Caso Selminho? Fake news, fake news

A actuação de Rui Moreira no litígio e posterior acordo judicial entre a Câmara e a Selminho é absolutamente transparente? Não é. O interesse público foi completa e cabalmente defendido em todo este processo? Há dúvidas. Ainda há respostas em aberto para que tudo fique claro? Absolutamente.

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ADRIANO MIRANDA / PUBLICO

Porto, 2017. A cidade respira saúde com os turistas, a Baixa há bem pouco decrépita rejubila de andaimes e fachadas novas, os restaurantes estão cheios, a Cultura volta a ser um dos pulmões da vida colectiva. Tudo se conjuga para consagração de Rui Moreira. Tudo? Não. No âmago da política municipal e no coração da campanha de Rui Moreira há uma mancha que persiste em obscurecer a caminhada triunfal do burgomestre para a reeleição: o Caso Selminho. Por muito que o presidente tente apelar às verdades alternativas, ainda que se esforce em rotular de fake news tudo o que ligue Rui Moreira investidor a Rui Moreira autarca, apesar da gritaria contra a “campanha suja” ou contra a “política mesquinha e insidiosa”, o caso Selminho persiste ao jeito das nódoas indeléveis. E persiste porque se sustenta em factos documentados, datas verificáveis e decisões assinadas. É isso que destempera Rui Moreira e o leva a esquecer a raiz de Nevogilde para por vezes actuar ao melhor estilo da Ribeira.

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Porto, 2017. A cidade respira saúde com os turistas, a Baixa há bem pouco decrépita rejubila de andaimes e fachadas novas, os restaurantes estão cheios, a Cultura volta a ser um dos pulmões da vida colectiva. Tudo se conjuga para consagração de Rui Moreira. Tudo? Não. No âmago da política municipal e no coração da campanha de Rui Moreira há uma mancha que persiste em obscurecer a caminhada triunfal do burgomestre para a reeleição: o Caso Selminho. Por muito que o presidente tente apelar às verdades alternativas, ainda que se esforce em rotular de fake news tudo o que ligue Rui Moreira investidor a Rui Moreira autarca, apesar da gritaria contra a “campanha suja” ou contra a “política mesquinha e insidiosa”, o caso Selminho persiste ao jeito das nódoas indeléveis. E persiste porque se sustenta em factos documentados, datas verificáveis e decisões assinadas. É isso que destempera Rui Moreira e o leva a esquecer a raiz de Nevogilde para por vezes actuar ao melhor estilo da Ribeira.

“A defesa dos factos mediante o uso da razão está a ser ameaçada”, dizia esta semana o director do El Pais ao PÚBLICO e o que se exige na análise desta polémica é apenas isso: um pouco de racionalidade. O que à partida implica um afastamento liminar de qualquer insinuação de que Rui Moreira cometeu crimes. Para que o caso Selminho seja devidamente escrutinado, avaliado e ajuizado pelos cidadãos tem de ser circunscrito à sua dimensão política. É neste campo que se devem fazer todas as perguntas: a actuação de Rui Moreira no litígio e posterior acordo judicial entre a Câmara e a Selminho é absolutamente transparente? Não é. O interesse público foi completa e cabalmente defendido em todo este processo? Há dúvidas. Ainda há respostas em aberto para que tudo fique claro? Absolutamente.

O caso Selminho é conturbado porque nasce de uma suspeita legítima. Entre 2005 e 2013 a Câmara do Porto sempre negou conceder direitos de construção ao terreno dos Moreira por se encontrar numa zona de protecção natural (uma escarpa). Em 2014, já com Moreira na Câmara, os serviços jurídicos do município dedicam-se a um exercício de contorcionismo e descobriram que “durante o processo de alteração do Plano Director Municipal (PDM) que ocorreu em 2012, o réu município declarou que a pretensão da autora (…) podia ser atendida nesse processo de revisão”. Não é isso que se lê nos documentos produzidos na era de Rui Rio. O que os documentos dizem é que “só no âmbito de uma revisão do PDM (…) se poderá reavaliar o estatuto de edificabilidade adoptado nas áreas de protecção de recursos naturais e em particular qual o estatuto de protecção a atribuir às escarpas”. O que era uma possibilidade, tornou-se pois um direito.

E é esse direito que fica consagrado num acordo entre a Selminho e a Câmara negociado em 2014. Na revisão do PDM que deveria decorrer até final de 2016, ou a Selminho garantia o direito de construir, ou receberia uma indeminização fixada por um tribunal arbitral com um juiz nomeado pela Câmara e outro pela imobiliária, cabendo-lhes a escolha do presidente – na sequência de uma entrevista do PÚBLICO em que Rui Moreira foi confrontado com este conflito de interesses, decidiu que haverá um juiz nomeado pelo Tribunal. Há portanto aqui um juízo político a fazer: devia a Câmara manter a sua negação aos direitos da Selminho e ir para tribunal, correndo o risco de ganhar ou de perder? Ou foi melhor dar o assunto dos direitos de construção como perdido, evitando assim uma indemnização?

Ambas as respostas são possíveis. Mas podiam e deviam ter sido dadas num debate aberto. Quando em causa estava um potencial conflito de interesses, seria exigível que todos soubéssemos o que se discutia e como se fazia a discussão. O que não é aceitável é que todas estas mudanças de estratégia, todas as negociações se tenham feito no silêncio dos gabinetes. Nem o vereador do Urbanismo sabia de nada. Rui Moreira diz que não levou assunto à câmara porque seria “participar politicamente num assunto que é técnico e é jurídico”. Não é. Os princípios republicanos e democráticos exigem que tudo o que seja interface entre os interesses privados dos titulares dos cargos políticos e as suas funções públicas sejam especialmente divulgados. Não foram. Ou só o foram devido ao trabalho da imprensa.

O pior vem a seguir. De forma mais ou menos acidental, os serviços municipais detectam em Outubro do ano passado que os terrenos da Selminho eram, afinal, da Câmara. Em Dezembro havia já a certeza, depois de um relatório dos serviços do Património ter confirmado a inscrição do prédio no domínio municipal. Uma vez mais, o silêncio conveniente imperou. Em véspera da pré-campanha, qualquer assunto kafkiano deve ser retirado do espaço público. Foi preciso esperar por Maio para que o PÚBLICO informasse os cidadãos, os vereadores e os deputados municipais dessa descoberta – o que lhe valeu uma ameaça de um processo judicial.

Perante os factos e a pressão sobre a realidade, a Câmara seguiria o único caminho possível: avançou para tribunal, alegando a existência de fraudes (na escritura do casal que posteriormente vendeu o terreno à família Moreira) e reclamando a posse plena da propriedade. Uma vez mais, tudo se fez no recato dos gabinetes. Mais: já depois de haver dúvida fundada sobre a propriedade dos terrenos, em Fevereiro deste ano, a Câmara e a Selminho celebram uma adenda ao acordo judicial que reconhece implicitamente a existência de direitos de construção à imobiliária, prolongando a data da sua resolução para Março de 2018. Mais um passo recatado num processo absurdo, que consiste em reconhecer de novo a terceiros direitos sobre bens que reclamamos como nossos.

Mesmo notando que a notícia do PÚBLICO lhe “é favorável”, Rui Moreira não parou de exalar irritação sempre que a oposição ou a imprensa lhe fazia perguntas sobre o tema. Percebe-se: para Moreira, o ideal seria passar estes dias de campanha no papel de imperador incontestado e incontestável. A democracia é um aborrecimento. Fake news? Campanha negra? A existência do terreno de uma empresa detida parcialmente por Rui Moreira que é reclamado pela Câmara liderada por Rui Moreira é um facto relevante em qualquer parte do mundo.

Que Rui Moreira, outrora um dos paladinos da liberdade da imprensa e famoso arauto dos valores intrínsecos do Porto liberal e burguês não o entenda é por si só um programa. É isso que o leva a recusar o debate, a insultar jornalistas, a operar a liturgia das verdades alternativas e a bradar pela existência de fake news. Não sendo Rui Moreira um bronco do calibre do senhor Trump, só há uma maneira de interpretar a sua reacção. Ou duas: o desespero por não conseguir apagar as perguntas incómodas e a incapacidade para perceber que a transparência é um bem público de primeira necessidade.