E ao décimo dia, quem vai levar para casa o Leopardo?

O balanço possível de uma edição que continuou a surpreender até ao final: os júris de Locarno70 não vão ter tarefa fácil.

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Ponto de ordem à mesa: não haverá muitos festivais como Locarno, capazes de projectar o Zombie de Jacques Tourneur sob chuva forte para uma Piazza Grande deserta, à excepção de escassas dezenas de ferrenhos com chapéus de chuva e anoraques, e de abrir as secções competitivas a filmes tão completamente fora de formato como Dragonfly Eyes, de Xu Bing, As Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra, ou Did You Wonder who Fired the Gun?, de Travis Wilkerson.

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Ponto de ordem à mesa: não haverá muitos festivais como Locarno, capazes de projectar o Zombie de Jacques Tourneur sob chuva forte para uma Piazza Grande deserta, à excepção de escassas dezenas de ferrenhos com chapéus de chuva e anoraques, e de abrir as secções competitivas a filmes tão completamente fora de formato como Dragonfly Eyes, de Xu Bing, As Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra, ou Did You Wonder who Fired the Gun?, de Travis Wilkerson.

Foram os nossos filmes preferidos de uma competição de bom nível cujo palmarés se saberá, como é habitual, a meio da tarde de sábado, quando o júri presidido pelo cineasta Olivier Assayas e completado pela actriz Birgit Minichmayr, pelos realizadores Jean-Stéphane Bron e Miguel Gomes e pelo produtor Christo Konstantokoupolos divulgar em conferência de imprensa as suas escolhas para os Leopardos de Ouro e Prata. Nestas coisas dos prémios, já se sabe, cada cabeça sua sentença (o contingente da América Latina, por exemplo, cerrou fileiras atrás de La Telenovela Errante, o decepcionante filme póstumo de Raul Ruiz). Um filme que foi ganhando tracção aos poucos foi Winter Brothers, do islandês Hlynur Pálmason, o primeiro a ser exibido no concurso, numa altura em que muita imprensa ainda não tinha chegado; e a recta final foi particularmente forte, com o bem recebido Good Luck, de Ben Russell, Dragonfly Eyes e a “surpresa” de último dia que é o notável En el Séptimo Día.

O seu autor, Jim McKay, é um veterano da cena indie americana que tem passado os últimos anos a dirigir televisão, e esta pequena história sobre uma semana na vida de um imigrante mexicano em Brooklyn que tem de escolher entre jogar a final do campeonato de futebol amador e manter o seu emprego num restaurante traz para primeiro plano os “invisíveis” da grande cidade com atenção e respeito. É uma pequena pérola de storytelling clássico americano na tradição nova-iorquina de Sidney Lumet ou, mais recentemente, Ira Sachs.

Foi, aliás, um bom ano para os americanos em Locarno. Se exceptuarmos Gemini, de Aaron Katz, cuja má recepção foi bastante unânime, as restantes entradas na competição – En el Séptimo Día, Did You Wonder who Fired the Gun? e Lucky, de John Carroll Lynch, com Harry Dean Stanton – estiveram muito acima da média. E, nos Cineasti del Presente, Dustin Guy Defa foi recebido calorosamente com a sua estreia, Person to Person, expansão para longa-metragem da curta com que ganhou o Curtas Vila do Conde em 2014, mosaico atento, descontraído e bem-disposto de um dia na vida de uma mão-cheia de habitantes de Brooklyn.

Menos evidente, contudo, será o que o júri presidido pelo egípcio Yousry Nasrallah vai escolher desta competição secundária dedicada a primeiras e segundas obras, onde o português Pedro Cabeleira marcou presença demasiado discreta com Verão Danado, que não entusiasmou por aí além. Se o Concurso Internacional teve a sua quota-parte de surpresas e de títulos de peso, nos Cineasti del Presente houve menos filmes a “saltarem” para fora, apesar das reacções positivas a Milla, de Valérie Massadian, ou ao bastante experimental Meteors, do turco Gürcan Keltek.

Mas foi da Signs of Life, a secção paralela de vanguarda que este ano passou a competitiva, que saíram alguns dos “choques” do festival. Já falámos de Era uma Vez Brasília de Adirley Queirós e de The Dead Nation de Radu Jude, mas terá de se falar de Cocote, segunda longa do dominicano Nelson Arias. Alberto é jardineiro em Santo Domingo e vai passar alguns dias à sua aldeia natal para assistir ao funeral do pai; o filme concentra-se nesse período para encenar de modo telúrico, brutal, uma série de confrontos de classe, educação, religião e poder que têm como centro o próprio conflito espiritual de Alberto, cristão evangélico em choque constante com as crenças afro-dominicanas da sua família e com a sede de vingança pela morte do pai às mãos de um intocável local. É um filme vistoso, cruzando texturas (16mm, digital, película, cor, preto e branco) de modo por vezes demasiado ostensivo, mas que constrói um retrato simultaneamente etnográfico e ficcional de uma vivência latina sem nunca cair no exotismo gratuito – uma revelação que muito boa gente gostaria de ter visto no concurso principal e foi o justíssimo vencedor do prémio inaugural Signs of Life, cujo júri foi composto pelos críticos Chris Fujiwara e Jordan Cronk e pelo programador Mario Bonsanti (e que atribuiu igualmente uma menção especial a Era uma Vez Brasília).

Tudo razões para concordar que os 70 anos de Locarno foram uma das melhores colheitas do festival nos últimos anos – para lá dos momentos de pura emoção cinéfila: Todd Haynes comovido a apresentar a sua primeira longa, Veneno, dedicando a projecção aos elementos da equipa e do elenco que já não estão entre nós; Astrid Ofner, viúva de Hans Hurch, a apresentar com voz embargada uma projecção especial de A Palavra, de Carl Theodor Dreyer, perante uma plateia repleta de críticos e cineastas que quiseram assim homenagear o director da Viennale, que tinha neste o filme da sua vida.

Falta saber quais são os Leopardos de Locarno70; as emoções cinéfilas seguem dentro de momentos.