A mulher invisível

Uma via sacra por uma Rússia moderna mas também eterna, percorrida por uma mulher que ninguém quer ver.

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“Há mais alguém que me possa ajudar?”, pergunta ela já perto do fim do calvário. “Deus nosso senhor”, vem a resposta, e não sabemos se a afirmação é irónica ou apenas desesperada. Pode até dar-se o caso das duas coisas — é essa a sensação com que saímos de quase duas horas e meia de projecção onde Sergei Loznitsa nos encafua no pesadelo de uma sociedade desintegrada, regida pelo caos e pela lei do mais forte.

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“Há mais alguém que me possa ajudar?”, pergunta ela já perto do fim do calvário. “Deus nosso senhor”, vem a resposta, e não sabemos se a afirmação é irónica ou apenas desesperada. Pode até dar-se o caso das duas coisas — é essa a sensação com que saímos de quase duas horas e meia de projecção onde Sergei Loznitsa nos encafua no pesadelo de uma sociedade desintegrada, regida pelo caos e pela lei do mais forte.

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A sociedade é a Rússia moderna, e Uma Mulher Doce faz dobradinha com A Minha Alegria (2010), a primeira longa de ficção do bielorusso, que já nos mergulhava numa viagem sem regresso à escuridão da alma russa.

Falámos de calvário e não é acaso, há nesta história qualquer coisa de via sacra em direcção à aniquilação, de última batalha contra as forças do mal. Foi por aí que nos lembrámos do Leviatã de Andrei Zvyagintsev (2014), outro retrato impiedoso da corrupção que engole um homem honesto. Aqui é uma mulher, que ao receber devolvido um pacote que enviou ao marido na prisão decide ir à Sibéria saber notícias. Tal como o camionista de A Minha Alegria, tal como o Kolya de Leviatã, também esta “mulher doce” será um carneiro sacrificial atirado aos lobos, à medida que se vê cada vez mais atolada na desintegração das regras sociais. Ela é a mulher invisível, vista pelos outros como vítima, prostituta, inimiga, idiota útil, mas nunca como aquilo que é — uma mulher que apenas quer respostas mas cujas perguntas ninguém ouve.

Vasilina Makovtseva, de presença masoquistamente crística, é sempre o ponto de referência nos “quadros vivos” por onde Loznitsa a faz passar com o seu formalismo permanentemente atento ao pormenor, fotografados com um requinte quase pictural pelo cúmplice de sempre Oleg Mutu. Continuamos a preferir o Loznitsa documentarista, mesmo que reencontremos em Uma Mulher Doce o olhar desapaixonado, de um desespero quase niilista, do observador desencantado do mundo em que vive; a alegoria como a pratica aqui, a meio caminho entre a sátira picaresca e o simbolismo grotesco, torna-se cansativa numa duração tão longa. Mas há flashes extraordinários pelo meio, e sobretudo aquele espantoso plano final da estação de comboios que se encarrega de relançar o tom do filme: talvez nem mesmo Deus nosso senhor consiga ajudar a mulher doce.