Paula Hawkins: “Sou meio infeliz, vejo tragédia em todo o lado”

O sucesso de A Rapariga no Comboio tirou-lhe tempo para a escrita, mas permitiu-lhe viver dela. Paula Hawkins, 44 anos, acaba de publicar em Portugal o seu segundo romance, outro thriller protagonizado por duas irmãs e a sua relação com um rio. Chama-se Escrito na Água.

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Paula Hawkings DR

Calor, muito calor e centenas de leitores à espera de um autógrafo. Paula Hawkins, autora do fenómeno de vendas A Rapariga do Comboio (TopSeller, 2016), esteve na Feira do Livro de Lisboa para apresentar o seu segundo romance, Escrito na Água (também TopSeller). Depois de uma estreia com milhões de exemplares vendidos em todo o mundo, dos quais 130 mil em Portugal, e uma adaptação ao cinema por Tate Taylor com Emily Blunt como protagonista, Hawkins sentiu a pressão do segundo livro, a história de duas irmãs separadas por um rio numa pequena cidade ficcional do Norte de Inglaterra. A crítica tem-se dividido na avaliação deste thriller, o segundo assinado com o nome real da escritora natural da antiga Rodésia, actual Zimbabwe, onde nasceu em 1972. Em 1989 mudou-se para Londres. Foi jornalista especializada em finanças e escritora de quatro novelas românticas com o pseudónimo Amy Silver. Nesta conversa, a última antes de apanhar um voo para Inglaterra, falou dessa escrita como um treino, e só isso. “Não gosto de finais felizes”, disse no seu sotaque britânico e enquanto pedia mais uma garrafa de água.

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Calor, muito calor e centenas de leitores à espera de um autógrafo. Paula Hawkins, autora do fenómeno de vendas A Rapariga do Comboio (TopSeller, 2016), esteve na Feira do Livro de Lisboa para apresentar o seu segundo romance, Escrito na Água (também TopSeller). Depois de uma estreia com milhões de exemplares vendidos em todo o mundo, dos quais 130 mil em Portugal, e uma adaptação ao cinema por Tate Taylor com Emily Blunt como protagonista, Hawkins sentiu a pressão do segundo livro, a história de duas irmãs separadas por um rio numa pequena cidade ficcional do Norte de Inglaterra. A crítica tem-se dividido na avaliação deste thriller, o segundo assinado com o nome real da escritora natural da antiga Rodésia, actual Zimbabwe, onde nasceu em 1972. Em 1989 mudou-se para Londres. Foi jornalista especializada em finanças e escritora de quatro novelas românticas com o pseudónimo Amy Silver. Nesta conversa, a última antes de apanhar um voo para Inglaterra, falou dessa escrita como um treino, e só isso. “Não gosto de finais felizes”, disse no seu sotaque britânico e enquanto pedia mais uma garrafa de água.

Escrito na Água surge dois anos depois da sua estreia com o sucesso de A Rapariga no Comboio. Sentiu a clássica pressão do segundo romance?
Sim, claro. Comecei a escrever Escrito na Água antes de A Rapariga no Comboio ser publicado. Felizmente sabia a história que queria contar, tinha as personagens definidas na minha cabeça. Quando A Rapariga no Comboio se tornou esse grande sucesso distraiu-me muito do segundo livro. Tive de fazer digressões, entrevistas, mas pelo menos sabia o que queria escrever. Houve pressão, comecei a sentir-me bastante ansiosa em relação ao livro e ao que as pessoas poderiam dizer. Honestamente, tentei por tudo não pensar nisso e focar-me na história. Estava muito ansiosa, mas também sabia que não podia fazer nada em relação a isso, caso contrário entraria numa situação como a de outros escritores que levam dez anos a escrever o livro seguinte.

Receava o bloqueio.
Sim. Porque estar preocupada era inevitável. O meu objectivo era combater essa pressão escrevendo.

Conseguiu um objectivo: viver da escrita.
Sim, é um facto. É uma situação muito feliz.

A Rapariga no Comboio foi o primeiro romance publicado com o seu nome real. Antes escreveu quatro novelas românticas com pseudónimo.
Sim, ou comédias românticas, suponho que lhes chamam assim (risos). Nunca me senti muito confortável a escrever aquele tipo de literatura. O primeiro foi uma encomenda, mas aquela nunca seria a minha escolha, não é esse o tipo de livros que leio, não me sinto bem com finais felizes. Sou meio infeliz, vejo tragédia em todo o lado. Resumindo, gostei de os escrever, foi uma boa experiência enquanto treino, mas não era para mim.

Que treino lhe deram?
Desenvolvimento de enredo, construção de personagens, ter a sensação da dimensão de um livro, essas coisas. Foi útil.

Quando A Rapariga no Comboio apareceu muitos críticos fizeram comparações com outros livros de mistério...
Sim, em particular com Gone Girl [romance de Gillian Flynn, publicado em Portugal pela Bertand com o título Em Parte Incerta]. Os media e os profissionais de marketing têm a necessidade de catalogar e entendo as razões, sobretudo a comparação com Gone Girl. Um e outro são livros de mistério, escritos por mulheres, com girl no título, mas as protagonistas, apesar de vulneráveis, são de um tipo completamente diferente. As duas não podiam ser mais diferentes. E sim, os dois são histórias sobre casamentos, mas quase todos os livros são histórias sobre casamentos. Não me senti magoada ou insultada. Acho os dois livros bons, gosto muito de Gone Girl.

E o rótulo thriller doméstico, serve-lhe?
É estranho, não é? Acontece com muitos livros escritos por mulheres. Acho que não explica muito, não ajuda muito, mas mais uma vez é a necessidade de dizer que é um certo tipo de livro. O rótulo domestic noir cobre géneros diferentes de livros que muitas vezes são escritos por mulheres e envolvem coisas que lhes acontecem. Escrevo sobre esses universos. O primeiro livro era sobre uma mulher casada desaparecida, este é sobre família. Talvez sejam assuntos domésticos, mas muitos assuntos são domésticos. É onde as nossas vidas decorrem grande parte do tempo e derivam muito de eu ser uma mulher escritora.

Há uma longa tradição de mulheres e literatura de mistério. Vê-se como parte dessa tradição onde actualmente se integram, com nuances diferentes, autoras nórdicas com personagens mulheres complexas?
Interesso-me pelas vidas de mulheres, o lugar das mulheres na sociedade, o modo como a sociedade as trata e a maneira como as mulheres se tratam umas às outras. Essas coisas são importantes para mim e levo esses assuntos para os meus livros. E as minhas personagens principais são mulheres porque me parece natural explorar as vidas das mulheres. E acho que há uma grande apetência por isso, afinal a maioria dos leitores deste tipo de livros são mulheres. Não estou com isto a dizer que me sento a tentar escrever livros para mulheres, mas faz parte de mim enquanto mulher tentar entender essas vidas e os desafios a que estão sujeitas muito a sério.

Há muitos detalhes técnicos nos seus livros. Como faz a pesquisa? Fala com criminalistas, por exemplo?
Para este falei com um antigo detective e uma amiga, advogada especialista em crime, mas não faço muita pesquisa a não ser verificar coisas técnicas. Sou um pouco preguiçosa.

Escrito na Água passa-se numa pequena vila ficcional de Inglaterra, Beckford. O que a inspirou a criar este lugar?
[uma rapariga interrompe a conversa:
- “só queria dizer que adoro o seu livro e gostava muito de lhe desejar sucesso. Não está a dar autógrafos, está?”
- “Estou a dar uma entrevista, mas se me der já o livro, só este, assino rapidamente. Como se chama? Só este ou meto-me em sarilhos”]
Os leitores são todos tão novos aqui! Aqui em particular. Nunca vi leitoras tão novas. Gosto disso. Mas surpreende-me, porque esta história é bastante adulta. Desculpe, voltemos a Bekford. Passei algum tempo no norte de Inglaterra, a paisagem é muito bonita e queria que o livro se passasse numa paisagem assim, mas não havia uma vila que fosse exactamente o que eu queria. Pretendia uma geografia muito precisa e tinha de ter um rio. Isso iria permitir criar todo o resto da história. Decidi inventar a minha própria cidade, com as suas pessoas estranhas e histórias estranhas. É uma espécie de realidade que inventei para aquela paisagem, mas a cidade não é real.

Fala muito esquematicamente da sua escrita, como se tudo fosse desenhado.
Talvez, mas não faço desenhos. Tirei muitas fotografias quando andei por aqueles lugares, mas não sou capaz de desenhar.

Este livro e o anterior são determinados pela paisagem.
Acho que é importante para um livro ter um sentido de lugar, dá a sensação de se saber onde se está. Em A Rapariga no Comboio foi fácil porque toda a gente sabe como é aquela comunidade suburbana. Neste tive de fazer mais descrições para ter certeza de fornecer uma boa fotografia do sítio; como era o rio...

Isso leva-nos ao papel da água neste romance. É central e metafórico.
A água é muito inspiradora para muitos escritores. Este livro é muito sobre memórias e memórias de infância, de verões passados, e muitos de nós temos essas memórias relacionadas com férias junto ao mar, ou num lago ou num rio; são memórias muito importantes ligadas à água e geralmente muito felizes. Mas para quem tem uma má experiência, a água passa a ser aterrorizadora. A água simboliza tudo isso, felicidade, leveza, mistério, medo. De um modo ou outro há uma relação pessoal com um grande corpo de água e, por isso, enquanto romancista, é um óptimo medium para trabalhar, para jogar com.

Aqui a água é geradora de fobia. Tem falado muito nisso.
Por isso, por causa de uma ideia de terror que nasceu ali e que vai sendo alimentada.

A água esteve na génese do livro?
Comecei com as irmãs, Nel e Jules, a relação entre elas e as memórias diferentes que têm dessa infância, as diferentes interpretações. Foi o princípio, mas sabia que queria que a água desempenhasse um papel fundamental. Não sabia bem porquê. Depois soube que o rio iria dividi-las, pensei no que poderia ter acontecido no seu passado, uma que adorava água e a outra que tinha medo.

Confessou que é muito pessimista. A escrita e mistério alimenta-se dessa sua característica pessoal?
Sim, no sentido em que estou sempre a imaginar que vai acontecer o pior possível. Talvez isso ajude. Recear, ser ansiosa... A minha imaginação funciona nesse circuito, guia-me por esses caminhos mais negros e ajuda-me a escrever.

Em entrevistas anteriores diz que se fecha a escrever. Como gere o facto de ser uma vedeta da literatura com a solidão que a escrita exige?
Sim, tornou-se muito mais difícil depois de tudo isto. Habitualmente sento-me na minha cadeira, no meu escritório, à secretária, muito sossegada, sem música, sem qualquer distracção.

O romance policial ou de mistério obedece a regras. É preciso respeitá-las.
Não sou muito boa a definir esse tipo de coisas, nem sei se obedeço sempre às convenções. Normalmente há um mistério ou um crime por resolver. Mas há pensamentos tão diferentes sobre o tema. Não penso nisso como o fundamental. Gosto de tentar perceber porque é que alguma coisa acontece, quem a provocou. Mas o porquê é a questão mais importante para mim e para a qual tento encontrar resposta.

Os leitores deste género esperam encontrar essas respostas.
Sim, esperam respostas. Talvez não para todas as questões. Neste livro há algumas que não são resolvidas, muitas são deixadas em aberto. Uma das escritoras de que gosto é Tana French (irlandesa, autora de Desaparecidos, Civilização). No primeiro romance dela há dois mistérios e um nunca é resolvido. Muitas pessoas odeiam isso, eu gosto. Porque a vida é assim, há coisas que nunca saberemos. Isso é horrível, mas real, verdadeiro.

Numa entrevista à NPR disse que o que lhe interessa mais neste tipo de romance é a psicologia do crime. Explique em que sentido.
É verdade, porque é que as pessoas chegam a esse ponto? Lemos essas histórias nos jornais e a maior parte dessas pessoas vive vidas comuns e de repente qualquer coisa acontece. O que as leva a tal? É isso que me fascina. Ou quando acontece a coisa terrível dou por mim a perguntar o que acontece a essas pessoas depois disso, como se recupera? Do trauma, do luto, do medo. Ou será que nunca se recupera? Que estratégias são necessárias para continuar? Este livro quer ser sobre isso. Como se recupera de um trauma ou se ultrapassa um medo. Interessa-me o impacto destas coisas na mente e como afectam as histórias que contamos a nós mesmos para que as nossas vidas sejam menos dolorosas.

Falava da complexidade destas mulheres, as do primeiro e do segundo romance. Como convive com elas?
Vivi com a Rachel durante muito tempo e ela não é uma pessoa feliz para se viver. No processo de escrita o que lhes acontece é tão verdadeiro que não é muito confortável para mim. Por exemplo, alguém como Louise Whittaker [mãe de Katie, rapariga que morre na água] é uma personagem muito triste, acho que nunca se recupera de uma tragédia daquelas, não há um fim feliz para ela, a única coisa que posso tentar fazer é que o filho dela tenha uma vida boa. É horrível, não gosto de pensar nisso, mas tenho de pensar.

Fala como um deus a decidir o destino das suas criaturas.
Eu sei (gargalhada). Espero que ele também tenha estas angústias.

O que gosta de ler?
Não leio muito romance policial ou de mistério, sobretudo quando estou a escrever. Não quero interferências de outros enredos. De resto, gosto muito de Kate Atkinson. Gosto de Pat Barker, Margaret Atwood, Cormac McCarthy... Gosto de todo o tipo de ficção, mas sobretudo se tiver um elemento de crime, guerra, qualquer coisa assim. Não leio muito livros engraçados ou leves. Leio sobretudo escritores de língua inglesa, não conheço, por exemplo, autores portugueses e tenho pena. Estou consciente de que as minhas leituras são, nesse aspecto, muito limitadas. Tenho de expandir mais.