A inovação em Lisboa faz-se em locais com história

São vários os pólos de Lisboa que têm sido alvo de investimento no âmbito da inovação e enquanto que cada um pretende servir os lisboetas de maneiras diferentes a sua génese é comum: a reabilitação de espaços históricos

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É no coração do Intendente, no Mercado do Forno do Tijolo, que a inovação tem despertado o velho bairro para uma realidade diferente, a realidade das indústrias criativas.

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É no coração do Intendente, no Mercado do Forno do Tijolo, que a inovação tem despertado o velho bairro para uma realidade diferente, a realidade das indústrias criativas.

 Inaugurado em 1956, com um nome que lhe advém dos característicos fornos de telha e tijolos, o mercado foi projectado pelo arquitecto Eduardo A. H. dos Reis e terá tido grande actividade até ao início do séc. XXI, altura em que a sua procura pela função tradicional da infra-estrutura escasseou.

Hoje em dia, no antigo matadouro de coelhos, um edifício traseiro que costumava ser um armazém abandonado, localiza-se o Fab Lab, um espaço-oficina acessível ao cidadão comum onde são fornecidos materiais e máquinas para estimular a criatividade e o empreendedorismo. Por semana, existem dois dias abertos onde os utilizadores só pagam pelos materiais utilizados e, nos restantes dias, é possível utilizar o equipamento mediante pagamento por hora.

Este local de experimentação e prototipagem está activo desde 2013 e pertence a uma rede de Fab Labs internacionais. Foi projectado pela Câmara Municipal de Lisboa revelando a estratégia municipal de reabilitar e reutilizar espaços abandonados para fins ligados ao empreendedorismo.

“Neste momento a Câmara quer pegar em edifícios abandonados, em desuso e dar uma nova vida no âmbito das indústrias criativas”, conta Bernardo Gaeiras, director executivo do Fab Lab e do Centro de Inovação da Mouraria. A ideia é conferir a cada infra-estrutura uma função especializada e criar uma rede de espaços complementares, onde cada indústria criativa possa, a qualquer ponto do desenvolvimento em que esteja, inserir-se e beneficiar da sua existência.

“Se na primeira fase há uma explosão de ideias e loucura aqui no Fab Lab, pretendemos que no Centro de Inovação da Mouraria a ideia afunile e melhore” acrescenta Bernardo Gaeiras, rodeado pelos azulejos brancos típicos de mercado, mesmo por baixo das correntes do matadouro.

O próximo laboratório a abrir será o Mercado do Bairro Alto, já no próximo mês, um espaço mais ligado aos ofícios como a madeira, a encadernação e o marmoreado. Gerido em conjunto com a fundação Ricardo do Espirito Santo Silva, pretende preservar a arte dos ofícios, que, considera, distingue Lisboa das outras cidades.

No mercado de Santa Clara, o mais antigo mercado coberto da capital, a ideia é fazer um showroom, uma mega loja de grupos criativos, fechando assim o ciclo experimentação, desenvolvimento e venda. O espaço abrirá na Primavera de 2018, e começará por estar aberto nos dias da Feira da Ladra, terça-feira e sábado.

A reabilitação nem sempre é fácil. Há desafios acrescidos em utilizar edificios antigos. No Fab Lab os Invernos frios e chuvosos provam-se desafiadores, atingindo o interior do edifício. “A Câmara chegou mesmo a dizer que nunca ficaria tudo bom a não ser que fosse deitado abaixo”, relembra Gaeiras. “Mas vamos remendando e os remendos também contam uma história do espaço.”

A segunda fase de um processo criativo

No caso do Centro de Inovação da Mouraria, a etapa do ciclo mais orientada para a residência e crescimento dos projectos criativos, é bem evidente o contraste das marcas históricas com o modernismo conferido pela reabilitação do espaço.

Situado no Quarteirão dos Lagares, no sopé da colina da Graça, numa antiga residência senhorial do século XV, o edifício é propriedade municipal desde 1998 e foi uma proposta do Orçamento Participativo que desencadeou o projecto na sua totalidade.

A propriedade era originalmente constituída por cinco edifícios resguardados por um muro de pedra setecentista. A construção é um dos raros exemplos subsistentes em Lisboa de organização espacial  islâmica, constatável no modo como os imóveis se articulam através de diferentes níveis e pátios.

Durante a reabilitação do edifício foram encontrados vestígios arqueológicos diversos, inclusive duas fontes datadas do princípio dos descobrimentos portugueses. O trabalho de requalificação e funcionalização da área, desenvolvido em conjunto com arqueólogos e arquitectos, manteve e valorizou a morfologia e tipologia da construção, conservado as suas características islâmico-medievais.

“O espaço tem uma história e caracterização para contar”, acrescenta Bernardo. “Ganha-se muito como base de inspiração, se conseguirmos ser criativo dentro dos limites que o espaço oferece. Assim conseguimos manter o património sem desprover as características do edifício.” A questão da sustentabilidade também é algo tido em conta, evitando o desperdício de mármores e outros  materiais em bom estado. 

O renascer do Beato

Noutra ponta da cidade, na zona do Beato, nascerá mais um projecto destinado a empreendedores e inovadores, cuja base passa também por reavivar um espaço que já não era utilizado mas que é um local histórico bem conhecido da população lisboeta: a Manutenção Militar.

O edifício, que era aterro no séc. XIX e séc. XX, foi ainda Convento das Grillas, tendo sido convertido em Manutenção Militar em 1897. Era neste espaço que era produzida alimentação para as forças armadas, essencialmente centrada na panificação.

A sua proximidade ao rio ajudava a esta indústria, que armazenava a sua produção nos enormes silos, ainda hoje existentes, sendo que lá eram produzidas 18 toneladas de massa por dia. O complexo composto por 20 edifícios, com uma área de 35 mil metros quadrados, terá cessado o funcionamento da sua última fábrica em 2011 mas o declínio de utilização das instações terá tido início no fim da obrigatoriedade do serviço militar.

Miguel Fontes, presidente da Startup Lisboa, pretende reavivar o local. “A Câmara de Lisboa pediu-nos, por volta de Fevereiro de 2016, para aproveitar o espaço, que é propriedade do estado, fazendo jus ao momento empreendedor da cidade de uma forma mais estrutural, e não se limitando a acolher eventos”, afirma o presidente. Com a proposta ao Estado do espaço ficar sob tutela do município surgiu a ideia de criar o Hub Criativo do Beato.

A ideia é que o espaço seja uma âncora no desenvolvimento urbano da cidade, o que passará, também pela abertura das instalações à população, de modo a consolidar e reabilitar  uma área que vai desde Santa Apolónia ao Parque das Nações.

O antigo complexo militar, que foi cedido no ano passado à autarquia lisboeta por mais de sete milhões de euros, vai ser maioritariamente reabilitado pelas empresas que lá se vão instalar, de modo a a acelerar o processo e diminuir o investimento do município de Lisboa. A cargo da autarquia é deixada apenas a requalificação de espaços exteriores e criação de infra-estruturas de serviço como supermercados e restauração, bem como os projectos prévios, de conceptualização dos espaços.

A sustentabilidade ambiental é também tida como fundamental na reconversão do património histórico e industrial e para isso, foram feitos vários trabalhos em conjunto com a Direção Geral do Património, de modo a perceber o que deveria ser aproveitado.

“Foi inventariado tudo o que é equipamento industrial e classificou-se em três categorias: o que tem que ser preservado no local onde está, o que tem que ser preservado mas pode ser movido e aquilo que pode ser preservado mas que não tem valor patrimonial”, explica José Mota Leal, um dos responsáveis pelo projecto. Neste âmbito, a antiga fábrica de moagem vai ser preservada na sua integra e transformada em núcleo museológico.

O atraso dos trabalhos do Hub Criativo do Beato, que foi apresentado a 25 de Julho de 2016, prende-se, segundo a autarquia, com o desenvolvimento de estratégias de divulgação e um plano de afectação de usos dos espaços. “Isto não é um projecto de curto prazo e decidimos utilizar uma estratégia de instalação progressiva, por meio de entidades âncora como o Super Bock Group, que se instalará na antiga central eléctrica”, afirma o presidente. 

A instalação destas primeiras entidades será feita no início de 2019. No entanto, o espaço será ainda casa para outros projectos no âmbito da sustentabilidade, e da economia circular, como é o caso do Repair Café destinado à reparação e reutilização de pequenos electrodomésticos de uso pessoal.