Divórcio ou saída de um clube? Acerto de contas complica acordo no “Brexit”

Nem relações comerciais nem mobilidade dos trabalhadores. O tema do momento das negociações entre a UE e o Reino Unido é o de saber como serão saldadas as contas entre as duas partes.

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A saída do Reino Unido está agendada para 2018 FRANCOIS LENOIR/REUTERS

Acertar as contas no caso de um divórcio nunca é fácil, e quando se está a falar de uma relação que dura há 44 anos e envolve, não pessoas, mas países inteiros, as complicações podem tender a multiplicar-se. É isso que está já a tornar-se evidente nas negociações de saída do Reino Unido da União Europeia (UE) iniciadas na passada segunda-feira.

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Acertar as contas no caso de um divórcio nunca é fácil, e quando se está a falar de uma relação que dura há 44 anos e envolve, não pessoas, mas países inteiros, as complicações podem tender a multiplicar-se. É isso que está já a tornar-se evidente nas negociações de saída do Reino Unido da União Europeia (UE) iniciadas na passada segunda-feira.

Como é que se acertam as contas neste caso? Quanto é que o Reino Unido tem a pagar aos restantes Estados membros da UE? E quanto é que a UE deve dar ao Reino Unido? As variáveis a ter em conta são tantas que não existe apenas uma resposta a cada uma destas perguntas.

No arranque destas negociações, como acontece nos divórcios mais difíceis, as posições estão extremadas. Do lado da União Europeia fala-se da necessidade de o Reino Unido ter de pagar à cabeça um valor superior a 100 mil milhões de euros. Por seu lado, o governo britânico responde com a intenção de não assumir qualquer custo. No meio, a generalidade das análises independentes a esta questão aponta para um cenário em que o Reino Unido terá efectivamente de pagar para sair da UE, mas o valor da factura depende em larga medida dos pressupostos que virão a ser acordados pelas duas partes no decorrer das negociações.

Uma dessas análises foi feito por três economistas no think tank europeu Bruegel, que estudaram a fundo esta questão e chegaram à conclusão que, assumindo os pressupostos mais variados, a factura britânica pode ir, no cenário mais favorável para o Reino Unido, de um pagamento à cabeça de 54,2 mil milhões de euros, com um reembolso de 28,8 mil milhões por parte da UE nos anos seguintes (o que significa um pagamento líquido de longo prazo de 25,4 mil milhões) até, no cenário mais penalizador para os britânicos, a um pagamento à cabeça de 109,1 mil milhões, com 44 mil milhões de reembolso posterior da UE (resultando num pagamento líquido de 65 mil milhões).

Estes resultados ajudam a explicar aquilo que, no início das negociações, é pedido pela UE, que aponta para o cenário mais favorável para si e apresenta a factura mais pesada possível. E mostram que o governo britânico, apesar de ter poucos argumentos para sair da negociação com um pagamento zero, prefere partir para a negociação com uma posição de princípio ultra-ambiciosa.

Mas colocando de parte as já esperadas estratégias de negociação agressivas dos dois lados, é importante perceber porque é que existe uma tão grande diferença entre o cenário de pagamento mínimo e de pagamento máximo calculado pelos economistas do Bruegel.

Uma das primeiras razões está relacionada com a possibilidade de o Reino Unido vir ou não a ter o direito a receber dinheiro pelos activos que são detidos pela UE. Neste caso, aquilo a que se vai ter de responder durante a negociação é se se deve considerar a saída do Reino Unido da UE como um divórcio ou apenas como algo semelhante a um cancelamento de uma inscrição num clube.

No primeiro caso, o que acontece é que, para além dos compromissos de pagamentos e transferências de parte a parte, também são divididos entre as partes dos valores de activos, como o património imobiliário, que pertencem à UE. Na prática, isto significaria que na factura a pagar pelo Reino Unido se teria de deduzir a sua quota parte desses activos.

Por outro lado, se se estiver a falar de uma simples saída de um clube, os compromissos de pagamentos e transferências assumidos pelos dois lados também se devem manter, mas não há lugar a repartição dos activos. E assim sendo, o Reino Unido não teria nada a receber pelo valor do património das instituições europeias. De acordo com os cálculos do Brugel, a diferença entre estes dois cenários justifica só por si um intervalo na factura britânica que ronda os 8 mil milhões de euros.

Mas as razões para a enorme variedade de cálculos não se fica por aqui. Por exemplo, é também necessário chegar-se a um acordo em relação a que compromissos de pagamento de parte a parte se podem considerar como assumidos. Isto é, que contribuições futuras para o orçamento da EU, o Reino Unido vai mesmo acabar por pagar e que transferências da EU para o Reino Unido terão, apesar do Brexit, de ser feita.

A saída do Reino Unido está agendada para 2018, mas pagar unicamente os compromissos assumidos até essa data é apenas uma das hipóteses possíveis. Um dado importante para esta questão é o facto de, em 2013, o Reino Unido ter concordado com o plano orçamental da UE para os sete anos entre 2014 e 2020. Esta pode ser a principal referência para o acordo, mas ainda assim várias hipóteses de contabilização se colocam.

Os autores do estudo da Bruegel dizem que, nos cálculos do orçamento europeu para o qual o Reino Unido ainda terá de contribuir, se pode: incluir todos os compromissos orçamentais relacionados com o plano de 2014 a 2020, o que inclui por exemplo pagamentos conjuntos dos Estados membros já previstos de 580 mil milhões entre 2019 e 2025; incluir todos os compromissos feitos antes da efectivação do “Brexit” em 2018, o que inclui 398 mil milhões de euros entre 2019 e 2023; incluir apenas os pagamentos planeados até 2020; incluir unicamente os pagamentos a realizar até à data do “Brexit”.

Depois há mais uma questão que terá uma influência de peso no cálculo da factura britânica: como tratar o desconto excepcional de que o Reino Unido beneficiou durante muitos anos nos orçamentos europeus, o chamado rebate britânico?

Se se considerar que, nas contribuições que venha a fazer para os próximos anos, o desconto continua a ser aplicado, então a parte do orçamento europeu suportada pelo Reino Unido é de 12%. Mas se a EU insistir que o rebate agora já não faz sentido, então o Reino Unido poderia ser forçado a contribuir com 15,7% do orçamento. No pior cenário, isso poderia aumentar a factura em cerca de 27 mil milões de euros.

Importantes nas negociações serão também outras questões como o tratamento a dar ao pagamento futuro das pensões dos actuais funcionários da EU (o Reino Unido deve ajudar a pagá-las) ou de que forma é que os fundos europeus já planeados no Reino Unido (para o sector público e privado) devem ser entregues.

Por fim, depois de se chegar a um acordo quando aos montantes a pagar de lado a lado, outra discussão poderá surgir quanto ao momento dos pagamentos, com a UE a querer que o Reino Unido pague tudo à cabeça e as transferências europeias a serem feitas ao longo do tempo, como inicialmente previsto.

Perante a complexidade dos temas em discussão e a diferença de posições a que se assiste actualmente, aquilo que já se tornou evidente é que o tempo para se poder chegar a uma negociação bem sucedida é pouco. Os autores do estudo do Bruegel lembram que “a dimensão da factura do ‘Brexit’ irá depender de compromissos e escolhas políticas estruturais” e temem que as negociações venham a ser “controversas e possam fazer descarrilar outras negociações acerca de assuntos economicamente mais importantes, como o futuro comércio ou a mobilidade financeira e laboral entre a UE e o Reino Unido”.