O mundo de colagens de U.S. Girls

Meg Remy é U.S. Girls, uma visão pop sintética do mundo, por entre letras de prisma feminino e alusões a Cindy Sherman ou Chantal Ackerman. No dia 23 estará em Lisboa para apresentar o novo álbum, Half Free.

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Não é uma estreia. Meg Remy já leva oito anos de percurso e uma mão-cheia de álbuns registados Drew Reynolds

O nome pode sugerir um grupo rock americano de raparigas ou talvez uma irónica designação para uma banda pop alternativa. Mas não. É apenas a denominação escolhida pela artista, videasta e cantora Meg Remy, uma americana a residir em Toronto, no Canadá, para o seu projecto em torno da música, que terá apresentação ao vivo, em Lisboa, no Lux, a 23 de Outubro.

Não é uma estreia. Meg Remy já leva oito anos de percurso e uma mão-cheia de álbuns registados. Mas, para a larga maioria, o novo Half Free parece estar a funcionar como tal. “É um pouco estranho, sim, tratarem-me como se fosse uma principiante, mas ao mesmo tempo é divertido”, diz-nos por entre risos, satisfeita pela visibilidade que o seu trabalho tem tido nos últimos tempos.

A sua pop sintética tem qualquer coisa de instantâneo e de clássico, mas ao mesmo tempo expõe estranheza, não sendo fácil de situar. É como se Meg Remy conseguisse propor um conjunto de silhuetas nas quais parece possível vislumbrarmos figuras que nos são próximas mas que acabamos por não identificar na sua inteireza.

Há quem a associe a figuras femininas auto-suficientes como Jenny Hval, Grimes ou Grouper, mas ela é outra coisa, expondo ao mesmo tempo uma faceta estranhamente pop que também pode aproximá-la dos Chromatics ou de Glass Candy, por exemplo. Ou seja, a sua música joga-se entre contrastes, mistura de sons abstractos e de classicismo luminoso, ao mesmo tempo desafiadora e acessível, cantando o abandono, a solidão, a auto-estima ou a igualdade de géneros, sempre a partir de um prisma feminino.

Para a sua renovada visibilidade parece ter contribuído a assinatura pela histórica editora inglesa 4AD, que resolveu contactar porque lhe pareceu o tipo de casa capaz de a ajudar dando-lhe ao mesmo tempo "total liberdade artística”. E assim parece ter acontecido. Está satisfeita com os resultados, pelo menos até agora. “Não sei o dia de amanhã, para mais nesta época de incertezas, mas tem sido uma bela relação.”

No processo de composição do novo álbum contou com várias colaborações, ao nível do design sonoro, o que contribuiu para que fosse demorado. “Alguém criava um ritmo, enviava-mo, eu colocava vozes e melodias por cima e devolvia o ritmo, que acabava por ser alterado; depois era eu que voltava a introduzir alterações, e assim sucessivamente. Nada foi feito num estúdio de forma clássica. Foi tudo feito em minha casa. Foi um método de colagem que envolveu imensas pessoas.”

Ben Cook (Fucked Up), Tony Price, Amanda Crist (Ice Cream), Onakabazien ou o marido Max Turnbull, mais conhecido por Slim Twig, foram alguns dos músicos e produtores que colaboraram com ela na criação das bases sonoras, acabando todos eles por ter em atenção a sua voz, o centro de Half Free. “Essa é a grande alteração em relação aos dois primeiros álbuns”, confessa. “Nesses discos iniciais a voz era alterada nas misturas, distorcida com ecos e reverberações. Este é o primeiro álbum onde isso não acontece. Pelo contrário existiu a vontade de a aclarar para que aquilo que eu cantasse fosse transparente. Foi uma decisão consciente, tornar os vocais e as letras mais audíveis.”

É verdade, embora o desenho sonoro global também seja diferente. Há mais espaço. Mais distensão. Mais climas sonhadores. “Gosto de canções que nos conseguem transportar e enlevar de um ponto A para um B”, justifica, como se a essência do tema já estivesse contida nessa atmosfera, como se elucidasse sobre o que é a canção, transportando-nos para o seu interior”.

Sem distracções
Nas suas letras, Meg Remy reivindica “um ponto de vista feminino”, embora relativize a questão. “[Isso acontece] apenas porque sou mulher e é a forma como vejo o mundo.” Em Dawn that valley conta a história do soldado que perdeu a vida na guerra a partir do relato da mulher, por cima de uma sonoridade influenciada pelo dub, enquanto em Sororal feelings uma mulher emocionalmente dilacerada diz que se vai enforcar por entre uma música cintilante, que se vai arrastando vagarosamente. “Uma verdadeira feminista é alguém que se preocupa com todas as pessoas e não apenas com as mulheres”, faz questão de afirmar. “Por isso mesmo sou solidária com aqueles que, hoje em dia, se preocupam com o ambiente, lutam contra o capitalismo e possuem uma visão igualitária e humanista do mundo.”

Lamenta que, na música, nem sempre seja possível encontrar gente verdadeiramente empenhada politicamente. E dá o exemplo das artes visuais ou do cinema, onde sente que isso acontece, acabando a falar da cineasta belga Chantal Ackerman, falecida na semana passada. “Fiquei tão triste”, confessa. “Descobri o seu trabalho há não muito tempo, mas era tão grande! Tinha uma perspectiva do cinema verdadeiramente singular. Percebiam-se nela uma liberdade e uma experimentação constantes, sendo ao mesmo tempo rigorosa. Nunca tinha visto nada assim, simples, humanista e tão real.”  

Numa outra vertente, diz ser também muito marcada pela artista americana Cindy Sherman – “olho para uma fotografia sua e é como ver todo um filme” –, o que não surpreende tendo em conta alguns dos seus vídeos, que a própria Meg Remy realiza. Para além deles, já filmou uma curta-metragem e é também artista plástica. Para ela está tudo interligado, fazendo parte do mesmo corpo artístico. “Fazer uma colagem ou um filme não é diferente de criar uma canção”, defende. "Acabam por ser expressões que resultam de mim, predispondo-me para novas possibilidades e levando-me a assumir riscos, o que me deixa naturalmente satisfeita.”  

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Drew Reynolds

Assumir riscos é aliás aquilo que gosta de fazer em palco, como terão constatado os que a viram em Guimarães em 2012, embora reconheça que durante muitos anos não era o espaço onde mais se sentia confortável. “Fui aprendendo a estar, não foi imediato, ainda hoje não é o terreno mais agradável do mundo, mas consigo integrar isso no que apresento.” E que tipo de ambiente tenta ela criar ao vivo? “Qualquer coisa de confuso!”, exclama por entre risos. “Gostava que as pessoas se interrogassem, do género: o que raio está a acontecer à nossa frente? Gosto de apresentar a música sem interrupções, como se fosse uma enorme colagem.”

Depois de ter aprendido a estar em palco, está motivada para um outro desafio: aprender a desfrutar do silêncio. “Estar só, sem distracções, desfrutando do silêncio, é um dos grandes desafios das nossas sociedades. São essas coisas que me motivam.” A fama ou a riqueza não. “Quero apenas continuar a fazer aquilo de que gosto, tendo o suficiente para uma vida digna. Apenas isso.”

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