Quando Paulo Portas revogou o irrevogável

A inesperada demissão do ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros e líder do CDS abriu uma crise política em Julho de 2013. Portas voltou atrás e ficou no Governo liderado pelo PSD como vice-primeiro-ministro.

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Daniel Rocha

O chassis do carro é baixo e bate frequentemente na elevação do passeio de acesso à entrada do edifício. É preciso parar e passar devagarinho através do portão. Foi essa breve paragem que deu a oportunidade aos jornalistas de apontarem os microfones à condutora. Ao volante, Teresa Leal Coelho, vice-presidente do PSD e muito próxima do líder Pedro Passos Coelho, saía da sede do partido quando foi bombardeada com perguntas. A dirigente deixou cair uma frase algo optimista, do género “vamos resolver isto conjuntamente”. Aqueles segundos caíram no esquecimento, atropelados pelos acontecimentos das semanas seguintes, mas a resposta permitiu a alguns dirigentes do CDS acreditarem que nem tudo estava perdido na coligação governamental. Viviam-se as primeiras horas da crise política desencadeada pela demissão “irrevogável” de Paulo Portas de ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, a 2 de Julho de 2013. Demitia-se o líder do CDS, o partido mais pequeno do governo.

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O chassis do carro é baixo e bate frequentemente na elevação do passeio de acesso à entrada do edifício. É preciso parar e passar devagarinho através do portão. Foi essa breve paragem que deu a oportunidade aos jornalistas de apontarem os microfones à condutora. Ao volante, Teresa Leal Coelho, vice-presidente do PSD e muito próxima do líder Pedro Passos Coelho, saía da sede do partido quando foi bombardeada com perguntas. A dirigente deixou cair uma frase algo optimista, do género “vamos resolver isto conjuntamente”. Aqueles segundos caíram no esquecimento, atropelados pelos acontecimentos das semanas seguintes, mas a resposta permitiu a alguns dirigentes do CDS acreditarem que nem tudo estava perdido na coligação governamental. Viviam-se as primeiras horas da crise política desencadeada pela demissão “irrevogável” de Paulo Portas de ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, a 2 de Julho de 2013. Demitia-se o líder do CDS, o partido mais pequeno do governo.

Foi uma tempestade que apanhou de surpresa o país e que podia ter acabado com a carreira política de Paulo Portas. Não foi o fim, acabou por ser uma reciclagem para um novo ciclo do governo PSD/CDS. Até aí chegar, o país começou por assistir a duas demissões de peso – primeiro Vítor Gaspar, depois Paulo Portas – uma tentativa (falhada) para um compromisso de “salvação nacional” com o PS, promovida pelo então Presidente da República, e a uma recomposição da equipa governamental. Pelo meio, houve ainda uma moção de censura que soube a moção de confiança ao governo remodelado. Foi o Verão em que pairou o cenário de eleições legislativas antecipadas num país que estava ainda sob um programa de ajuda financeira externa.  

As tensões internas no governo e na relação com os representantes da troika, acumuladas em meses anteriores, ficaram algo expostas na carta de demissão do então ministro das Finanças, Vítor Gaspar, tornada pública pelo próprio a 1 de Julho de 2013. Nessa missiva, o ministro queixava-se das dificuldades para fechar a sétima avaliação da troika. Não o nomeou, mas percebeu-se que o entrave foi Paulo Portas, então ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros e líder do CDS, que se opôs à obrigação de aplicar uma taxa às reformas.

Há muito que o líder do CDS defendia que o governo de coligação deveria ter um pendor mais virado para a economia, leia-se crescimento, e menos para as finanças. Quando Passos Coelho se preparava para substituir Vítor Gaspar na pasta das Finanças, Paulo Portas viu a oportunidade que esperava para operar essa mudança no seio da coligação. Só que a substituta escolhida foi a então secretária de Estado do Tesouro Maria Luís Albuquerque. Portas viu-a como um “Gaspar de saias”. Sentiu-se “num beco sem saída” como confidenciou, naquela altura, ao PÚBLICO um centrista. Não comentou com nenhum dos seus próximos a intenção de se demitir. Nem na véspera à noite em que ficou a conversar com alguns dos dirigentes mais próximos depois do final de uma reunião do Conselho Nacional do partido. Por isso, o espanto foi muito – até o próprio Passos se confessou surpreendido com a decisão –, quando, a 2 de Julho por volta das 16h20, foi divulgado o pedido de demissão qualificado como “irrevogável”. Nele se lia que Paulo Portas obedecia à sua “consciência”, que “mais não podia fazer” e que discordava da “mera continuidade” no Ministério das Finanças. No ano seguinte, o líder do CDS justificaria em congresso: “O que teve de ser teve muita força”. Em 2015, Passos Coelho revelaria que soube da demissão por SMS, o que foi desmentido pelo seu parceiro de coligação.

Confusão depois da demissão

A demissão foi notícia em quase todo o mundo, alarmou os mercados, afundou a bolsa portuguesa e fez disparar os juros da dívida. O anúncio haveria de dar azo a múltiplas histórias, como a célebre: ‘onde é que estava quando soube da notícia?’ Uma delas é a de Filipe Lobo d’Ávila, secretário de Estado da Administração Interna, que estava a acompanhar o ministro numa audição parlamentar. Recebeu uma nota escrita do seu chefe de gabinete a informar da decisão de Portas. Cinco minutos depois, recebeu um novo papel onde se lia que os ministros do CDS – Pedro Mota Soares e Assunção Cristas – também se iriam demitir em solidariedade. Minutos depois uma terceira nota informava-o que os secretários de Estado do CDS estavam a escrever cartas de demissão. Estas demissões não se vieram a confirmar. Mas, naquele momento, um deputado do PCP interrompeu a audição e fez uma interpelação ao presidente da comissão para perguntar se Lobo d’Ávila ainda era secretário de Estado.

A decisão de Portas foi conhecida meia hora antes da tomada de posse da nova ministra das Finanças em Belém, o que contribuiu para a confusão. Os centristas não sabiam se deviam comparecer e Paulo Portas não respondia a mensagens ou a chamadas telefónicas. Num ambiente estranho, a cerimónia decorreu sem nenhum ministro do CDS – nem Assunção Cristas nem Pedro Mota Soares – ou outro dirigente do partido. Só Paulo Núncio, que se mantinha na equipa como secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, compareceu e assinou o acto de posse.

Poucas horas depois, numa comunicação ao país, o primeiro-ministro desfez as dúvidas sobre uma eventual queda do governo: “Não me demito, não abandono o meu país”. A bola estava do lado do partido mais pequeno. Paulo Portas reuniu então o seu núcleo duro e ouviu críticas ao seu comportamento. Foi mandatado para conversar com o líder do PSD e encontrarem “uma solução viável para a governação em Portugal”. Enquanto prosseguiam as conversações entre Paulo Portas e Passos Coelho, a esquerda reclamava eleições legislativas antecipadas. O então líder do PS António José Seguro defendia que as legislativas fossem marcadas para o mesmo dia das autárquicas desse ano – 29 de Setembro.

No final das negociações, quatro dias depois do anúncio da demissão, chegou a solução: Portas continuaria no governo como vice-primeiro-ministro, Maria Luís manter-se-ia como ministra das Finanças. Uma machadada fatal no “irrevogável” da demissão. Um ano mais tarde, o líder do CDS justificaria à SIC Notícias o motivo que o levou a voltar atrás na decisão: “A composição do governo ficou mais equilibrada”. Mas o recuo ficou-lhe colado à pele.  

Nessa altura, PSD e CDS dão ainda um sinal de reforço de compromisso: anunciam coligação às europeias de 2014 (acabaram por ir também coligados às legislativas de 2015). Tudo se preparava para que a solução governativa fosse abençoada por Cavaco Silva. Só que o então Presidente da República aproveita o momento para tentar trazer o PS para o governo PSD/CDS. Acena até com eleições legislativas antecipadas em Junho de 2014 (data da saída da troika) desde que Seguro garantisse apoio ao novo executivo. Começam as negociações para o “compromisso de salvação nacional” como lhe chamou Cavaco Silva. Enquanto os representantes do PSD, CDS, PS e do Presidente se sentavam à mesa das conversações, que se centraram em cortes de 2,5 mil milhões de euros na despesa do Estado, Mário Soares, fundador do PS, e José Sócrates, ex-primeiro-ministro, anunciavam ser contra qualquer apoio do partido ao PSD/CDS. Entretanto, o Presidente da República decide fazer uma viagem às Ilhas Selvagens há muito programada. Com o país a braços com uma crise política e com receio de uma nova hecatombe económica, Cavaco Silva aparece na televisão a anilhar cagarras e até mesmo a falar com elas. Regressa a Lisboa sem que as negociações tenham chegado a bom porto.

A 19 de Julho, o líder do PS anuncia o fim do diálogo. Nada feito. O Presidente da República aceita, então, a solução governativa proposta por Passos Coelho que implicou uma remodelação no executivo. Saiu Álvaro Santos Pereira do Ministério da Economia, entrou o então dirigente do CDS António Pires de Lima. Assunção Cristas ficou sem parte do seu super ministério – o Ambiente ficou por conta do social-democrata Jorge Moreira da Silva – e Pedro Mota Soares ganhou a pasta do Emprego a juntar à da Segurança Social. Para o Ministério dos Negócios Estrangeiros entrou Rui Machete. A nova composição tomou posse a 26 de Julho. Nos dias seguintes, vários protagonistas do PSD e CDS faziam juras de que o Governo era sólido e coeso. E foi com essas palavras que PSD e CDS defenderam uma moção de confiança no Parlamento. Quando os deputados das duas bancadas se levantaram para votar a favor, várias pessoas nas galerias do plenário puseram um nariz vermelho de palhaço como forma de protesto. A coligação seria a primeira a cumprir a legislatura, mas as feridas abertas pela crise demoraram a sarar. 

Verões quentes é um rubrica em que se recordam momentos marcantes de outros Verões