de Dionísio em terrinas, relógios e vasos; os móveis mais sóbrios de inspiração oriental de ebanistas como René Dubois.
Este regresso à Grécia e a Roma foi largamente alimentado pelas escavações arqueológicas em Herculano e Pompeia, as cidades sepultadas pelo Vesúvio em 79. "Todos os dias eram descobertos novos artefactos e frescos, cerâmicas deslumbrantes, irresistíveis. Os originais que lembravam que o apogeu era clássico estavam ali - eram os modelos a seguir."
Sem fronteiras
Os bronzes e pratas douradas, as cerâmicas com serpentes e grinaldas, o mobiliário que associa escultura e pintura, e as tapeçarias inspiradas em gravura são também característicos deste gosto à grega que, de certa forma, é resumido no último módulo da exposição, organizado em torno de Madame du Barry, última amante de Luís XV, e do seu Pavilhão de Música do Palácio de Louveciennes, um presente que o Rei lhe ofereceu, depois de a ter casado com o conde Du Barry para lhe dar um estatuto social aceitável que permitisse tê-la na corte ao seu lado.
"Neste período não há fronteiras entre as artes", diz a comissária. "Os arquitectos criam móveis e gravam, os pintores fazem desenhos para tapetes e móveis, os escultores trabalham em mobiliário. A divisão recupera-se, infelizmente, no século seguinte." O Pavilhão da Música faz um resumo deste novo gosto, porque, acrescenta Rochebrune, arquitectonicamente é muito influenciado pelos cânones clássicos e, na decoração, inclui uma série de peças encomendadas para os seus quatro salões - era exclusivamente para festas e recepções - que respeitam este "desejo de regresso ao vocabulário do passado" e misturam diversas artes. "Du Barry marca mesmo o apogeu deste novo gosto. É uma mecenas extraordinária."
Du Barry, decapitada durante a Revolução Francesa, "não era tão esperta como Pompadour, mas era linda, charmosa, uma anfitriã encantadora e atenta". Neste módulo da exposição há uma maqueta do pavilhão, que ainda existe, embora muito alterado, um retrato de Du Barry da colecção Gulbenkian e peças de mobiliário, esculturas e tapeçarias que pertenceram à favorita do Rei ou muito semelhantes às que tinha nas casas que o monarca lhe ofereceu. Está ali uma época. Um gosto.

O Gosto "à grega" - Nascimento do Neoclassicismo em França (1750-1775)

LISBOA Fundação Gulbenkian. Av. de Berna. De 15 de Fevereiro a 4 de Maio. De 3ª a dom., das 10h às 18h. Tel.: 217823000. Bilhetes a 4 euros

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