O exercício físico é um medicamento?

Protege contra as doenças mais importantes e tem mesmo um efeito terapêutico em várias. Não tem efeitos secundários relevantes. É recomendado pela OMS e todos os médicos o deviam aconselhar. Deve o exercício físico ser visto e “receitado” como um medicamento?

Foto
PÚBLICO/Arquivo

A função do exercício e da atividade física na promoção da saúde é hoje um tema incontornável. A lista de potenciais benefícios que pessoas fisicamente ativas podem esperar é longa e inclui a prevenção primária e secundária de inúmeras doenças e condições.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

A função do exercício e da atividade física na promoção da saúde é hoje um tema incontornável. A lista de potenciais benefícios que pessoas fisicamente ativas podem esperar é longa e inclui a prevenção primária e secundária de inúmeras doenças e condições.

Foto

E há efeitos na saúde mental, na preservação da função cognitiva e no bem-estar psicológico — por exemplo, na resistência ao stress — cujo impacto na saúde pública não está ainda bem quantificado. Por exemplo, um extenso relatório publicado recentemente na revista Lancet salienta o papel central do exercício físico na prevenção e controlo da demência, destacando o assinalável impacto social desta condição nas próximas décadas.

Foto

Muitas instituições e diretrizes internacionais na área da saúde recomendam que os médicos e demais profissionais de saúde — muito especialmente os médicos de família e as suas equipas — não só avaliem o nível de atividade física dos utentes como um "sinal vital" de saúde (tal como fazem para o peso ou consumo de tabaco) como façam também um aconselhamento para a sua prática. Mesmo com pouco tempo disponível em consulta, e depois de conhecido o nível de atividade física do utente (que pode também ser avaliado por um enfermeiro), esta "receita" pode incluir apenas a indicação de que a atividade física é importante para a saúde e quais as recomendações para minutos ativos por semana, felicitando os utentes que já os atingem. Isto demora menos de um minuto. Em apenas 2-3 minutos, o médico pode também encaminhar o utente para um profissional de exercício reconhecido; para programas e recursos na comunidade que ofereçam garantia de qualidade técnica e de continuidade; ou para uma consulta com um médico diferenciado na área do exercício/medicina desportiva. Finalmente, em menos de cinco minutos é possível fazer um aconselhamento breve, usando algumas técnicas de modificação comportamental com evidência de efeitos motivacionais e promotores de autorregulação pelo utente.

O aconselhamento breve pelo médico é eficaz na adesão à prática de atividade física pelos utentes, especialmente em populações específicas, como doentes ou pessoas mais velhas ou com menos recursos, para quem a palavra do médico é uma fonte de informação insubstituível. Isto aplica-se também a outros profissionais de saúde, pois todos podem, sem grande gasto de tempo, fazer junto dos seus utentes o reforço da importância de alguns princípios alimentares básicos, de não fumar, de controlar o peso, e de fazer atividade física regularmente. É também cada mais frequente termos outros agentes e serviços de saúde a participar nesta agenda. É o caso de serviços hospitalares, das clínicas privadas de saúde e também das farmácias. Muitas já oferecem serviços por parte de um nutricionista e podemos esperar oferta similar na área da prescrição de exercício, por um fisiologista do exercício.

Por todas estas razões, fará sentido a analogia do exercício físico a um medicamento? Sim e não.

Sim

Devido aos seus efeitos seletivos em diversos sistemas fisiológicos, e como parte da terapêutica recomendada para muitas condições, o exercício compara bem com (e até ultrapassa em alguns casos) o efeito de fármacos. É o caso da recuperação após enfarte do miocárdio ou no tratamento da diabetes do tipo II. Também corrobora esta tese o facto de, tal como um medicamento, a dose de exercício que deve ser adotada para cada condição clínica — isto é, o tipo de exercício, a frequência, a duração, os intervalos de recuperação entre sessões, as precauções a ter, etc. — ser específica e baseada numa avaliação inicial e no conhecimento individualizado do utente. Finalmente, fazer a promoção do exercício e atividade física em todos os contactos com o utente é algo que faz parte das boas práticas médicas, tal como reconhecido por todas as importantes associações e organizações da saúde.

Não

Ao contrário da toma de um medicamento, fazer atividade física é um comportamento complexo. São inúmeras as oportunidades para se ser ativo e cada uma exige alguma aptidão física e competências motoras e de autorregulação comportamental. Por exemplo, manter um programa de exercício perto de casa e da rotina normal é uma experiência completamente diferente do que fazê-lo em viagem ou num país estrangeiro. Igualmente, tomar um medicamento sozinho ou em grupo, numa pista de atletismo ou imerso na natureza, é essencialmente a mesma coisa... Bem diferente seria no caso de uma caminhada ou corrida! Ser-se ativo envolve também uma ação intencional sobre o meio envolvente e é por isso um ato ecológico, o que faz toda a diferença: para a pessoa, que altera o seu ecossistema social e até físico (por exemplo, prefere uma casa com espaço para guardar as bicicletas da família); e para o ambiente, que sofre ou beneficia do impacto destas escolhas (por exemplo, em mais/menos poluição).

Os determinantes sociais, biológicos e sobretudo psicológicos da prática de atividade física têm hoje uma ciência própria. Tal como a fisiologia do exercício, que é uma área diferenciada do conhecimento, ainda mais se envolver respostas ao esforço por parte de pessoas doentes ou em risco. Por isso, a prescrição de exercício a estas populações exige uma rede de profissionais com formação especializada: fisiologistas do exercício, preferencialmente com uma formação mínima de quatro anos em ciências do desporto e um estágio no terreno; e médicos com formação pré e pós-graduada nas áreas da fisiologia do exercício e medicina desportiva, e experiência em prescrição de exercício.

Conclusão: Promover a atividade física é boa medicina e deve integrar a prática diária dos dos profissionais de saúde. Tal como um medicamento, o exercício físico tem efeitos terapêuticos isolados e coadjuvantes. Contudo, ser fisicamente ativo é marcadamente diferente de ingerir um fármaco. Envolve experiências de vida e interações com o meio ambiente marcantes. É simultaneamente fonte e expressão de autonomia e de literacia física. Mais do que uma forma de medicina, a atividade física é uma forma de viver a saúde e de procurar estar bem.

É um cordão de ligação à vida, aos outros e ao que nos rodeia. Nunca seria inventado um medicamento assim.

Pedro Teixeira, professor da Faculdade de Motricidade Humana
Rita Tomás, médica de Medicina Desportiva e de Medicina Física e de Reabilitação
Romeu Mendes, médico de Saúde Pública

Os autores escrevem segundo o Acordo Ortográfico