Morreu Cecil Taylor, o pianista que inventou o seu próprio universo

Improvisador influente como poucos, revolucionário do free jazz, o pianista agora desaparecido aos 89 anos foi um dos nomes mais celebrados da vanguarda do jazz

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Cecil Taylor no Jazz no Parque, em Serralves, em 1999 PAULO RICCA/ARQUIVO

Há dois anos, o museu Whitney, em Nova Iorque, dedicou-lhe uma exposição. Durante duas semanas, houve discussões sobre a sua música e a sua obra, foram apresentadas uma peça de teatro e performances de dança, foram projectados filmes, foram exibidas as suas pautas. Na inauguração e na despedida, tocou ele mesmo. Tocou aquele piano que atacava com todo o peso do corpo, dançando-o e percutindo-o com aquela linguagem que era a sua, tão influente como inimitável. No Whitney, Cecil Taylor tocou e recitou poesia. Tocou a solo, tocou com banda e actuou ao lado do bailarino japonês Min Tanaka. A abrangência do programa foi a forma de o museu fazer justiça a um pianista que deixou uma marca indelével na história do jazz como uma figura revolucionária.

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Há dois anos, o museu Whitney, em Nova Iorque, dedicou-lhe uma exposição. Durante duas semanas, houve discussões sobre a sua música e a sua obra, foram apresentadas uma peça de teatro e performances de dança, foram projectados filmes, foram exibidas as suas pautas. Na inauguração e na despedida, tocou ele mesmo. Tocou aquele piano que atacava com todo o peso do corpo, dançando-o e percutindo-o com aquela linguagem que era a sua, tão influente como inimitável. No Whitney, Cecil Taylor tocou e recitou poesia. Tocou a solo, tocou com banda e actuou ao lado do bailarino japonês Min Tanaka. A abrangência do programa foi a forma de o museu fazer justiça a um pianista que deixou uma marca indelével na história do jazz como uma figura revolucionária.

Taylor, que morreu esta sexta-feira, aos 89 anos, na sua casa em Brooklyn, foi uma das traves-mestras do free jazz, movimento que revolucionou o género na década de 1960, foi um improvisador virtuoso, um vanguardista que comparava o seu estilo aos “pulos no espaço que fazem os bailarinos”. Alex Ross, crítico musical da New Yorker, descreveu-o como “uma das maiores figuras, mais persistentemente originais, mais incorrigivelmente sublimes, na história recente da música”. Com formação clássica, obtida no hoje extinto New York College of Music e no Conservatório de New England, em Boston, usou-a para agir sobre a música como, descreveram certo dia, um Bartók ao contrário – ou seja, alguém que introduziu no jazz, sem comprometer a linguagem, as lições da música clássica. “Não tenho medo das influências europeias”, cita-o o obituário do New York Times. “A questão está em usá-las, como o fez [Duke] Ellington, como parte da minha vida enquanto americano negro.”

Cecil Taylor nasceu numa família de classe média em Queens, Long Island, a 25 de Março de 1929. O pai era chef e a mãe, que morreria de cancro quando Cecil contava 14 anos, foi a primeira grande impulsionadora do seu talento. Bailarina, tocava também piano e violino e, quando o filho manifestou o desejo de se fazer músico, insistiu que se dedicasse ao piano seis dias por semana. Cecil Taylor referiria ao longo da vida a grande influência que ela teve no seu percurso e na defesa férrea que manteve, sem cedências, da sua visão artística. Inspirado por Duke Ellington, Horace Silver, Charlie Parker, Gyorgi Ligeti ou Stravinski, teve em Billie Holiday, que viu actuar pela primeira vez aos 16 anos, um modelo revelador. O espanto que sentiu ao vê-la em palco foi o mesmo que tentou provocar no público que assistia aos seus concertos. “O que aquela mulher me fez sentir”, recordou, “é o mesmo que quero fazer à plateia”. E foi realmente espanto que provocou.

As suas arrojadas propostas musicais e a forma pouco ortodoxa da abordagem ao piano tornaram inicialmente difícil ganhar lugar no circuito de música ao vivo – nesse período, pagava as contas a lavar pratos em restaurantes. O título dos seus primeiros álbuns, Jazz Advance (1956), gravado com o saxofonista Steve Lacy, o contrabaixista Buell Niedlinger e o baterista Denis Charles, e Looking Ahead (1958), eram demonstrativos do caminho que trilhava.

Em 1962, formou com o saxofonista Jimmy Lions (falecido em 1984) a base da Cecil Taylor Unit, combo de formação flutuante – em Unit  Structures, álbum editado pela Blue Note em 1966, Cecil Taylor “estava a formar uma sintaxe onde nenhuma existia antes”, lemos no obituário do New York Times. A partir do ano seguinte, começou a alternar de forma consistente os concertos em ensemble com as actuações a solo, indispensáveis ao seu estatuto lendário, ou em duetos mantidos com, por exemplo, Max Roach. “O que estou a fazer é criar uma linguagem. Uma linguagem americana diferente”, declarou em 1994.

Ao longo da sua carreira, na qual se cruzou com Ornette Coleman, Max Roach, Elvin Jones, John Coltrane, Albert Ayler, Archie Shepp, Tony Oxley ou Anthony Braxton, actuou quatro vezes em Portugal (na Gulbenkian, em 1988; em Serralves, em 1999; no Centro Cultural de Belém, em 2004; e no Jazz em Agosto de 2011). Músico poeta, músico bailarino, compôs e interpretou em 1979 a música do ballet Tetra Stomp: Eatin’ Rain in Space, protagonizado por Mikhail Baryshnikov e Heather Watts.

Artista inclassificável, múltiplo, disse um dia: “Perguntaram-me certa vez se era gay. Respondi: ‘julga que uma palavra de três letras define a complexidade da minha humanidade?’. Evito a ratoeira das definições simples.” Cecil Taylor era inclassificável porque era, afinal, o seu próprio universo.