O ritmo da nossa vida está contido na música de Jlin

Há poucos anos, insegura com o que fazer da vida, começou a trabalhar numa fábrica de aço. Agora, a partir de elementos de música urbana de rua, cria sonoridades de complexidade rítmica como é raro escutarmos, sendo ouvida em museus e enaltecida por gente das vanguardas ou da dança contemporânea.

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Jerrilyn Patton, 29 anos, ou seja Jlin: cada tema são pilhas e pilhas de motivos rítmicos que se vão sobrepondo, misturados com elementos vocais e sons exóticos das mais diversas proveniências

Há dias, em entrevista ao músico e compositor americano William Basinski, o criador de The Desintegration Loops, a monumental obra sobre o 11 de Setembro de 2001, este dizia-nos que o novo álbum de Jlin era a coisa “mais refrescante e desafiante” que ouvira em muito tempo, “pela forma incrível como trabalha os pequenos detalhes rítmicos.” O compositor de 59 anos é suspeito porque colabora num tema do disco, mas não deixa de ser significativo que um dos criadores de alguma da música minimal ou ambiental mais fascinante do nosso tempo diga que as intricadas arquitecturas rítmicas da jovem Jerrilyn Patton, 29 anos, ou seja Jlin, o deixam fulminado pela sua inventividade.

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Há dias, em entrevista ao músico e compositor americano William Basinski, o criador de The Desintegration Loops, a monumental obra sobre o 11 de Setembro de 2001, este dizia-nos que o novo álbum de Jlin era a coisa “mais refrescante e desafiante” que ouvira em muito tempo, “pela forma incrível como trabalha os pequenos detalhes rítmicos.” O compositor de 59 anos é suspeito porque colabora num tema do disco, mas não deixa de ser significativo que um dos criadores de alguma da música minimal ou ambiental mais fascinante do nosso tempo diga que as intricadas arquitecturas rítmicas da jovem Jerrilyn Patton, 29 anos, ou seja Jlin, o deixam fulminado pela sua inventividade.

“Sinto-me lisonjeada quando dizem esse tipo de coisas acerca do meu trabalho, principalmente quando é alguém que tanto respeito”, diz-nos por sua vez, via e-mail, Jlin, que, ao segundo álbum, se mostra uma das criadoras musicais mais estimulantes da actualidade, alguém que é capaz de gerar todo um disco a partir de motivos percussivos digitalizados, apostando em climas austeros em vez da exuberância com uma precisão cirúrgica, numa obra que guarda surpresas a cada esquina, tão modernista quanto ancestral, vanguardista e popular, para ser exposta quer em festas livres ou selectos museus de arte contemporânea.

“Essa transversalidade é um dos aspectos mais curiosos da minha actividade nos últimos tempos, nunca sei bem quando me querem para pôr música para dançar no meio do nada ou quando querem ouvir a minha música num espaço mais institucional”, diz. Esse aparente paradoxo não é difícil de perceber, já que começou por ser associada ao footwork de Chicago, uma das inúmeras variações da música house, ao lado do juke ou ghetto house, que irromperam nos anos 1990 na cidade-berço dessas tipologias. Depois foi-se emancipando. Hoje a sua música tanto responde à adrenalina como à melancolia, misto de novas formas executadas com grande elegância, como se cada tema fosse um imprevisível exercício rítmico em diferentes idiomas, denotando, ao nível das texturas, referências orientais, africanizadas ou ocidentais.

Cada tema são pilhas e pilhas de motivos rítmicos que se vão sobrepondo, misturados com elementos vocais e sons exóticos das mais diversas proveniências, mas sempre de maneiras inesperadas e com uma microscópica atenção aos detalhes. O novo álbum chama-se Black Origami e não é por acaso, já que é uma admiradora da arte secular japonesa de dobrar o papel.

“Agrada-me a ideia de a partir de uma mera folha de papel, recorrendo às dobras geométricas, ser possível representar as mais diversas coisas, de seres a objectos”, explica ela, fazendo um paralelismo com a sua forma de produzir música. “Necessito de tempo, acaba por ser um trabalho muito artesanal ir escolhendo sons, ‘samples’ e elementos que se ajustem uns aos outros. Não existe uma forma linear. Trabalho elemento a elemento. Por outro lado o processo começa sempre como uma página em branco. Não tenho fórmulas ou materiais definidos. Vou-me adaptando.”

Footwork

As construções rítmicas complexas de Jlin começam com simplicidade, embora sejam, faz questão de sublinhar, “resultado do caos de referências, influências e estímulos que me rodeiam.” Ou seja, a sua música é singular, o que é diferente de imune a contaminações. Já havia sido assim no excelente álbum de estreia de 2015 (Dark Energy) e volta a sê-lo no sucessor, que consegue ser ainda mais desafiante, tratado de arquitecturas rítmicas muito rigorosas com ocasionais apontamentos vocais.

Na fase inicial do seu percurso foi conotada com o footwork, mais uma cultura urbana de características localizadas onde a dança e a música se misturam. Em termos sonoros assenta na velocidade, nos ritmos sincopados e nos fragmentos sonoros transfigurados de diversas origens, enquanto a dança envolve o movimento rápido dos pés com torções executadas com grande mestria.

Graças ao activismo da editora londrina Planet Mu, e do seu principal responsável, Mike Paradinas, a pulsação rítmica instável do género acabou por ganhar protagonismo a partir de 2010 com o lançamento das antologias Bangs & Works Vol.1 e 2, onde o footwork era mais do que música funcional para fazer dançar e se transformava em qualquer coisa mais expressionista, contendo temas de DJ Rashad, DJ Roc, Traxman ou de Jlin. E foi assim que ela, que nasceu e ainda vive em Gary, Indiana, pequena cidade industrial a 50km de Chicago, acabou por ser apanhada na vaga.

Entre a adolescência e a idade adulta, apesar de ser admiradora de Prince ou Sade, não tinha grandes desígnios musicais. Foi quando começou a contactar pelas redes sociais com o trabalho (do já falecido) DJ Rashad ou RP Boo, que tornar-se produtora de footwork virou prioridade. Em 2009, profere ela, um facto veio a revelar-se decisivo no seu percurso. “Estava a dar a escutar à minha mãe um tema novo que havia feito, baseado num sample da canção Portuguese love de Teena Marie, quando ela me disse que gostava do que ouvia mas achava que poderia fazer melhor, argumentando que já conhecia a Teena Marie, mas ainda não tinha percebido muito bem quem é que eu era musicalmente. Isso fez-me mudar radicalmente a minha relação com a criação.”

Esse aprofundamento de uma identidade viria a reflectir-se no lançamento do primeiro álbum em 2015. Só aí viria a abandonar o seu emprego regular numa fábrica de aço (siderurgia), que havia aceitado aos 22 anos, insegura na altura sobre o que desejava mesmo fazer. “Quando comecei a poder ter tempo para mim as coisas foram-se modificando”, assume, recordando que a viragem aconteceu quando actuou no importante festival Unsound na Polónia. “No final dessa performance muita gente veio dar-me os parabéns e ficavam atónitas quando lhes dizia que a música e os palcos não eram a minha prioridade. Foi aí que a minha amiga Holly Herndon me convenceu que era possível ganhar a vida com a música, dizendo-me que tinha todas as condições para actuar pelo mundo, incentivando-me a ter mais tempo para mim e para a música, para desenvolver as minhas performances e viajar.”

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Mahdumita Nandi

Uma das viagens que fez, o ano passado, foi a Lisboa. Faz sentido. É que a sua sonoridade acaba por conter pontos de contacto com as polirritmias dos projectos portugueses da editora Príncipe, tendo estado presente numa das noites mensais da editora, no MusicBox, em Lisboa, ao lado de DJ Firmeza ou Nídia Minaj. “Um das coisas mais incríveis é perceber que existem pontos de contacto improváveis entre quem faz música em África, na Índia, nos EUA ou na Europa, em todo o mundo na verdade, e quanto mais viajo mais vejo disso. Em Portugal não é diferente. Cada local tem a sua própria energia, mas há pontos de ligação.”

Mas nem só noutras músicas populares urbanas aquilo que faz tem reflexo. É também possível traçar paralelismos com alguma da electrónica mais arrojada dos anos 1990, simbolizada por Photek, Autechre ou Aphex Twin – que a admira e com quem se diz poderá vir a colaborar no futuro – ou ainda dos digitalismos actuais mais retorcidos personificados por Arca ou pela americana Holly Herndon, conectada com as electrónicas experimentalistas, que aliás colabora na faixa 1%, uma das poucas que se aproxima de conceitos rítmicos de dança. “Holly é uma amiga foi muito fácil trabalhar com ela”, diz, referindo que com William Basinski, que com ela colaborou na mais climática Holy child, “foi um pouco mais intimidador”, embora ele “tenha sido fantástico, sugerindo imensas ideias, como as vozes maravilhosas que se ouvem no tema e que acabei por ir modelando depois à minha maneira.”

A rapper sul-africana Dope Saint June empresta a sua voz ao tema Never created, never destroyed, e o toque do produtor neo-futurista Fawkes (Halcyon Veil) também se faz sentir em Calcination, mas as colaborações estão longe de se cingir à música. Em 2014 foi seduzida pelo designer de moda Rick Owens para criar a banda-sonora para a apresentação da sua colecção outono-inverno na semana de moda de Paris e no ano seguinte fez o mesmo, desta feita para a Chanel. Agora está a preparar a música para o próximo espectáculo, Autobiography, a estrear em Outubro, do bailarino e coreógrafo britânico Wayne McGregor, que se tornou numa estrela no meio da dança a partir de 2006 quando foi coreógrafo residente do Royal Ballet de Londres e que já colaborou noutras alturas com gente da música como Jon Hopkins, Jamie xx ou A Winged Victory For The Sullen.

Durante a preparação do novo álbum quem também se revelou importante foi a coreógrafa e performer Avril Stormy Unger, de Bangalore, na Índia, fundadora do colectivo de dança The Stormy Factory, que Jlin acabou por visitar diversas vezes nos dois últimos anos. As duas actuaram aliás em conjunto em diversas ocasiões, com Jlin a assumir que alguns temas do álbum, com destaque para Carbon 7, se inspiraram directamente nos “movimentos e na dança” de Avril, com ela a dizer que têm ambas “a mesma noção de tempo e espaço”, que é “algo que se revela na forma espiritual como ela dança e na minha música também.”

Essa ligação com a dança, iniciada no footwork, e depois difundida para as movimentações contemporâneas já estava aliás presente no primeiro álbum. O tema de abertura chamava-se mesmo Black ballet, embora nesse caso a inspiração tenha sido o coreógrafo afro-americano Alvin Ailey. O que é curioso é que a sua música está longe de conter as características utilitárias da música de dança convencional, com uma construção rítmica ritualista que parece reflectir as contradições do mundo actual.

É música física e comunitária que é produto da intensidade social da rua, mas refeita por uma mente introvertida. É qualquer coisa orgânico reconvertido para o digital. É o tempo, a memória e os espaços permeáveis ao ritmo. “Sim, o ritmo”, afirma ela, “é uma das coisas mais importantes da nossa vida, por vezes não temos grande noção disso, mas acaba por atribuir sentido às coisas mais insignificantes e às mais importantes do nosso quotidiano. É incrível como ao longo de um ciclo de vida os nossos ritmos se vão alterando ou sobrepondo, presentes em tudo o que fazemos.”

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