Memória do Estado Novo, para que te queremos?

Foram locais da mais dura repressão e do mais forte simbolismo da ditadura. O tempo de hoje, aliado do descuido e adverso à história, já relativizou o seu significado. O ritual desta manhã no Parlamento mantém o encontro dos portugueses com o seu passado recente.

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Há precisamente uma semana, o ministro da Cultura, Luís Castro Mendes, apoiou a criação na Fortaleza de Peniche — prisão política até ao 25 de Abril de 1974 — de um museu da resistência à ditadura, excluindo concessionar o monumento a privados para ali ser criado um hotel. Embora o governante tenha admitido a atribuição de zonas do espaço para um café e restaurante, acabou a polémica sobre a função a ser atribuída aquelas instalações.

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Há precisamente uma semana, o ministro da Cultura, Luís Castro Mendes, apoiou a criação na Fortaleza de Peniche — prisão política até ao 25 de Abril de 1974 — de um museu da resistência à ditadura, excluindo concessionar o monumento a privados para ali ser criado um hotel. Embora o governante tenha admitido a atribuição de zonas do espaço para um café e restaurante, acabou a polémica sobre a função a ser atribuída aquelas instalações.

“Foram tidas em conta muitas das nossas propostas, houve convergência de posições”, congratula-se, ao PÚBLICO, Raimundo Narciso, do movimento cívico “Não Apaguem a Memória”. Este grupo tinha reagido com duras críticas à inclusão do forte de Peniche entre os 30 edifícios do programa Revive – Reabilitação, Património e Turismo. Iniciativa conjunta dos ministérios da Economia, Cultura e Finanças que abre o património do Estado ao investimento privado.

“Para nós, é uma questão fundamental a protecção dos locais históricos relacionados com a repressão, nomeadamente as prisões e as sedes da PIDE [polícia política]”, afirma Raimundo Narciso. A inclusão nesta lista do Revive de uma das mais duras prisões da ditadura é um destes exemplos.

Menos sinistra, sem dúvida, mas igualmente relevante, é a hipótese de concessão do forte de Santo António da Barra, em São João do Estoril. Foi neste local, residência de Verão de António Oliveira Salazar, que em 3 de Setembro de 1968 o ditador caiu de uma cadeira de repouso com consequências que levaram à sua substituição na presidência do Conselho de Ministros, a 18 de Setembro, por Marcello Caetano. Assim nasceu, fruto do acaso de um acidente doméstico, o que foi apelidado de “Primavera marcelista”: uma suavização do regime, com sinais de maquilhagem mais do que de alteração efectiva.

“Os locais são muito importantes porque é o que nos dá a referência em relação ao nosso passado”, pondera a historiadora Irene Pimentel. “Houve países, como a Alemanha, que tiveram a preocupação em refazer cidades, como Würzburg, fruto da destruição da II Guerra Mundial. Em Portugal, esse problema não existe, mas há a alteração de funções e a destruição do património por omissão”, continua.

“Não me choca a mudança de funções nalguns casos, mas que a antiga sede da polícia política [na Rua António Maria Cardoso] seja transformada em condomínio residencial é diferente. O mesmo acontece com as prisões, o que tira a possibilidade a quem lá esteve de fazer o luto”, conclui a historiadora. O Museu do Aljube Resistência e Liberdade, cujas instalações albergaram presos políticos entre 1928 e 1965, é uma excepção.

“O processo que estava em curso no forte de Peniche, e que foi agora interrompido, não ia aproveitar o edifício mas o espaço, quando a dimensão simbólica era a do edifício”, destaca Rui Bebiano, director do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra. Comprometida estava a utilização de determinado tipo de construção ligada à repressão como legado da memória.

“Alguns edifícios que associamos à ditadura já eram históricos antes do Estado Novo. O que me parece ter uma marca é o que é hoje o Pólo 1 da Universidade de Coimbra”, exemplifica quanto ao património edificado de raiz pela ditadura. “Depois, temos as escolas primárias ou a recuperação dos castelos, mas não houve uma política organizada e consistente”, considera.

Ruptura e deslegitimação

Rui Bebiano não é adepto da perpetuação do passado ou da vigência de uma certa moda que se refugia nos aspectos folclóricos de antanho: “Quem sempre retorna ao passado são os ditadores em busca de legitimação, mas não me parece aconselhável o processo de esquecimento”, alerta.

Esta não é, apenas, uma característica portuguesa. “É geral no mundo a que chamamos mais desenvolvido, é um processo inevitável agravado pela maior rapidez em que tudo ocorre”, refere. No qual o futuro parece imediato e o passado eternamente longínquo, donde descartável.

Contudo, em Portugal o espaço da memória histórica tem um tempo próprio marcado pelo compasso da evolução política do último quartel do século passado.

“No Estado Novo, vivemos uma overdose do passado”, recorda Rui Bebiano. “Na Revolução [após o 25 de Abril de 1974] considerou-se esse excesso de passado como um fardo de que era preciso libertar-se e, ligado a isto, houve um sentimento de culpa colorido, por exemplo o remorso do homem branco em relação à colonização”, relata.

“A solução não é o regresso da história em força, o que se passou a seguir ao 25 de Abril é compreensível, mas agora já é tempo para termos um olhar reflexivo, crítico e sem complexos, sem esconder coisas nem martirizarmo-nos por elas”, sintetiza o director do Centro de documentação 25 de Abril de Coimbra.

Um movimento de equilíbrio favorecido pela natureza da mutação do regime, da ditadura à democracia, a partir de 1974. “Foi uma ruptura política e uma forte deslegitimação simbólica do passado autoritário”, salienta o politólogo e historiador António Costa Pinto. “Os agentes da PIDE foram presos, houve saneamentos na Função Pública, montaram-se campanhas de dinamização cultural para a erradicação dos valores do Estado Novo e, na melhor tradição da elite republicana, foi criada a Comissão do Livro Negro sobre o Fascismo”, enumera.

Ritualizar o passado

Foi, de facto, um processo singular. É gritante, por exemplo, a diferença com a transição democrática em Espanha, operada com franjas do interior do regime franquista que não deslegitimou a sua origem — a vitória na Guerra Civil de 1936-39 — o seu apoio tradicional, os militares, e que não levou a uma clara separação de águas entre o “antes” e o “depois”.

Mas nem tudo é linear nos dois lados da fronteira ibérica: enquanto os orifícios da metralha das tropas de Salgueiro Maia nas paredes do Quartel do Carmo antes da rendição de Marcello Caetano foram tapados com cimento em gesto cirúrgico, os buracos das balas da pistola de Tejero Molina, tenente-coronel da Guarda Civil na tentativa de golpe de Estado de 23 de Fevereiro de 1981, continuam visíveis no tecto do hemiciclo do Congresso dos Deputados de Espanha. Como se em Lisboa se quisesse apagar a memória e em Madrid se reavivasse a história em cada olhar para a cobertura do Parlamento.

Há outros casos de sinal diverso. Em Espanha existem batalhas toponímicas para transformar Calles Generalissimo, em honra de Franco, em civis Gran Vias, enquanto em Portugal a alteração foi imediata. Um estudo de Filipa Raimundo e António Costa Pinto revela que existem 119 instalações e artérias com o nome de Humberto Delgado e idêntico número de ruas associadas ao Estado Novo. Apesar de entre nós ter havido a ruptura de regime, imediatista, que levou a uma revolução toponímica, e em Espanha uma transição de convivência entre contrários.

“A memória histórica do passado autoritário e do 25 de Abril em Portugal é vaga”, anota Costa Pinto. Estudos do Instituto de Ciências Sociais revelam níveis de notoriedade curiosos de diferentes personagens políticos. Num primeiro patamar, estão Salazar, Mário Soares e Álvaro Cunhal. “Noutro, entre 20 a 30% de reconhecimento, Marcello Caetano, Spínola e Vasco Gonçalves”, anota o politólogo.

“Uma das características gerais dos sistemas políticos democráticos é que o interesse da cidadania está virado para o presente e para o futuro em detrimento da memória histórica”, relativiza. Uma tendência que, em Portugal, é contrariada pela ritualização do passado.

“A tradicional cerimónia do 25 de Abril no Parlamento faz com que os portugueses mantenham o conhecimento e o carácter libertador de há 43 anos, a ruptura, marca um antes e depois”, conclui António Costa Pinto.

“Há locais que pela sua história devem ser preservados”, sentencia José Manuel Paula, a propósito da polémica do forte de Peniche ou do conjunto residencial em zona nobre da cidade no qual foi transformada a sede da polícia política. Designer gráfico, publicista, ilustrador do suplemento “A Mosca” do Diário de Lisboa, Manuel Paula colecciona fotos e objectos da ditadura. “A iconografia do Estado Novo não é rica, é multimilionária, António Ferro e a sua equipa inventaram uma linguagem, a do castelo, das quinas, da cruz de Cristo. Num país de analfabetos, estes símbolos eram a pátria e a família, através de uma forma de comunicação directa”. Rótulos e folhetos, embalagens e brochuras de densa carga ideológica e clara definição política revelaram a eficiência da sua mensagem durante a ditadura.

“Em democracia, a recuperação da memória tem de ser feita por instrumentos educativos, numa lógica museológica e cultural, não para reproduzir um presente moldado no passado”, adverte Rui Bebiano. Para evitar aproveitamentos e trazer para a actualidade política, sem contextualização, os factos de outrora. Só assim, a memória histórica, que não é neutra nem patrimonial, terá sentido.