Tese afirma que havia regadio no Alentejo 5000 anos antes de Alqueva

No final da Pré-História ocorreu uma alteração radical nos campos do Alentejo. As comunidades humanas deixaram de viver do que a natureza oferecia e sedentarizaram-se num sistema agro-silvo-pastoril.

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É apenas uma hipótese. No entanto, há quem advogue que há cerca de 5 mil anos já havia culturas regadas junto à vila de Ferreira do Alentejo. A arqueóloga Filipa Rodrigues, que entre 2008 e 2010 efectuou escavações arqueológicas em Porto Torrão, localizado na periferia da vila alentejana, destacou o papel desta comunidade no espaço agrário e na economia alimentar no território hoje abrangido pelo Baixo Alentejo, durante a Pré-História recente.

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É apenas uma hipótese. No entanto, há quem advogue que há cerca de 5 mil anos já havia culturas regadas junto à vila de Ferreira do Alentejo. A arqueóloga Filipa Rodrigues, que entre 2008 e 2010 efectuou escavações arqueológicas em Porto Torrão, localizado na periferia da vila alentejana, destacou o papel desta comunidade no espaço agrário e na economia alimentar no território hoje abrangido pelo Baixo Alentejo, durante a Pré-História recente.

Na sequência deste levantamento arqueológico, a investigadora elaborou um esquema em que mostra uma linha de água, a ribeira de Vale d’Ouro, que atravessa de uma ponta à outra o povoado. Este tem uma extensão calculada entre os 75 e os 100 hectares, em forma de círculo, com um quilómetro de diâmetro, o que faz deste sítio um lugar substancialmente maior que a vila de Ferreira do Alentejo. Numa das curvas mais acentuadas do curso de água, Filipa Rodrigues assinalou a provável existência de um fosso construído para regularizar o caudal com duas finalidades: para além da drenagem dos solos, a água seria armazenada para posterior distribuição através de canais mais pequenos que iriam irrigar as culturas nas imediações de Porto Torrão.

Na última quinta-feira, durante uma conferência sobre O Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva e a Paisagem Agrária do Baixo Alentejo na Pré-História, realizado pela EDIA, Câmara de Beja e Direcção Regional de Cultura do Alentejo e que decorreu no Museu do Sembrano, em Beja, coube ao arqueólogo António Faustino de Carvalho explanar sobre a hipótese proposta por Filipa Rodrigues. Poderá não ser totalmente desajustada, a avaliar pela experiência vivida no local por outros arqueólogos. “Foram confrontados com lama quase até aos joelhos”, disse, reconhecendo que “era um problema estrutural viver ali”. Logo, as estruturas de drenagem da água faziam todo o sentido.

Mas, sublinha, “a hipótese proposta por Filipa Rodrigues nunca teria sido uma solução técnica viável há 5 mil anos”, pois existiriam vários condicionalismos de natureza técnica para haver uma agricultura de regadio sustentado na região. E, mesmo que venha a comprovar-se uma tal possibilidade, “nunca seria a norma, antes a excepção, dadas as características ecológicas do próprio Alentejo”.

“Daqui a cinco anos podemos estar a dizer que a arqueóloga estava errada por terem, entretanto, surgido outros factores que possam fazer recuar uma tal possibilidade, mas também podemos vê-la confirmada”, admite Faustino de Carvalho.

Dos cereais às cabras

Este investigador, que tem desenvolvido pesquisas sobre a transição Mesolítico-Neolítico e as primeiras sociedades agro-pastoris, defende ter existido no final da Pré-História uma ruptura fundamental nas sociedades do actual Baixo Alentejo. “É o momento em que os primeiros seres humanos que ali viviam começaram a praticar a agricultura e pastorícia, depois de termos vivido do que a natureza nos oferecia espontaneamente”, lembra o arqueólogo.  

A partir do momento em que os seres humanos “inventam a agricultura e a pastorícia” passam a ser donos e senhores das suas próprias subsistências, delineando a sua própria estratégia económica alimentar. “É uma ruptura fundamental no III milénio a.C., na fase terminal da Pré-História recente”, assinala Faustino de Carvalho.

Com efeito, os dados arqueológicos recolhidos durante centenas de intervenções na área do Empreendimento de Fins Múltiplos do Alqueva (EFMA) sustentam que há 5 mil anos já existia uma paisagem agrária onde predominam as culturas de sequeiro, os cereais e os animais domésticos como as ovelhas, as cabras, os suínos e até bovinos.

“Ficou patente o que poderia ser a paisagem agrária do Alentejo nesta época com os primeiros pastores e agricultores a viverem nesta região”, acentua o investigador, destacando as intervenções realizadas pela arqueóloga Joaquina Soares, no EFMA, procurando abarcar, numa visão de conjunto, a totalidade dos sítios arqueológicos intervencionados na região para interpretar o seu contexto.

Essa investigação deu indicações de que haveria uma forma de organização política nas comunidades envolvidas no território, com hierarquias definidas, isto é, grupos sociais que tinham predomínio sobre outros. Joaquina Soares tentou perceber e interpretar que tipo de organização social existia à época neste novo sistema agro-silvo-pastoril.  

“Ela verificou que havia comunidades muito diferentes umas das outras, sobretudo nas práticas económicas, ou seja, nalguns locais a pastorícia teria uma predominância muito maior, noutros seria a agricultura cerealífera ou as leguminosas e ainda a pesca no rio Guadiana”, avança o investigador.

Terão sido os primeiros agricultores da região a aproveitar os afloramentos graníticos para erguer ou encostar as suas cabanas construídas de materiais perecíveis, próprias de comunidades que ainda são relativamente nómadas. Os arqueólogos concluíram estar perante comunidades que incorporaram, pela primeira vez, a domesticação de animais e um modo de agricultura, eventualmente, ainda itinerante.

Vaso marcado pela cevada

Nas referências recolhidas observaram que na fase final da Pré-História, os animais selvagens e domésticos estão presentes na vida das pessoas, mas em número relativamente idêntico. Significa que a economia pastoril ainda não é muito forte nesta fase.

A agricultura fazia o seu caminho, testemunhado por um vaso cerâmico que foi encontrado e que tinha impressões de grãos de cevada. “Foi identificada a morfologia característica dos grãos de cevada que ficou marcada na pasta dos vasos. A posteriori não foi possível encontrar os grãos, mas a sua silhueta”, descreve Faustino de Carvalho. Este pormenor permite concluir que a comunidade que fabricou os vasos já praticava a cerealicultura, neste caso, de cevada.

“À medida que nos aproximamos do  final do III milénio a.C., verificamos um reforço da economia produtora de alimentos da agricultura e da pastorícia”, acrescenta. Nas margens do Guadiana descobriu-se um sítio chamado Mercador que tem cabanas em pedra, algumas lareiras e numerosos silos — estruturas subterrâneas que foram utilizados no armazenamento de excedentes agrícolas. Este conjunto de pormenores significa que a produção de cereais ou de leguminosas “era já suficientemente volumosa para justificar o seu armazenamento em larga escala”, assinala o arqueólogo

A escavação num outro sítio arqueológico, localizado a cerca de um quilómetro do Mercador, o Porto das Carretas, revelou um conjunto de actividades domésticas que inclui o primeiro metal trabalhado nesta época da Pré-História: o cobre. Foi neste sítio que a arqueóloga Joaquina Soares encontrou a primeira metalurgia da região e vestígios de tecelagem.

Também observa vestígios de restos de favas, uma leguminosa que tinha de ser cultivada, pois não nasce espontaneamente na Península Ibérica, assim como restos de pinhões. A fauna é composta sobretudo por veados, o que pode indicar que esta comunidade, que já dominava o fabrico de objectos metálicos, dedicava-se mais à caça do que à pastorícia.  

“O facto de não encontramos, durante as escavações, os restos das favas, ervilhas ou grãos de trigo ou de cevada leva-nos, por vezes, a concluir que as comunidades, há 5 mil anos, não praticavam a agricultura.” É um erro. “As favas e o trigo não têm concha, nem ossos, são consumidos por inteiro e nada fica para o registo arqueológico. Comemo-los e acabou-se. E os que são guardados ficam para sementeira do ano seguinte e germinam, não deixando lugar a qualquer vestígios”, sintetiza Faustino de Carvalho. Em que circunstâncias então é que os investigadores têm acesso a registos botânicos? “Só em situações extraordinárias, tipo Pompeia. Nestas circunstâncias, os grãos carbonizam-se e preservam-se na terra. Mas se os grãos são abandonados sem serem queimados, apodrecem e desaparecem.”

Desta forma, as possibilidades que são propiciadas aos arqueólogos só permitem uma observação minimalista da realidade que percorreu as sociedades pré-históricas. “Temos menos do que a ponta do icebergue para perceber a dimensão ou peso da agricultura nas comunidades alentejanas daquela época”, conclui Faustino de Carvalho.