A amizade de Elsa salvou Berthe

Uma jovem portuguesa tornou-se amiga de uma judia belga em 1935 e quando o regime nazi crescia na Europa insistiu com ela que obtivesse um visto português e fugisse. Quando as tropas de Hitler lá chegaram, Berthe estava preparada. Mais de 80 anos depois, as filhas de ambas mantêm vivas a amizade.

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A 6 de Agosto de 1968, Graça Maria Abranches e João Eduardo Marta casavam-se na Curia. Entre os convidados estavam os pais de Graça, Elsa e António César Abranches, mas também um casal de judeus radicados no Canadá, Berthe e Jacobus Nunes-Vaz. Durante a cerimónia, Co, como era tratado por todos, fez um brinde aos noivos em inglês, referindo-se aos portugueses como “a nossa família”. E, para quem não soubesse do que estava a falar, explicou: “A afectuosa hospitalidade que recebemos de vocês no período mais angustiante das nossas vidas ainda está muito presente nas nossas mentes e nunca a esqueceremos. Nós, que perdemos a maioria dos nossos parentes de sangue durante o Holocausto nazi que terminou em 1945, temos agora uma família alargada em Portugal”.

O casamento de Graça foi apenas uma das ocasiões em que Berthe e Co se deslocaram a Portugal, apertando mais um laço numa amizade que tinha começado entre as duas famílias mais de 30 anos antes. E que se prolonga até hoje. O termo “família” usado entre uns e outros não era exagerado e Graça Abranches, hoje com 72 anos, ainda fica com os olhos cheios de lágrimas quando recorda “o afecto” entre a mãe e Berthe, mãe de Claire, de 73 anos, que, sentada ao lado da amiga, num hotel do Porto, diz: “O que a família da Graça fez é mais do que algumas famílias de sangue fazem umas pelas outras. Os meus pais foram refugiados privilegiados. Se não fosse a família da Graça… Se não fosse a persistência de Elsa em pedir que os meus pais arranjassem um visto português… Estamos aqui graças à teimosia da Elsa. As pessoas até acham que somos irmãs”.

Claire Nunes-Vaz parece fazer eco das palavras da mãe, Berthe, que a 3 de Março de 1941, numa das primeiras cartas que envia à amiga Elsa, a partir da sua nova vida, em Toronto, lhe diz ter colocado em local de destaque uma fotografia dos dois casais de amigos tirada em Portugal antes de se separarem – Berthe e Co, Elsa e António César. E conta: “A foto do ‘quarteto’ está diante de nós e assim vemo-la o tempo todo. Todas as pessoas que a vêem pensam que somos irmãs”. Uma sensação que nascera antes, logo numa das primeiras fotografias que as duas tinham tirado, quando se conheceram, em 1935, na cidade natal de Berthe, a belga Antuérpia. Perante esse primeiro retrato, em que ambas apresentam um penteado semelhante e vestidos cintados bem abaixo do joelho, Berthe já dizia à amiga, numa carta enviada a 25 de Setembro de 1935 para Portugal: “Acho que estamos muito parecidas nesta fotografia.”

Berthe e Elsa, o início de uma bela amizade

1935. É neste ano que começa a amizade entre as duas jovens — Berthe, com 23 anos, Elsa, com 22 —, graças a um conhecimento prévio entre os pais de ambas, que tinham negócios em comum. O pai de Elsa, João Mendes, estava ligado ao mundo das finanças. Já Elias Chaim Rutzki, pai de Berthe, trabalhava, como vários judeus de Antuérpia, com diamantes. No Verão daquele ano, João, a mulher, Teresa, e a filha única de ambos, Elsa, embarcam numa viagem pela Europa, o que não era estranho aos hábitos familiares. “O meu avô acreditava que as pessoas deviam abrir a pestana viajando, o que não era muito comum nos anos 30 em Portugal. Era normal saírem para fazer férias fora do país. Nesse ano, fizeram, como de costume, termas na Alemanha e daí partiram para a Bélgica, porque queriam ir à Exposição Universal e Internacional que se realizava em Bruxelas, antes de seguirem para Inglaterra”, conta Graça.

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Como estariam em terras belgas e João sabe que Elias Chaim tem filhas com idades pr]oximas da de Elsa, decidem passar por Antuérpia. Um telefonema a avisar que iam e estava feito o convite para que fossem jantar a casa dos Rutzki. Graça vai relembrando a história, perante o ouvido atento de Claire, que ainda sabe dizer algumas palavras em português e compreende parte da língua, interrompendo-a: “O meu avô era assim, convidava as pessoas todas para sua casa”.

Elias Chaim, casado em segundas núpcias com Chaja Rywka Lipszyc, tinha quatro filhas do primeiro casamento: Dora, Helene, Berthe e Anna (uma quinta filha, Rose, tinha morrido ainda adolescente); e um filho deste segundo matrimónio, Siegfried. Viúvo e com tantas filhas a cargo, Elias Chaim deixara que a família escolhesse Chaja, da sua terra natal, Grajewo, para sua segunda esposa. Quando se muda para Antuérpia, Chaja chega acompanhada pelos dois filhos do primeiro casamento, Bella e Isy, e ainda por uma irmã divorciada, Leja, e o filho desta, Zelik.

Com apenas um ano de diferença, Berthe e Elsa caíram "aos pés uma da outra”, descreve Graça. A família portuguesa leva a jovem judia a visitar Amesterdão e as duas famílias passeiam-se por Antuérpia, captando estes momentos em fotografias que Graça preserva cuidadosamente. Anna, a irmã mais nova de Berthe, pianista talentosa e premiada, acompanha os portugueses na visita à exposição de Bruxelas. Quando se separam, Elsa e Berthe devem ter prometido manter-se em contacto, porque a correspondência começa pouco depois. E nunca mais parou.

E isto, vai dizendo Graça, é que não é normal. “Houve uma grande empatia entre elas e ficaram a corresponder-se. Estas coisas geralmente acabam ao fim de um Natal ou dois, mas no caso delas, não”. Nem todas as cartas que Berthe enviou a Elsa resistiram à passagem do tempo, mas na casa de Coimbra da antiga professora universitária ainda existem várias. E é através delas, e das conversas que manteve com a mãe e com Berthe e a família que Graça sabe que, desde muito cedo, a mãe começou a preocupar-se com o que o futuro reservava à família da amiga judia a viver no centro da Europa.

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Com Adolf Hitler instalado no poder desde 1933, a Alemanha transformava-se e Teresa, mãe de Elsa, que a neta diz ter sido uma mulher “muito sensível”, sentiu-se mal no último ano em que a família esteve, toda junta, naquele país: 1936. “Já em 1935 ela não se sentira bem na Alemanha. Todo aquele ambiente que lá se vivia a afectou. Mas no ano seguinte, ela teve uma crise horrorosa, com ansiedade, alucinações auditivas, a sensação que estava a ser perseguida”, conta Graça. O caso foi tão sério que a família antecipou o regresso a Portugal.

Um casamento x 2

Por cá, a lisboeta Elsa preparava-se para terminar os estudos em Direito em Coimbra. Em Maio de 1937, Berthe tem um encontro que irá mudar a sua vida. Durante um passeio ao lago de Genval, em que acompanha um grupo de jovens judias, senta-se para almoçar numa esplanada com Bella e oferece-se para trocar uma nota de valor elevado a dois jovens que, na mesa ao lado, ouviam o empregado manifestar a dificuldade em dar-lhes o troco exigido. Os homens em apuros eram Co e o amigo de infância, Sal Agsteribbe. O almoço transforma-se num passeio e um jantar, que Elsa retribuiu comprando cerejas importadas de Itália, e muito caras. Os dois amigos acabariam por casar com as mulheres que encontraram naquele dia de sol – Co com Berthe, Sal com Bella. Claire recorda que, enquanto a mãe foi viva, levava sempre cerejas para casa, assim que elas começavam a aparecer.

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Berthe e Co casaram-se a 19 de Dezembro de 1937. Elsa e o também advogado António César, a 12 de Fevereiro de 1938, fixando-se em Coimbra. As duas amigas trabalham – a portuguesa como advogada, com o marido, a belga como secretária num escritório de advocacia. Muito atenta politicamente, a família portuguesa preocupa-se cada vez mais com o rumo que a Alemanha leva. Graça diz não ter qualquer dúvida que os pedidos da mãe para que a amiga tratasse de obter um visto português, para usar em caso de necessidade, começaram muito cedo. “Ela contava que lhe dizia: ‘O pior que pode acontecer é não o usares’”, diz.

E, então, começou a guerra. Elsa insiste com a amiga que arranje visto. O sobrenome do marido, Nunes-Vaz, oriundo da comunidade de judeus sefarditas de Amesterdão, onde Co nascera e passara a infância, antes de se mudar com os pais e a irmã para Antuérpia, facilitaria certamente o processo. Elsa insiste. Berthe resiste. A 10 de Outubro de 1939, em resposta a uma carta de Elsa, Berthe expressa o desejo que “os países neutros conservem a sua neutralidade”, mas parece ainda alheia à ameaça que paira sobre toda a Europa, lamentando-se mesmo por “de momento, viajar parecer impossível”, caso contrário, escreve, convidaria a amiga portuguesa “a passar umas férias” lá em casa.

A resistência de Berthe em deixar a Bélgica começa, contudo, a querer quebrar em Dezembro, quando, numa outra carta para Portugal, se lamenta pela falta de resposta a duas missivas enviadas a um conhecido de negócios das duas famílias, Tobias Stein, e em que este era questionado sobre as particularidades de Co, cortador de diamantes, poder exercer a sua profissão por cá. Também Elsa é questionada directamente sobre essa hipótese. “Não há inconveniente em um holandês se estabelecer [profissionalmente] em Portugal?”, pergunta à amiga. A 28 de Dezembro, Berthe responde de novo a uma carta de Elsa, agradecendo-lhe “toda a vigilância”. “Não encontro palavras para exprimir a minha gratidão para contigo por todas as gentilezas de que somos testemunhas”, escreve.

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Refugiados judeus em Lisboa aguardam embarque a bordo do "Serpa Pinto". Portugal era apenas um ponto de passagem para uma nova vida ullstein bild/Getty Images

Nessa altura, Berthe diz que Co pretende ir a Lisboa em Fevereiro e quer que ela o acompanhe. Uma visita curta, de poucas semanas, para verificar se seria exequível trabalhar e viver na capital portuguesa. Mas o mês passaria sem que o casal deixasse e Bélgica e, em Março, Berthe explica: “Circunstâncias exteriores à nossa vontade não nos permitiram decidirmo-nos a partir para Portugal. O nosso passaporte está em ordem há várias semanas e não creio que partamos nos próximos tempos. Compreendes bem, minha querida Elsa, que seria para nós um golpe muito duro e ao mesmo tempo arriscado”. A visita é, agora, atirada para o Verão. Se for possível.

A fuga

A 10 de Maio de 1940 tudo se precipita. Tropas nazis invadem a Bélgica e os Nunes-Vaz sentem, de imediato, as primeiras consequências. Co é acordado às 4h pelo barulho dos aviões alemães que lançam bombas sobre a cidade e parte de imediato com a mulher para casa dos pais, que têm um pequeno foco de incêndio no telhado, atingido durante o bombardeamento. Os quatro decidem fugir e ainda tentam despedir-se de Elias Chaim e das irmãs de Berthe, mas Chaja barrou-lhes a entrada, segundo relatou Co numa pequena memória que escreveu, em Fevereiro de 1988, para os dois filhos, Claire e Edward. Segundo o seu relato, a segunda mulher de Chaja, conflituosa e prepotente, que geria a família com mão-de-ferro, teria forçado um corte de relações que só não era total porque Elias Chaim e Anna ainda manteriam algum contacto às escondidas. Berthe deixou, por isso, a Bélgica, numa fuga que julgava ainda temporária, sem se despedir da família.

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O casal Nunes-Vaz e os pais de Co fogem de Antuérpia e tentam, primeiro, deixar o país a partir do Porto de Oostende, onde estava a ser organizada a evacuação dos cidadãos britânicos. A irmã de Co, Sophia, consegue partir para Inglaterra, já que o marido possuía um documento que lhe concedia a cidadania britânica, uma regalia concedida por um seu antepassado ter sido joalheiro da rainha Vitória. A irmã mais velha de Berthe, Dora, também ali vai com os três filhos e o marido, Jakob Saks, já que todos, por via do marido, possuíam cidadania britânica. Mas o casal terá entrado em pânico com a pressão constante da aviação germânica e o atraso na partida, e acabou por fugir, destruindo, pelo caminho, a documentação britânica, com receio que viesse a ser prejudicial – uma decisão que se revelaria dramática.

Incapazes de fugir através de Oostende, os Nunes-Vaz dirigem-se para sul e para França. É aí que os dois casais se separam, ao fim de alguns dias. Berthe e Co têm visto português, graças à insistência de Elsa, mas os pais do holandês, não. Os mais velhos insistem em que os mais novos partam e se ponham a salvo e estes acabam por ceder. Na zona de Toulouse encontram os pais de Sal Agsteribbe, que também possuem vistos portugueses, e decidem continuar a penosa viagem juntos, entre bombardeamentos, sem guarida certa e com noites dormidas ao relento ou em carros abandonados pela estrada, por falta de combustível para seguir viagem.

Nous sommes à Figueira da Foz

A vez seguinte que Elsa tem notícias da amiga é a 2 de Junho, quando Berthe lhe envia um postal de Hendaya. “Minha querida amiga Elsa, cá estamos nestas tristes circunstâncias, em vésperas de entrarmos em Espanha para chegarmos a Portugal.” Berthe escreve que “nunca lhes passara pela cabeça” que ela e Co seriam obrigados a partir, deixando tudo para trás “para salvar a pele”. “Se ao menos tivesse escutado o sábio conselho do meu marido, que há muito tempo queria que estivéssemos já em Lisboa”, repreende-se. Berthe refere ainda que o seu pai se encontra em França e diz a Elsa que espera estar em Portugal dentro de “cinco ou seis dias”.

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Berthe, Elsa, o casal Agsteribbe e Co repousam numa esplanada junto ao rio Mondego, em Coimbra

Vai demorar um pouco mais. É preciso esperar que a fronteira abra, atravessar Espanha, parar uns dias para que se recomponham das agruras da fuga. O casal chegará à fronteira de Vilar Formoso a 26 ou 27 de Junho e Co traduz nas suas memórias a sensação estranha de estar a procurar salvação num país de onde a sua família fora expulsa no século XVI, também por via de perseguições aos judeus. “O Co também dizia que, ao entrar em Portugal, foi a primeira vez que não teve de soletrar o nome. O funcionário da fronteira disse-lhe: ‘Os senhores não são refugiados, são portugueses’.” De Vilar Formoso os Nunes-Vaz e os Agsteribbe foram enviados para a Figueira da Foz, de onde Berthe, consultando os magros contactos telefónicos da época, encontrou sem dificuldade o número do escritório de António César Abranches. Agora, Graça ri: “O funcionário do escritório atendeu e disse ao meu pai: ‘Está uma senhora ao telefone a falar estrangeiro.’ Ele vai lá e ouve: ‘Ici, Berthe. Nous sommes à Figueira da Foz.”

A rede de ajuda ao casal judeu belga alarga-se a partir deste instante. A “família” que tinha sido de Elsa cresce com o apoio que se materializa num instante. António César Abranches não tinha contactos nos meios políticos e as condições de residência dos refugiados eram muito rígidas, não havendo possibilidade de estes abandonarem os locais que lhes eram atribuídos senão mediante autorização e em condições muito particulares — como tratar da documentação para abandonar o país. Mas, na faculdade, António César fora colega do visconde de Fijô, José Corte-Real. E Graça recorda agora que o visconde “era da situação”, pelo que não teve dificuldade em conseguir, junto da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), que se abrisse “uma excepção” para os Nunes-Vaz.

Assim, no dia 29 de Junho, Elsa apresenta-se na Figueira da Foz, num potente e enorme Cord, conduzido pelo motorista dos Fijô e acompanhada da viscondessa e do irmão mais novo do visconde, João Corte-Real, que fora colega de curso da advogada. Com a desculpa de que os Nunes-Vaz iam ensinar francês às crianças da família, o casal, bem como os Agsteribbe, seguiram para Coimbra, instalando-se na Quinta das Sete Fontes, propriedade da família Corte-Real.

No brinde que fez no casamento de Graça, quase 30 anos depois, Co referiu: “Nunca esqueceremos o dia em que Elsa foi à Figueira da Foz. Era 29 de Junho de 1940. Apresentou-nos ali à condessa [na altura ainda era viscondessa] de Fijô e ao irmão, que nos acolheu e aos nossos companheiros refugiados na sua casa, sem perguntas ou quaisquer condições; hoje estamos de novo a gozar da sua hospitalidade nesta viagem sentimental.”

Vistos para três destinos

Os quatro refugiados permaneceram em Coimbra cerca de um mês. Mas ansiavam por partir para Lisboa, onde estavam as embaixadas, a possibilidade de partir ou — esperavam — de poder fazer algum tipo de trabalho que lhes garantisse meios enquanto permanecessem em Portugal. De novo, os conhecimentos dos Corte-Real entraram em acção e foi obtida autorização da PVDE para que todos seguissem para a capital, onde os Nunes-Vaz se instalam na casa dos pais de Elsa.

Esta permanece em Coimbra, apesar de visitar frequentemente Lisboa (Graça diz que a mãe nunca se adaptou totalmente à pacatez da cidade do centro, continuando lisboeta até morrer), pelo que a correspondência entre as duas amigas é retomada. Entre os passeios aos cafés da capital e os jogos de bilhar de Co, poder-se-ia julgar que a vida dos Nunes-Vaz corria sobre rodas, mas a verdade é que há demasiadas preocupações a envolvê-los para que assim seja: as famílias de ambos que continuam em território ocupado; a impossibilidade de encontrarem trabalho; a dificuldade em conseguirem um visto para os Estados Unidos, que era a sua primeira opção.

Logo a 2 de Agosto, em papel timbrado do pai de Elsa, Berthe conta à amiga que recebeu uma carta da irmã “Annie”, informando-a de que a família está em Royan, uma cidade costeira francesa e que Dora se encontra em Paris. “Eles querem muito vir para Portugal, mas não creio que seja possível”, diz. Berthe conta ainda que a irmã de Co está em Inglaterra e que, tal como ele, não tem notícias dos pais, o que é “muito desencorajador”. Poucos dias depois, e através de um outro refugiado acabado de chegar a Lisboa, Berthe descobre que os pais de Co “estão numa situação terrível”, mas vivos “e sob a protecção do cônsul holandês em Toulouse”, o que deixa ambos mais descansados.

Nos meses que se seguem, até à partida em final de Dezembro, Berthe dá conta das dificuldades na obtenção do visto para os Estados Unidos e da decisão do casal de tentar, em alternativa, obter um visto para o Brasil. Contudo, um encontro num dos cafés frequentados por refugiados em Lisboa vai acabar por mudar os planos do casal. Co conhece Henry Freudmann, que o convida para dirigir uma fábrica de lapidação de diamantes que pretendia instalar em Toronto. Promete-lhe que conseguir visto para o Canadá será fácil e — tão importante como a proposta aliciante — que tudo fará para que os pais do holandês tenham também um visto para o Canadá à espera deles, mal consigam chegar a Portugal.

Apesar da relutância norte-americana, que coloca uma série de exigências que os Nunes-Vaz não conseguiam cumprir — nomeadamente que tivessem previamente meios financeiros para garantir a sua subsistência nos Estados Unidos — os vistos para os três destinos tentados acabam por chegar na mesma semana. Por tudo o que fora combinado com Freudmann, Co opta pelo Canadá e, no final do ano, o casal deixa Lisboa a bordo do navio Serpa Pinto, com passagem paga pelos pais de Elsa. Mas ainda antes de partir, a 9 de Outubro, Berthe escreve a Elsa: “Recebi uma carta postal da Bélgica, de uma amiga que me garante que o meu papá regressou a casa e que ela falou com a Annie.”

Regresso a Antuérpia

O destino dos Rutzki terá ficado traçado nessa decisão de regressar a Antuérpia. De todas as conversas que teve com os pais e com os Nunes-Vaz, e também pelas memórias de Co, Graça Abranches não tem dúvidas em nomear quem terá sido a principal responsável por esse regresso a casa: Chaja. Co dizia que ela era incapaz de se desfazer dos seus bens e que a família, simplesmente, tinha receio de se lhe opor. Além disso, correria o boato entre os refugiados que estavam em França que quem lidava com diamantes seria bem tratado pelos alemães, pelo que seria seguro voltar para Antuérpia.

Instalada em Toronto desde Fevereiro de 1941, depois de cerca de um mês em Nova Iorque, onde Co pôde comprar a maquinaria própria para fazer o seu trabalho, Berthe confessa a Elsa: “O meu coração sangra com a ideia do sofrimento atroz por que passam o meu pai e a minha irmã Annie. E também pela minha irmã Dora e os seus pequenos em Paris.” Relatando a quase impossibilidade de trocar correspondência com a família a partir do Canadá, ela pede a Elsa e aos pais desta que tentem escrever à sua família, mas que não lhe conte da sua situação confortável, para eles não ficarem ainda com mais pena por não estarem junto dela.

A aflição de Berthe vai crescendo, sobretudo quando, finalmente, chega “uma triste carta” do “pobre papá”, em que ele “suplica ao irmão em Nova Iorque que o faça sair daquele inferno”. “O que posso fazer? Se ao menos conseguisse fazer com que fossem para Portugal. Se pudéssemos fazer isso pela nossa pobre Annie!”, escreve ela a Elsa a 12 de Março. No Verão, finalmente, os pais de Co juntam-se ao filho no Canadá, depois de terem ainda passado algum tempo no campo de internamento de Gurs, em França, de onde fugiram. Uma alegria para todos, no meio da preocupação constante em que viviam.

Parte da correspondência canadiana perdeu-se, pelo que a carta seguinte que Graça guardou é já de Janeiro de 1942, quando Berthe conta ter tido “más notícias” da sua “pobre irmã Dora e dos seus três filhos”. “Estão a passar por uma necessidade extrema e eu não posso fazer nada por eles. Ainda tens novidades de Annie ou do meu pai? Espero que estejam todos bem.”

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A verdade é que para os Rutzki o tempo estava a chegar ao fim. Desde a Primavera de 1942 que todas as famílias judias a viver sob o mesmo tecto tinham de se inscrever na Association des Juifs en Bélgique (Associação dos Judeus da Bélgica, AJB). Foi através deste registo que os judeus seriam convocados para se apresentar na Kazerne Dossin, de onde seriam depois deportados para o campo de concentração e extermínio de Auschwitz, na Polónia ocupada.

Sem sobreviventes

A irmã e o sobrinho de Chaja, Leja e Zelik, foram os primeiros a ser deportados. A primeira seguiu para Auschwitz-Birkenau a 15 de Agosto de 1942, no transporte III, Zelik partiria para o mesmo destino no transporte XVII, que deixou a Kazerne Dossin a 31 de Outubro. Apesar de não existirem registos sobre quando e em que circunstâncias morreram (grande parte dos registos de Auschwitz foi destruído pelos nazis, antes de fugirem, perante a aproximação das tropas russas, em Janeiro de 1945), os responsáveis pelo memorial da Kazerne Dossin não têm qualquer dúvida de que ambos morreram após a deportação. O mesmo se aplica a todos os membros da família Rutzki que permaneceram em Antuérpia.

Helene foi detida no terceiro raide antijudeu em Antuérpia, na noite de 11 para 12 de Setembro de 1942. Saiu de Dossin no mesmo dia 12 de Setembro e chegou a Auschwitz dois dias depois. O marido, Chaim Szafran, tinha sido levado, com 2251 homens judeus da Bélgica, para os trabalhos forçados em França, para construir a chamada Muralha Atlântica. A 21 de Outubro é reenviado para a Bélgica e três dias depois deixa Dossin em direcção a Auschwitz, no transporte XV.

Em casa de Elias Chaim, tenta-se agora tudo para evitar a deportação. Os Rutzki, ao contrário da estrondosa maioria dos judeus que viviam no país, tinham obtido a nacionalidade belga. Por isso, num primeiro momento, ficaram fora da lista das deportações. Depois, Anna, uma pianista conhecida no país, vencedora de prémios, casa-se com Nico Workum, vice-presidente do AJB e responsável desta associação em Antuérpia. Também os membros do Conselho Judaico que dirigia a associação, como Nico, estiveram, numa primeira fase, protegidos das deportações, pelo que se julga que o casamento de Anna, em 1943, poderá ter sido “arranjado”, na tentativa de a manter segura. Mas também isso era uma ilusão.

Na noite de 3 para 4 de Setembro de 1943 ocorre o raide contra os judeus de nacionalidade belga, a Aktion Iltis. Elias Chaim, Chaja, Anna, Siegfried e Nico são levados para a Kazerne Dossin. O comboio que os levará para a morte em Auschwitz deixou a Bélgica a 20 de Setembro.

A morte também já encontrara Dora e o marido. Refugiados em Paris, os dois terão sido detidos ainda em Julho de 1942 e enviados para o campo de trânsito de Drancy, de onde foram deportados para Auschwitz a 22 de Julho desse ano. Os três filhos do casal, contudo, salvaram-se. Segundo Claire, foram escondidos por freiras francesas e acabaram por sobreviver à guerra, estabelecendo-se dois deles em Israel e outro nos Estados Unidos.

Berthe passou todos os anos de guerra sem saber qual fora o destino da família. Antes de deixar Lisboa, e numa altura em que as cartas dela para Elsa já eram escritas em português (o que começou a fazer a partir de Novembro de 1940 e enquanto permaneceu em Portugal), ainda encarava a viagem para o Canadá como uma necessidade temporária. “Eu sou [sic] persuadida que nós voltaremos para Lisboa depois da guerra, se a Inglaterra ganhar, para ir na Bélgica…”, escrevia a 5 de Dezembro de 1940. Mas, em 1946, Co partiu sozinho para a Europa para descobrir o que acontecera às famílias Nunes-Vaz e Rutzki e regressou devastado. Não sobrava praticamente ninguém. Depois do que descobriu, os planos para regressar à Bélgica foram completamente abandonados.

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Claire e Graça ainda hoje amigas, na fotografia num encontro no Porto

O desespero seria, de alguma forma, atenuado, pela chegada de um novo membro da família. Claire nasceria a 16 de Fevereiro de 1944. “A minha mãe dizia muitas vezes que eu lhe salvei a vida. Caso contrário, não teria aguentado tanto sofrimento”, conta a médica canadiana. As notícias de Portugal também não eram más: Graça Maria, filha da querida amiga Elsa, nasceria a 10 de Agosto de 1945.

Memória futura

Em 2014, Graça decidiu escrever a história do cruzamento das duas famílias, numa espécie de memória íntima para a família e impulsionada por um contacto para que o caso deles fosse incluído num documentário sobre os refugiados judeus em Portugal — que nunca seria concretizado. Criou um documento pontuado pelas fotografias que ainda guarda e onde não falta o testemunho do contacto do pós-guerra, que se prolonga até hoje. Chamou “Trânsito Transatlântico” à cronologia das viagens realizadas pelos Nunes-Vaz a Portugal e os Mendes Abranches ao Canadá. Berthe e Co vieram, pela primeira vez, em 1955. Regressaram no ano seguinte e de novo em 1958. Claire chegou pela primeira vez em 1959. E tirou a sua primeira fotografia com Graça — ambas de cabelos curtos, ambas de vestidos claros com saias rodadas abaixo do joelho, a canadiana mais alta e esguia do que a portuguesa.

Seguiram-se muitas outras viagens e, após a morte de António César, em Dezembro de 1981, Elsa continuou a ir sozinha visitar os amigos que viviam do outro lado do Atlântico. Em Fevereiro de 1990 faz a última visita ao casal, à casa deles no Arizona (Estados Unidos). Em Maio, era-lhe diagnosticado um cancro no estômago. O último encontro entre Elsa, Berthe e Co aconteceu um ano depois, em Portugal. Elsa morreria em Dezembro de 1993. Os Nunes-Vaz ainda veriam o novo século crescer: Co morreu em Junho de 2007, Berthe a 1 de Janeiro de 2013, com mais de cem anos.

A história podia ter terminado aqui, e já seria bem longa, mas Graça e Claire perpetuaram a amizade que as mães tinham começado e ainda hoje se visitam. A última vez que se viram foi em Agosto, quando a canadiana se deslocou a Portugal para estar presente na inauguração de Vilar Formoso, Fronteira da Paz — Memorial aos Refugiados e ao Cônsul Aristides de Sousa Mendes. Parte da história das famílias Nunes-Vaz e Mendes Abranches está contada naquele espaço criado em antigos armazéns da estação de caminho-de-ferro onde Co e Berthe chegaram em Junho de 1940, depois de a investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, Margarida de Magalhães Ramalho, responsável pelo conteúdo do museu, a ter descoberto da forma de que mais gosta — por acaso.

Margarida contactou Graça enquanto tentava descobrir descendentes da família Marta (a do marido de Graça, de quem esta, entretanto, se divorciou), por estes terem ajudado uma outra família de refugiados judeus. “Ela disse-me, ‘dos Marta pouco sei, mas tenho esta história.’ E ainda me enviou uma fotografia minha, com o filho dela ao colo”, ri-se a historiadora.

A amizade prévia entre as duas famílias, que contribuiu para que Berthe e Co tenham chegado a Portugal tão rapidamente, não é caso único entre os refugiados que passaram por Portugal, garante Margarida de Magalhães Ramalho, mas a amizade que persistiu entre as duas famílias, essa sim, diz, é bastante especial. “Não é muito comum essa amizade que persiste. As pessoas geralmente escreviam-se durante uns tempos e depois a vida acabava por fazer esquecer esses conhecimentos”, diz.

Graça Abranches tem uma explicação simples para tal persistência: “Eles viviam a vida familiar, partilhavam-se coisas complicadas de ambos os lados, apoiaram-se nos problemas que tinham.”

Porque se o drama vivido pelos Nunes-Vaz era inimaginável, a realidade de João e Teresa Mendes nos meses em que o casal partilhou a sua casa, também foi complicada. Sobretudo quando um irmão mais novo de Teresa, de que ela cuidara como um filho, deixou a Guarda e se instalou em Lisboa, com os filhos menores e a esposa, para morrer, consumido pela tuberculose. Teresa cuidou do irmão, prometeu-lhe olhar pelos filhos e ficou devastada com a morte dele. Berthe acompanhou de perto todo este processo e, já no Canadá, ficou preocupadíssima quando soube que a mãe da amiga, que a acolhera como se também ela fosse uma filha, tinha sido internada, várias vezes. Da primeira vez que recebeu a notícia, ela e o marido passaram a noite acordados, sem pregar olho tal era a aflição, confessou numa das suas cartas a Elsa. “Nós éramos uma família”, diz Graça. “Antes eram amigos, mas aqueles seis meses mudaram isso”, diz Graça, sob o olhar atento de Claire que, mais uma vez, se prepara para regressar ao Canadá. Um dia destes, hão-de visitar-se de novo. Cá ou do outro lado do mar.

Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de Domingo do PÚBLICO