Crianças desenham a dor para nos obrigar a vê-la

Caras tristes, seringas, enfermeiras e camas com grades são imagens recorrentes que as crianças hospitalizadas desenham para um concurso que quer “valorizar as queixas dos mais pequenos”. Nesta sexta-feira, 20 de Outubro, assinala-se o Dia Nacional de Luta contra a Dor. Olhemos então para ela

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Como vêem os mais pequenos a dor? Desde 2005 que a Associação Portuguesa para o Estudo da Dor (APED) desafia crianças hospitalizadas ou em tratamentos regulares a desenhar a dor. Para que lhe demos mais e melhor atenção. “Tratar a dor nas crianças continua a representar um enorme desafio para os profissionais de saúde e é um motivo de grande preocupação e aflição dos pais”, diz ao PÚBLICO Clara Abadesso, médica e coordenadora do Grupo de Dor na Criança e Adolescente da associação.

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Como vêem os mais pequenos a dor? Desde 2005 que a Associação Portuguesa para o Estudo da Dor (APED) desafia crianças hospitalizadas ou em tratamentos regulares a desenhar a dor. Para que lhe demos mais e melhor atenção. “Tratar a dor nas crianças continua a representar um enorme desafio para os profissionais de saúde e é um motivo de grande preocupação e aflição dos pais”, diz ao PÚBLICO Clara Abadesso, médica e coordenadora do Grupo de Dor na Criança e Adolescente da associação.

Por isso, distinguem trabalhos de crianças com idade igual ou inferior a 12 anos que se encontrem hospitalizadas em unidades de saúde nacionais ou que estejam submetidas a tratamentos em hospitais de dia. E assim nos obrigam a olhar para a dor dos mais pequenos.

Os desenhos desta edição podem ser vistos a partir das 10h desta sexta-feira no Hospital Pediátrico de Coimbra, na exposição Vou Desenhar a Minha Dor, a que se “associou um componente educativo e informativo para público em geral e profissionais de saúde”. Objectivo: “Chamar a atenção para a dor em pediatria.” A mostra será itinerante pelos vários hospitais do país.

Desenhar a dor ajuda as crianças a ultrapassarem-na? A pediatra responde: “Ao desenhar, as crianças conseguem descrever a sua experiência de dor de uma forma incrível. Através dos desenhos expressam-na nas suas várias dimensões.” São elas: “Física — que tipo de dor — dor associada a doença, a lesão ou traumatismo, a procedimentos diagnósticos ou terapêuticos (ex. uma injecção ou punção venosa para colheita de sangue para análises ou colocação de um cateter), a localização, a sua intensidade (por vezes); emocional — quais as emoções associadas à dor; e cognitiva — significados que dão à dor, o que é que a dor as impede de fazer, que estratégias ou mecanismos as ajudam a lidar ou reduzir a dor.”

Outro aspecto relevante desta iniciativa que a médica aponta é o facto de, enquanto as crianças estão a desenhar, se focarem numa actividade que lhes é agradável e lhes activa o imaginário, distraindo-as, “isso pode ajudar a reduzir a dor”. Como normalmente os miúdos gostam de desenhar, as famílias aderem facilmente à proposta de o fazerem à luz de um tema que as afecta.

O concurso está dividido em três escalões etários: menos de seis anos; dos seis aos oito e dos nove aos 12 anos. Este ano, não houve concorrentes menores de seis, mas chegaram à APED 23 desenhos da categoria seis-oito anos e 38 desenhos da categoria nove-12 anos. Ao 1.º prémio corresponde um cheque-oferta de 250 euros, ao 2.º prémio, um de 200 e ao 3.º, um de 150. O patrocínio é da Bene Farmacêutica.

Clara Abadesso não se cansa de reforçar o propósito do concurso: “Para os pais e para os profissionais de saúde, é importante perceber como as crianças vêem a dor, como a sentem, como a expressam. Realça de facto a importância que é necessário dar à prevenção, redução e tratamento da dor!”

Para além dos fármacos

Sendo o alívio da dor um direito das crianças, também é “um indicador de qualidade dos serviços de saúde” e o tratamento deve incluir muito mais do que fármacos. Por isso na divulgação da exposição se lembra que “existem uma série de estratégias não farmacológicas que deverão ser empregues no dia-a-dia nos serviços de saúde para minorar o problema da dor”.

E, afinal, o que é a dor? A assistente hospitalar remete-nos para uma das definições oficiais da dor, da IASP — International Association for the Study of Pain: “Uma experiência multidimensional desagradável, envolvendo não só uma componente sensorial, mas também uma componente emocional, e que se associa a uma lesão tecidular concreta ou potencial, ou é descrita em função dessa lesão.”

E para uma outra, de carácter mais individual e subjectivo: “Dor é tudo o que a pessoa que a experimenta diz que é, existindo sempre que ela diz que existe” (McCaffery, 1979).

Finalmente, pelas suas próprias palavras: “É uma experiência individual, subjectiva e multidimensional. Não resulta apenas da parte sensorial, tem também a parte emocional, que é baseada no estado afectivo, experiências de dor passadas, etapa de desenvolvimento e muitos factores de ordem pessoal, cultural e até espiritual. Existe ainda a parte comportamental — como é que a pessoa vai reagir à dor, que também é muito variável e pode até condicionar uma amplificação ou redução da dor.”

Problema “incompreendido”

É importante estudar a dor? A especialista lembra que este é um “dos problemas médicos mais ‘incompreendidos’, subdiagnosticados e subtratados”. E valoriza a investigação científica dos últimos 25 anos. “Sabe-se mais sobre a neurobiologia da dor — como funcionam as vias da dor, como funciona o cérebro face à dor; sobre a natureza multifactorial da dor; das consequências a curto e longo prazo da dor inadequadamente tratada; formas de avaliar a dor através de escalas especificas; novos fármacos para o tratamento da dor; a importância e eficácia de estratégias não farmacológicas para o alivio da dor; a maior eficácia de um tratamento que utiliza tanto estratégias farmacológicas como não farmacológicas, a importância do tratamento multidisciplinar na dor crónica, etc.”

Clara Abadesso diz que “ainda há muito para fazer para que a prevenção, o diagnóstico e o tratamento da dor sejam mais eficazes, quando se introduz na prática clínica o que já se demonstrou na investigação cientifica”.

O PÚBLICO tentou falar com concorrentes dos primeiros anos, agora adultos, mas não foi possível. A recusa veio por timidez e por falta de memória sobre o passado. Sinal de que pelo menos aquela dor passou.

Os vencedores desta edição foram:
Escalão seis-oito anos
1.º — Diogo Dinis Carvalho Santos,
2.º — Bianca Isabel Brás Pontes,
3.º — Filipa Pinto Brandão (todos do Hospital São João, Porto)
e também 3.º — Afonso Henriques Freitas Abreu (Hospital Dr. Nélio Mendonça, Funchal)

Escalão nove-12 anos
1.º — Maria Leonor de Matos e Sobral do Rosário (Hospital de Santa Maria, Lisboa) e também 1.º — Paloma Vasconcelos da Costa (Hospital do Barreiro – Montijo EPE)
2.º — Pedro Afonso  da Rocha Nogueira (Hospital São João, Porto)
3.º — Inês Nóbrega Oliveira (Hospital Dr. Nélio Mendonça — Funchal).

Foi atribuída menção honrosa a Ana Sofia de Sousa Gomes, 10 anos (Hospital de São João, Porto)