Apanhados na teia política de U.S. Girls

O abandono, a raiva ou a violência de existir a partir de um prisma feminino, com vibrante música pop à volta.

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Meg Remy, ou seja, U.S. Girls

Caso curioso o do projecto U.S. Girls, uma ideia desenvolvida por Meg Remy, uma artista e cantora americana a residir em Toronto no Canadá. Desde há dez anos a esta parte que lançou uma série de álbuns e ninguém lhe ligou muito. Foi a partir de 2015, quando assinou o sexto Half Free pela histórica editora britânica 4AD, que muita gente acordou para a sua pop sintética.

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Caso curioso o do projecto U.S. Girls, uma ideia desenvolvida por Meg Remy, uma artista e cantora americana a residir em Toronto no Canadá. Desde há dez anos a esta parte que lançou uma série de álbuns e ninguém lhe ligou muito. Foi a partir de 2015, quando assinou o sexto Half Free pela histórica editora britânica 4AD, que muita gente acordou para a sua pop sintética.

O efeito foi de tal forma que muita gente pensou tratar-se de uma obra de estreia. Agora regressa com In A Poem Unlimited, obra politizada, que parte sempre de um prisma feminino, e que alguma imprensa olha com como resposta aos acontecimentos dos últimos meses em torno do movimento #MeToo. Mais uma vez o que é curioso é que ela não faz nada aqui que não tenha já feito antes: ou seja, criar canções pop que tentam ser tão comunicativas como inventivas, suportadas por letras incisivas politicamente. Dir-se-ia apenas que, por mero acaso ou não, o mundo acertou passo com a sua forma de actuar. Sorte dela. E nossa, já agora.

A diferença das canções deste álbum — e isso não é um feito menor — para algumas das suas experiências do passado é que aqui tudo soa francamente inspirado, pujante, urgente. E também bastante coeso, o que não deixa de ser surpreendente para uma obra gravada em múltiplos estúdios e que contou com cerca de 20 colaboradores. Mais uma vez, nada de novo. Meg Remy é essencialmente a mulher das ideias e da maior parte das letras, mas na feitura da música tem recorrido a muitas colaborações ao longo dos anos. Neste caso dois nomes parecem ter sido essenciais: o do colectivo canadiano The Cosmic Range e o de Max Turnbull, que colabora há muito com ela, ou não fossem eles um casal.  

A visão artística global de Meg Remy é, claro, primordial, fazendo com que, por um lado, cada canção pareça sempre um universo singular, e por outro que faça sentido no todo. Já os The Cosmic Range parecem ter tido um papel importante na interpretação da sonoridade orgânica, com laivos de psicadelismo, de jazz-funk e uma grande presença de guitarras, enquanto os arranjos e o balanço rítmico têm o dedo de Max Turnbull.

Mas o centro nevrálgico da obra é a emoção trazida pelas reflexões de Meg Remy, como se nos devolvesse os ambientes de tensão que precedem e se seguem às condutas de violência, com a intimidação sexual ou os actos de assédio a ganharem dimensão política. Em 2015, em conversa com ela, já nessa altura apontava que “uma verdadeira feminista é alguém que se preocupa com todas as pessoas e não apenas as mulheres”, ressalvando que por isso era solidária “com aqueles que se preocupam com o ambiente, ou que lutam contra o capitalismo e possuem uma visão igualitária e humanista do mundo.” O seu empenho político não é novo.

Mas dir-se-ia que neste álbum tudo conflui para um final ainda mais feliz do que no passado recente. As letras mantêm a pertinência e a música joga-se entre contrastes, mistura de sons abstractos e de classicismo luminoso, ao mesmo tempo desafiadora e familiar, cantando o abandono, a raiva ou a violência de existir a partir de um prisma feminino. Pode fazê-lo em canções que parecem vogar em câmara-lenta como Velvet 4 sale, ou com alusões à música disco como em M.A.H., ou com piscadelas de olho a Citizen Kane de Orson Welles na pop electrónica de Rosebud, ou em divagações cósmicas como Poem, a lembrar os The Chromatics, ou ainda na digressão jazz-funk com algo de improviso que é Time, mas no final, apesar da diversidade, fica-se com a ideia que nunca se sai de uma teia urdida com grande solidez por Meg Remy, num álbum magnífico.