Há um fantasma a pairar sobre os Óscares

A lista de filmes nomeados para os Óscares reflecte, de modo inescapável, o modo como Harvey Weinstein e a Miramax moldaram Hollywood e o tipo de filmes apetecível para os prémios da Academia.

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Não existirá maior ironia do que esta: o ano em que Harvey Weinstein foi escorraçado da comunidade de Hollywood é também o ano que confirma, de uma vez por todas, como a sua “marca” molda a corrida aos Óscares. Não estamos a falar apenas das questões sociais mais latas, à volta da desigualdade de género e da misoginia casual de uma indústria montada sobre clubes quase exclusivamente masculinos. Estamos, sobretudo, a falar do tipo de filmes que Weinstein instalou, através das suas campanhas vale-tudo na Miramax, como modelo do “filme de Óscares” que seria seguido e reproduzido por todas as produtoras de Hollywood.

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Não existirá maior ironia do que esta: o ano em que Harvey Weinstein foi escorraçado da comunidade de Hollywood é também o ano que confirma, de uma vez por todas, como a sua “marca” molda a corrida aos Óscares. Não estamos a falar apenas das questões sociais mais latas, à volta da desigualdade de género e da misoginia casual de uma indústria montada sobre clubes quase exclusivamente masculinos. Estamos, sobretudo, a falar do tipo de filmes que Weinstein instalou, através das suas campanhas vale-tudo na Miramax, como modelo do “filme de Óscares” que seria seguido e reproduzido por todas as produtoras de Hollywood.

Entre o filme de prestígio vistoso mas inofensivo, cheio de estrelas em papéis pequenos, e a pequena produção independente de autor, muito do que vemos nas nomeações para os Óscares 2018 tem as suas raízes nos tempos áureos da Miramax e na “explosão” da produção independente americana na década de 1990. Foi na sequência dos êxitos de crítica e público conseguidos pela Miramax com O Paciente Inglês, A Paixão de ShakespeareChocolate ou os filmes de Quentin Tarantino que as majors investiram em divisões específicas para obras menos mainstream – da Sony Pictures Classics e da Fox Searchlight à Focus Features da Universal, passando pela compra da New Line pela Warner e pela própria absorção da Miramax pela Disney. E praticamente todos os cineastas este ano na corrida “cresceram” dentro deste sistema hollywoodiano que acabou por se tornar numa espécie de “academia” para cineastas, um patamar de acesso.

Peguemos nos “pontas de lança” de 2018. O mexicano Guillermo del Toro fez A Forma da Água com a Fox, mas foi a Miramax quem lhe abriu as portas dos States, com Predadores de Nova Iorque. A experiência não foi feliz, e Del Toro não voltaria a rodar com os Weinstein, mas soube aproveitar a porta aberta e o mexicano é hoje capaz de impôr ao sistema os seus filmes de fã cinéfilo. Christopher Nolan viu a sua segunda longa-metragem, Memento, tornar-se num fenómeno através da pequena distribuidora Newmarket, e encontrou rapidamente lugar nos grandes estúdios, tornando-se no “autor residente” da Warner, com os sucessos de crítica e de público dos seus filmes de Batman ou de A Origem a permitirem experiências mais ambiciosas e menos evidentes como Dunkirk.

Paul Thomas Anderson é um puro produto da geração Miramax: os filmes que fizeram o seu nome, Jogos de Prazer Magnolia, foram lançados pela concorrente mais directa dos Weinstein, a New Line, e o seu estatuto de autor rivaliza com o de Tarantino ou dos irmãos Coen. Mais ainda: Linha Fantasma traz a “bênção” da Annapurna, a produtora de Megan Ellison, herdeira da Oracle e apostada em dar uma casa aos autores americanos (sejam eles Anderson, Kathryn Bigelow, Spike Jonze ou David O. Russell). A Hora Mais Negra, de Joe Wright, corresponde à produção inglesa de prestígio com capitais americanos que O Paciente Inglês e A Paixão de Shakespeare instalaram como “isco de Óscares” e O Discurso do Rei confirmou — uma linha de produção que foi afinada pela Working Title, a produtora inglesa por trás do filme, que tem funcionado na prática como “filial britânica” da Universal.

Já que estamos a falar de ingleses, Três Cartazes à Beira da Estrada, do anglo-irlandês Martin McDonagh, é um filme muito americano, até no seu elenco, encabeçado pela admirada diva indie que é Frances McDormand, esposa de Ethan Coen na vida real. Mas é um falso indie, co-produzido pela Fox e pela inglesa Filmfour, realizado por um dramaturgo cuja proeza de argumentista e dialoguista é muitas vezes colocada ao nível de gente como Tarantino ou Aaron Sorkin. Chama-me pelo Teu Nome, do italiano Luca Guadagnino, é uma produção inteiramente independente e maioritariamente europeia que a Sony Classics comprou para distribuição internacional com os Óscares em mira, tendo em conta o tradicional deslumbre americano com a Europa como “centro cultural” e a dimensão semi-arrojada do tema LGBTQ light do filme. Confirma, de caminho, o facto de que estes são prémios definidos e decididos pela indústria, e que os europeus só lhes têm acesso com o apoio dos estúdios – do mesmo modo que a Miramax impôs Roberto Benigni. 

Lady Bird de Greta Gerwig, Eu, Tonya de Craig Gillespie e The Florida Project de Sean Baker serão os raros nomeados a não ter dinheiro dos grandes estúdios (a distribuição de Lady Bird Florida é da pequena A24, que levou Moonlight à vitória em 2017), mas nos elencos que combinam actores de composição e vedetas e na dimensão de “pequeno filme” encaixam na perfeição na linhagem oscarizável de coisas como Juno ou Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos.

Sobram as excepções que confirmam a regra: Foge, de Jordan Peele, é um filme de género, coisa que (tal como as comédias) a Academia não costuma nomear. Embate de frente com as questões de raça que têm vindo a afectar os Estados Unidos, vem de um estúdio grande (a Universal, que ganhou dinheiro à fartazana com o orçamento mínimo do filme), mas conseguiu a proeza de ser ao mesmo tempo um filme popular nas bilheteiras e com os críticos. O mesmo não aconteceu com Mudbound – As Lamas do Mississippi de Dee Rees: aplaudido pela crítica, não registou junto do público e terá sido penalizado por vir com a chancela do serviço de streaming Netflix, mas a sua abordagem histórica do tema da raça encaixa também numa velha tradição dos Óscares de nomear as chamadas problem pictures, dramas sobre os grandes problemas da sociedade (de Sementes de Violência a Adivinha quem Vem Jantar passando por Kramer contra Kramer). E The Post, de Steven Spielberg, regressa aos anos dourados do thriller político dos anos 1970.

A regra, contudo, continua presente: as nomeações para os Óscares 2018 dificilmente existiriam sem o modelo que Harvey Weinstein criou. A noite onde ele já não é bem vindo traz as suas marcas indeléveis – e continuará a trazê-las ainda por alguns anos.