A acção solitária do poema

Poesia Reunida traz para o centro da poesia portuguesa contemporânea uma obra obrigatória relativamente à qual houve uma grande distracção crítica.

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Manuel Resende: uma poesia da hospitalidade, da homenagem, da consciência de que faz parte de uma cadeia de transmissão DANIEL ROCHA

Este poeta que tem o nome de Manuel Resende e que acaba de ver a sua obra reunida só teve existência, até agora, para um círculo muito restrito de leitores (como tradutor, sim, era conhecido, e a tradução da poesia de Kaváfis foi o seu último grande feito). E ainda em menor número eram aqueles que puderam perceber o que este volume da Poesia Reunida vem revelar: que se trata de um lugar obrigatório da poesia portuguesa contemporânea, onde nos devemos deter.

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Este poeta que tem o nome de Manuel Resende e que acaba de ver a sua obra reunida só teve existência, até agora, para um círculo muito restrito de leitores (como tradutor, sim, era conhecido, e a tradução da poesia de Kaváfis foi o seu último grande feito). E ainda em menor número eram aqueles que puderam perceber o que este volume da Poesia Reunida vem revelar: que se trata de um lugar obrigatório da poesia portuguesa contemporânea, onde nos devemos deter.

Ao todo, são pouco mais de 200 páginas, e nelas cabem os três livros que Manuel Resende publicou: Natureza Morta com Desodorizante (Gota de Água e Imprensa nacional-Casa da Moeda, 1983), Em Qualquer Lugar (& etc., 1998), O Mundo Clamoroso, Ainda (Angelus Novus, 2004). Há ainda uma dezena e meia de “inéditos e esparsos”, alguns dos quais (a maior parte) são peças de um jogo heteronímico: surgem agrupados como Poemas de Mika Ahtisaari, poeta que é apresentado como tendo “nascido em 1960 em Tampere, Finlândia”, e chegado a Portugal “no fim da adolescência”, vindo mais tarde a pedir a Manuel Resende “que lhe arredondasse o português perro dos poemas que ia produzindo”: “No final, teve esta frase: ‘São teus’”.

Em boa verdade, está longe de ser a única dádiva. Há muitas outras, de poetas que têm uma existência nada fictícia. E isso está bem assinalado nesta obra e dita-lhe o seu ethos: ela atravessa e incorpora, com uma atitude que não pode ser apreendida apenas a partir dos conceitos de intertextualidade e citação, nomes e lugares obrigatórios da poesia do século XX. É uma poesia da hospitalidade, da homenagem, da consciência de que faz parte de uma cadeia de transmissão. Às vezes, a dádiva pode ser uma cerimónia com os seus intervenientes explícitos e assumida perante o leitor, como neste poema chamado Plágio, da série heteronímica, em que o poeta é ao mesmo tempo tradutor: “Oguno sta solo sul cuore della terra/ trafitto di um raggio di sole/ ed è súbito sera./ Salvatore Quasimodo// Cada qual está só no coração da terra/ trespassado por um raio de sol/ e súbito é noite./ Salvatore Quasimodo// Ninguém está só no chão do mundo/ Sempre o acompanha o corpo/ que se lhe amputou/ ao nascer/ da mãe/ Mika Ahtisaari”. Certo é que a poesia de Manuel Resende não pode ser identificada por uma única filiação nem por uma genealogia traçada em linha recta. Se na poesia portuguesa podemos designar Alexandre O’Neill como um dos seus familiares (a quem presta homenagem no poema Alexandre, o Grande), a comparência dos grandes nomes da poesia europeia na sua poesia dá-lhe uma tonalidade singular: não é erudição, é um sentido de responsabilidade; não é o jogo de um poeta culto, é uma inclinação obrigatória, inevitável.

Há um poema longo do seu primeiro livro que se chama Relatório. Importa dizer, antes de chegar ao que nele gostaria de apontar, que há muitos poemas longos neste livro de poesia reunida e que Manuel Resende revela um domínio notável dessa forma poética, não deixando que afrouxe a tensão dos versos, de modo a não sucumbir a um discursivismo declarativo ou a uma dimensão meramente gnómica. Começa assim, esse poema: “desembarcamos onde/ guincham silvos de carris no fim da linha/ fim do mundo onde saímos no túnel surdo/ como mutantes ecoam zunem passos já/ no patamar de azulejos onde nos escoamos/ pelas escadas que nos abafam a arfar a arder de asfalto/ em plena cara no pleno ar onde desembocamos”. É quase um poema épico, heróico, de exaltação da acção colectiva, da consciência política e do sentido histórico: “O nosso século foi o século da esperança/ E cada morto caído é irredimível”, lê-se já no final. Este poema atravessa o coração de um tempo em que a esperança começa a dar lugar ao desencanto. É um poema que ousa pôr em cena um sujeito colectivo, um “nós” a quem o “eu” cede todos os direitos. É isso mesmo que se diz na segunda parte do poema (constituído por cinco partes), que começa assim. “Eu é um pseudónimo de nós/ e nós um pseudónimo disto tudo”. Ora, o primado do “nós” não é apenas uma prerrogativa deste poema heróico, é uma característica de enorme alcance que define  bem a poesia de Manuel Resende: uma poesia tão comprometida com os sobressaltos e as contingências da História que só com um grande pudor e muita parcimónia aceita a declinação e a asserção subjectivas.

Encontramos, em vários momentos, poemas que se chamam Arte Poética, mas não se trata verdadeiramente de um “manual” de regras e ideias de ordem estritamente literária. Trata-se antes de uma arte crítica que coloca o poema a desvelar as máscaras do tempo, sobredeterminado por uma teoria da História. Não é aliás para servir de ornamento que aparece logo no primeiro livro, em epígrafe, uma tradução (da autoria do próprio Manuel Resende) da nona tese de Sobre a Filosofia da História, de Walter Benjamin, aquela em que se fala do anjo voltado para o passado e arrastado para o futuro por um vendaval que acumula aos seus pés uma pilha de destroços. Se entretanto o “anjo da História” se tornou uma figura de evocação e invocação muito frequentes, em 1983, por cá, era ainda coisa distante. Há de facto uma teoria da História que informa e determina esta poesia — uma teoria da catástrofe, da violência, da guerra. Um texto em prosa chamado Apocalipse, a encerrar o terceiro livro, é um exemplo muito eloquente. Apreendemos esta visão da História em poemas onde fala de Auschwitz, do gueto de Varsóvia, de Srebrenica, Dubrovnik, etc. Não se trata de transportar para o poema todo o peso do mundo e fazer dos leitores reféns de um sentimento trágico. Nem por um momento a poesia de Manuel Resende se deixa atrair para esse lugar. É verdade que ela se detém com frequência em lugares e tempos trágicos. Mas fá-lo com uma elaboração que está longe de qualquer monologismo histórico-ideológico. Além disso, toda a gravidade encontra aqui um contraponto no humor, na ironia, no jogo inocente das palavras, na intimidade com as coisas da vida e da poesia. Muito produtiva e libertadora é esta aliança da graciosidade com o trágico, do quotidiano trivial com as profundezas da História e da cultura, da singularidade e do concreto com o abstracto e a ideia. Tudo isto se encontra no último poema do livro, Comendo uma Cereja, que pode ser lido como a súmula da arte poética, tal como Manuel Resende a inventa na sua poesia: “Como uma cereja e/ Comendo a cereja, o meu corpo/ Pede as cerejas todas do mundo,/ Mas não posso comer as cerejas todas do mundo,/ Pois faltam-me as cerejas que comeram/ Sócrates, Hipasos de Metaponto/ E os velhos camponeses da Gália,/ Ou até os escravos de Roma./ Assim, como uma cereja/ E deixo o gosto de a comer/ Ficar em mim pelo gosto/ De todas as cerejas que possa haver./ Uma cereja como todas as cerejas./ Uma cereja por todas as cerejas”.