A escola pode ser um lugar onde as crianças ciganas se sentem protegidas

Na Escola Básica Quinta do Simão, em Aveiro, 88% dos alunos são de etnia cigana e só se falta quando há motivos de força maior. Neste domingo assinala-se o Dia Internacional das Pessoas Ciganas. Primeiro de uma série de três trabalhos sobre a escolaridade obrigatória e estas comunidades.

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Adriano Miranda
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Quando as crianças chegam à Escola Básica Quinta do Simão, na freguesia da Esgueira, no concelho de Aveiro, recebem um copo de chá ou de café com leite e algumas bolachas. Já com as mãos quentinhas, os estômagos consolados, dirigem-se às salas de aula para começar a trabalhar.

Até ali chegar, caminham uns 20 minutos de olhos postos no chão para evitar as poças de água. De um lado e de outro, eucaliptos, pinheiros, vários tipos de acácias. Há poças que ocupam a largura da estrada quase por inteiro. Há que formar um carreiro e seguir, devagarinho. A coordenadora da escola, Fátima Santos, não acha justo enfiá-las logo dentro de uma sala.

São ciganas 88% das crianças que aqui entram de segunda a sexta. Não que a direcção do Agrupamento de Escolas da Esgueira tenha decidido pô-las à parte, mas por ser aquela a população residente naquela zona. Há três comunidades ciganas enfiadas num pinhal, em Ervideiros, perto da zona industrial de Taboeira.

“Eu gosto da escola”, afiança um rapaz de dez anos chamado Danilo Cardoso. “A escola é para aprender a ler, a escrever, a fazer jogos matemáticos e mais coisas.” Ainda não sabe bem o que quer ser. “Ainda tenho muito tempo para pensar”, esclarece. Talvez cabeleireiro. Amiúde, no intervalo, vai abraçar a professora Fátima. “Ela faz-me trabalhar e eu às vezes estou com a cabeça na lua, mas eu gosto muito dela.”

Há aqui uma mudança semelhante à que tem sido observada em diversas comunidades pelo país fora. Já lá vai o tempo em que se multiplicavam as faltas no 1.º ciclo, as crianças entravam tarde no pré-escolar e havia que dar banho a algumas. Agora, banho só se houver algum acidente. E faltas só se ficarem doentes ou tiverem um casamento ou outro motivo de força maior.

Não aconteceu de repente. “Há aqui um efeito que não pode ser desprezado que é o da escolarização dos próprios pais”, salienta. “A médio prazo, a escolarização acaba por trazer mudança de atitudes”, diz a directora do Agrupamento de Escolas da Esgueira, Helena Libório. "E não podemos ignorar que o trabalho aqui feito mobiliza os pais desde o pré-escolar. É diário e persistente.”

Não foi um trabalho exclusivo da escola. Ao longo de anos, a Cáritas Diocesana de Aveiro, com o apoio da câmara municipal, do centro de saúde e da Segurança Social, desenvolveu uma sucessão de projectos que incluíram vacinação e cuidados de higiene pessoal para todos, apoio escolar para crianças, nutrição, culinária, bordados e costura, carpintaria e outras actividades para adultos. “As crianças estão na escola. Agora, o que queremos é que façam o seu percurso com o maior sucesso possível”, salienta. “Começamos a ter os miúdos na idade normal e a prosseguir normalmente para o 5.º ano.” Os mais novos, na sala do pré-escolar, têm três anos. Os mais velhos, na sala de 3.º e 4.º anos, têm 11.

Os nomes estão alinhados nos cabides em forma de cogumelo. Distribuem-se por três salas — 16 na sala de 3.º e 4.º anos, dez na de 1.º e 2.º, 17 na do pré-escolar. São 32 ciganos e nove não ciganos. Fátima Santos conhece bem o contexto de cada um. “Uma criança que chega à escola depois de uma noite passada com chuva a cair dentro de casa, com frio... a aprendizagem tem de ser diferente da dos miúdos que têm conforto.” O que não quer dizer que não aprendam, como os outros.

Seguindo pela rua fora, virando aqui e ali, encontra-se o bairro de Danilo e dos primos Nicolau e Ivan. Em cada bairro há uma família alargada. Este é a da família Cardoso. É só uma rua. Há um sanitário portátil à entrada. Árvores à esquerda, casas à direita. Casas pequenas, com paredes de tijolo, cobertura de zinco. Algumas estão desocupadas. Os donos foram levados para a prisão.

Nicolau, de 11 anos, oferece-se para fazer uma visita guiada. Ao avançar pela rua adentro, vai dizendo os nomes dos donos de cada casa e de quem nelas mora e esse exercício traz-lhe à memória as rusgas e as visitas regulares à prisão para ver o pai. “Rusga, sabe o que é? Entram nas casas e levam tudo.”

Gosta de morar aqui, tem espaço para brincar às escondidas e à apanhada e para fazer corridas com a sua pequena moto, mas preferia morar noutro sítio. “Gostava mais de morar num prédio.” Aqui, aquecimento é na rua, à volta de uma fogueira. Aqui, banho é numa bacia. Aqui, o lixo polvilha as ilhargas. Aqui, há ratazanas à espreita e é preciso corrê-las à pedrada.

Nicolau chama mãe à avó, que começou a cuidar dele quando tinha apenas duas semanas de vida. Antónia Soares mora aqui há 21 anos. A sogra tinha enterrado dois filhos em Esgueira. “Para a minha sogra não abandonar os filhos, a gente trouxe os nossos filhos. Comprámos este terreno e começámos a viver aqui.”

O marido de Antónia já cá não mora. Separaram-se. Ela ficou com os filhos e os netos. Há oito anos, quando o sogro morreu, Dalila, a filha que morava em Loures, mudou-se para casa que fora do pai, o velho Cardoso. Com ela vieram o marido e os três filhos, que hoje contam 25, 18 e 13 anos.

Luís Paulo, o mais novo, frequenta o 8.º ano. A transição para a Escola Básica e Secundária Dr. Jaime Magalhães Lima “foi boa”. No primeiro dia, estava muito ansioso. “Não sabia como era aquilo. Tinha vários blocos. Fui fazendo perguntas ao meu irmão e aos meus primos.” Já conhecia outros rapazes. Joga futebol no Gafanha, um clube português localizado na Gafanha da Nazaré, em Ílhavo. E, num instante, se adaptou. “A escola é maior, tem muita gente, estamos todos em sociedade”, comenta. Com as primas é diferente. Ficam mais à parte, perto dos primos.

Ali mesmo, naquela casa, se vê a diferença de género. O irmão mais velho de Luís completou o 12.º ano. Fez um curso profissional de medidor orçamentista. Trabalha numa fábrica de pás para torres eólicas. O do meio “não gostava da escola”. Fez um curso profissional que lhe deu equivalência ao 9.º ano. Luís está “a ir bem”. 

Dalila, a mãe, nunca estudou. “Minha irmã mais velha casou-se e eu tive de ficar a fazer a lida da casa”, revela a mulher, tradicional no modo de se vestir e de se pentear. A mãe era vendedora. “Andava de porta em porta.” E ela foi sempre cuidadora — da casa, do marido, dos filhos, da sogra. O marido, que é empregado fabril, é que ganha o pão para pôr na mesa.

Está a criar Danilo e a irmã, Tamara, de cinco anos, desde que o pai deles foi preso. Acaba de lhe bater à porta outra sobrinha, a irmã deles, Luísa, que tem 17 anos e está praticamente em abandono escolar. Só vai à escola uma vez por semana. “Ela vai à força”, esclarece Dalila. “Não é aquilo que ela quer para a vida. O que ela quer para a vida é a lida de uma casa.” A rapariga frequenta o 7.º ano. “Já fui casada e pela lei do cigano já não convém ir à escola”, afirma ela. “Temos de cumprir com a lei.”

Já nem todos pensam dessa maneira, salienta a vice-directora do agrupamento, Anabela Ferreira: “No nosso agrupamento, as situações de abandono são residuais. Em 1847 alunos, neste momento tenho dois em absentismo acentuado — abandono só se verifica no final do ano lectivo. Só um é de etnia cigana. Vai fazer 18 anos em Maio. Não frequenta desde Setembro.”

Anabela Ferreira contacta os pais sempre que algum aluno começa a faltar e procura perceber o que está a acontecer, fazê-los compreender o valor da escolaridade no futuro dos filhos. Há três tutores a fazer um trabalho mais próximo com as crianças que estão em risco de exclusão e de abandono.

Os problemas começam no 2.º ciclo e aumentam no 3.º, mas há cada vez mais jovens ciganos a prosseguir os estudos. Neste momento, no Agrupamento de Esgueira estão 13 a frequentar o 2.º ciclo (5,2% dos alunos), 17 o 3.º ciclo (3,6% dos alunos) e oito o secundário (1,4%).

Na Universidade de Aveiro, que se saiba, há uma estudante cigana. No ano passado, por iniciativa de Rosa Madeira, professora do Departamento de Educação e Psicologia, crianças da Quinta do Simão e raparigas da Jaime Magalhães Lima foram desafiadas a passar um dia na universidade.

Quando as abordaram, as adolescentes começaram por dizer: “Nós estamos aqui obrigadas, nós não somos feitas para os estudos, nós queremos é casar.” “É um discurso de defesa”, entende a investigadora. Uma vez no campus, a atitude delas, que era de desinteresse, foi-se alterando até desatarem a fazer perguntas. “Os horizontes fazem-se assim”, lembra Rosa Madeira.

Helena Libório acha que o trabalho feito na Básica Quinta do Simão é o sustentáculo. Se as crianças forem conquistadas aqui, terão “uma base importante para continuar”. Admite que o ideal, em termos de integração, seria haver “uma escola maior, onde pudessem estar com todas as outras”. Mas seriam os alunos tão assíduos, se tivesse de se deslocar para mais longe?

A cultura cigana faz parte desta escola. Num Natal, uma mãe cigana foi fazer “guizo”, a feijoada que as comunidades ciganas comem no Natal. Noutro Natal, uma mãe não cigana esteve a fazer um bacalhau cozido com batatas. “Há uns anos, houve uma rusga e às 8h15 tínhamos um menino sentado no portão”, conta Fátima Santos. “Conseguiu furar a rusga e o lugar que procurou foi este. É um lugar onde se sentem bem. Sentem-se protegidos.”

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