Nunca se sabe com quantos alunos começa o ano lectivo na Zebreira

Na Escola Básica da Zebreira, em Idanha-a-Nova, 83% dos alunos são de etnia cigana, mas muitos não ficam o ano todo. As famílias só encontram trabalho (sazonal) em Espanha. E levam os filhos. Neste domingo assinala-se o Dia Internacional das Pessoas Ciganas. Segundo de uma série de trabalhos sobre a escolaridade obrigatória e estas comunidades.

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Selene tem 12 anos e frequenta o 4.º ano. Não tarda, deverá trocar esta que é a Escola Básica da Zebreira, a uns minutos de casa, pela Escola Básica e Secundária José Silvestre Ribeiro, no centro de Idanha-a-Nova, a 23 quilómetros. “Eu quero ir, mas tenho medo”, diz ela, abrindo muito os olhos. “Dizem que lá batem!” O irmão mais velho está lá. “Ele diz: ‘Se passares, não tomo conta de ti. Não passes!’”

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Selene tem 12 anos e frequenta o 4.º ano. Não tarda, deverá trocar esta que é a Escola Básica da Zebreira, a uns minutos de casa, pela Escola Básica e Secundária José Silvestre Ribeiro, no centro de Idanha-a-Nova, a 23 quilómetros. “Eu quero ir, mas tenho medo”, diz ela, abrindo muito os olhos. “Dizem que lá batem!” O irmão mais velho está lá. “Ele diz: ‘Se passares, não tomo conta de ti. Não passes!’”

A professora Filipa Catana sorri ao ouvir esta conversa. “É o que lhes dizem em casa para não quererem ir, para não se esforçarem.” Nem sabe quantas mães ou pais já lhe vieram pedir que chumbasse as suas crianças. Acontece com rapazes, mas, sobretudo, com raparigas. “Não passe a menina para a escola lá de cima. É pequena. Não tem cabeça para ir para a escola lá de cima. Se vai, perde-se”, dizem-lhe.

Quem não quer passar encontra estratégias para levar a sua avante, como fez o irmão mais velho de Selene, que conta 14 anos e só no início deste ano lectivo se tornou aluno da Escola José Silvestre Ribeiro (a idade “normal” para entrar no 5.º ano é dez anos). “Ele entrou muito tarde na escola”, dirá o pai, Nelson Montolha, daqui a pouco, quando as aulas terminarem e o PÚBLICO lhe bater à porta. “A nossa mente era muito fechada. Era o nosso primeiro filho. Queríamos que estivesse sempre ao pé de nós. Logo: ia para a Idanha, tinha de apanhar o autocarro. Nós tínhamos medo disso, então pedíamos às professores para ele não passar. Elas diziam: ‘Se o garoto estiver bem, tem de passar.’ E nós fazíamos tudo por tudo para que ele reprovasse.”

Com Senele e os irmãos mais novos, de seis e cinco anos, já não é bem assim. “Já vimos que a vida é diferente”, explicará o pai. Ela frequentou o pré-escolar e eles estão a fazê-lo. Esta manhã, enquanto ela faz exercícios sobre o Dia Mundial da Água e outros assuntos, eles sentam-se numa manta a ouvir histórias, começam uma horta, perdem-se nas cantorias acompanhadas à guitarra pelo educador.

Os pais acham que há um certo grau de vigilância que é possível manter aqui. “A gente está à vontade porque eles estão perto”, há-de justificar Nelson. Indo para a vila, a sensação de controlo desaparece. “A mente já não trabalha da mesma forma”, dirá. Que perigos espreitarão? “Darem-lhe um cigarro ou outras coisas. A gente tem medo”, achegará a mulher, Sara.

Nada parece ameaçador nesta aldeia a não ser a severidade do clima. O casario térreo, caiado de branco, interrompe a planura. Junto ao posto da GNR, a velha escola primária com a sua fachada de azulejos. Neste momento, são ciganas 83% das crianças que aqui frequentam o pré-escolar e o 1.º ciclo. Não se pense que o Agrupamento de Escolas de Idanha-a-Nova decidiu juntar as crianças ciganas. Situado entre as terras altas da Beira Interior e as planícies do Alentejo, o concelho é o quarto mais extenso e o terceiro mais envelhecido do país. A população não cigana está a sair há décadas — para as cidades mais próximas, para o litoral, para o estrangeiro. E a pequena população cigana ficou e multiplicou-se aqui.

Há uma turma de pré-escolar e quatro turmas de 1.º ciclo. Na turma de Selene, a maior parte tem 12, 13, 14 anos. “Se têm esta idade e estão nesta escola é por não saberem”, salienta a professora, num misto de desgosto e paciência. E se não sabem não é só por falta de motivação, de esforço ou de estímulo em casa.

Trabalho sazonal

Mesmo ali ao lado, na Estremadura, há 22 mil hectares dedicados à produção de fruta. A época começa em Abril, com a remoção de flores para evitar excesso de produção. De Maio a Setembro, vem a apanha, o embalo, a distribuição. Há quem lá vá fazer um dinheirito. A maior parte vai para mais longe, para La Rioja. Tantas mãos são precisas aí, de Maio a Julho, para tirar folhas e ramos. Entra Setembro e começam as vindimas.

Nem sempre foi assim. Nelson Montolha vinha de Castelo Branco a Idanha-a-Nova trabalhar na exploração de tabaco. Foi numa dessas campanhas que conheceu a mulher. “No princípio, havia muito trabalho aqui. Isso acabou. Tornou-se complicado para nós. Aquilo que sabemos fazer, aqui, na nossa freguesia, não há. Onde é que a gente se consegue orientar? Em Espanha.” E as crianças não podem ficar sozinhas na casa que construiu com um impulso da câmara, algum dinheiro que tem conseguido poupar e o seu trabalho, porque em novo foi “trolha”.

Estão 23 crianças matriculadas no pré-escolar e 72 no 1.º ciclo, mas nunca se sabe com quantas vai arrancar o ano lectivo. Vão chegando. Antes de o ano lectivo acabar, começam a desaparecer. “As famílias têm de se deslocar para trabalhar”, compreende o director do agrupamento, António Salgueiro. “O trabalho faz-se nos campos. Terão dificuldade em ter no outro lado uma escola para frequentar. É uma luta que vamos travando.” Algumas famílias já vão à escola dizer para onde vão para que se trate da transferência. “São ainda casos pontuais, mas para nós é um avanço muito grande.”

Grande parte continua a ir, simplesmente. Só quando a polícia entra em acção, a família começa a tratar dos documentos para os miúdos terem escola. Mas acontece, do outro lado, já não haver vaga, a escola ficar demasiado fora de mão ou a colaboração do estudante em falta dar jeito à família para cuidar de irmãos ou sobrinhos mais novos.

Chumbar por faltas não se afigura uma solução. “Tem de haver aqui flexibilidade no sentido de assegurar o direito à escola até aos 18 anos”, defende o director. “Não podemos dificultar ainda mais a vida destas pessoas”, corrobora a psicóloga Raquel Ribeiro. “Se colocarmos barreiras, vamos perdê-las.”

Filipa Catana e os colegas têm de trabalhar com aquelas crianças de forma diferenciada para as ajudar a recuperar. E isso, segundo o director, é um caminho que a escola quer aprofundar.

Em regime de experiência pedagógica, arrancou no início do ano lectivo o projecto de autonomia e flexibilidade curricular dos ensinos básico e secundário. E o agrupamento de Idanha-a-Nova faz parte da experiência. Está a organizar o ensino em torno de competências e a definir as aprendizagens essenciais. Para captar estes alunos, a escola está a preparar-se para introduzir elementos da cultura cigana e novas tecnologias no 2.º e 3.º ciclo. A Comunidade Intermunicipal da Beira Baixa já contratou uma mediadora. “Pode dar um novo impulso”, diz o director. A experiência mostra que um mediador cigano, com um trabalho continuado, pode ajudar a criar a confiança necessária para as famílias deixarem os rapazes e, sobretudo, as raparigas continuar a estudar. Na turma de Selene, só há duas meninas não ciganas. Qual é a diferença entre elas e o resto da turma? “Nenhuma”, grita um rapaz. “Somos todos de carne e osso!”, sobrepõe-se outro. “A linguagem é diferente”, grita outro. E logo dois se põem a falar de uma forma mais cantada e explodem numa gargalhada.

Selene olha para Matilde, de nove anos, com quem partilha a carteira da frente. “Não falo como ela”, começa por dizer. “Não vou estudar tanto como ela”, continua. Porquê? “Não sei, não há dinheiro”, responde. “Não é só dinheiro, também é vontade”, corrige um rapaz. “Vocês casam-se aos 30 e nós não!”, diz ela, triunfante. As vozes sobrepõem-se. “Alguns casam-se aos 15 ou 16. Dizem que vão para a Idanha e logo na Idanha se casam”, ouve-se gritar Selene. “Se quiserem!”, volta a corrigir o mesmo rapaz.

Sem dar por isso, as crianças enumeram os factores clássicos do abandono: a falta de expectativas, a centralidade do casamento, as dificuldades económicas. E não dizem uma palavra sobre a forma como a escola funciona. Ninguém propõe, por exemplo, um ajuste do calendário escolar, com aulas no Verão, como a direcção já pediu e a hierarquia não autorizou. Nem ensino à distância, algo que a introdução de novas tecnologias poderá possibilitar. Apesar de tudo, todos atribuem um sentido prático à escola. “É importante vir à escola para aprender a ler, para tirar algum curso, para no dia de amanhã trabalhar, tirar a carta”, diz José, de 12 anos.

Cada um tem os seus sonhos. Fernanda gostaria de ser professora, Joel, futebolista. Susana, modelo. Paula, advogada. José gostaria de ter uma quinta com cavalos e outros animais. E Selene também tem sonhos para além de se casar com uns sapatos de salto muito alto, quando tiver para aí uns 20 anos. “Eu gostaria de tirar a carta e de fazer unhas de gel.”

Talvez o pai de Selene saiba embalar esse sonho. “Não quero que os meus filhos sejam como eu. Quero que estudem e consigam um emprego, para que possam sobreviver melhor do que eu. Eu não estudei.” Fez o 6.º ano e a mulher o 2.º. Sobre Selene, dirá apenas: “Quando tiver de ir para a Idanha, vai sem problema. Já está lá o irmão. E a gente está tranquila.”