O sangue segundo Dario Argento

Suspiria, clássico maior do cinema de género, é um dos pontos altos da Festa do Cinema Italiano.

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Nunca se fez cinema de género como os italianos o fizeram – e a afirmação aqui não pretende explorar qualquer tipo de irrisão ou sublinhar o lado exploitation, despachado, linha-de-montagem, que deu um novo embalo à produção italiana para exportação nas décadas de 1960 e 1970. É ver as portas que o western-spaghetti abriu com Sergio Leone ou Sergio Corbucci, é ver como Mario Bava, Lucio Fulci ou Dario Argento são ainda hoje citados como mestres do thriller e do filme de terror. E um dos clássicos maiores dessa produção, Suspiria (1977) de Dario Argento, é agora reposta em sala por obra e graça da Festa do Cinema Italiano, que já há alguns anos homenageara Mario Bava e traz agora, primeiro ao festival e, a partir de 7 de Abril, também às salas, uma nova cópia restaurada em 4K. (O pormenor é tão curioso que vale a pena ser mencionado: existem dois restauros “concorrentes” do filme. Aquele que a Festa do Cinema Italiano está a mostrar foi realizado pela italiana Videa, actual detentora dos direitos do filme, mas a americana Synapse, que possui os direitos para os EUA, está a trabalhar na sua própria versão).

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Nunca se fez cinema de género como os italianos o fizeram – e a afirmação aqui não pretende explorar qualquer tipo de irrisão ou sublinhar o lado exploitation, despachado, linha-de-montagem, que deu um novo embalo à produção italiana para exportação nas décadas de 1960 e 1970. É ver as portas que o western-spaghetti abriu com Sergio Leone ou Sergio Corbucci, é ver como Mario Bava, Lucio Fulci ou Dario Argento são ainda hoje citados como mestres do thriller e do filme de terror. E um dos clássicos maiores dessa produção, Suspiria (1977) de Dario Argento, é agora reposta em sala por obra e graça da Festa do Cinema Italiano, que já há alguns anos homenageara Mario Bava e traz agora, primeiro ao festival e, a partir de 7 de Abril, também às salas, uma nova cópia restaurada em 4K. (O pormenor é tão curioso que vale a pena ser mencionado: existem dois restauros “concorrentes” do filme. Aquele que a Festa do Cinema Italiano está a mostrar foi realizado pela italiana Videa, actual detentora dos direitos do filme, mas a americana Synapse, que possui os direitos para os EUA, está a trabalhar na sua própria versão).

A questão do restauro é importante porque, se existe um filme que depende do grão e da qualidade da cópia para ser desfrutado ao melhor nível, esse filme é Suspiria. Sexta longa-metragem de Argento, estreada faz agora exactamente 40 anos, é o nec plus ultra do giallo, o thriller ultra-violento e sensacionalista à italiana. É também um triunfo esteta e estético, objecto onde o segredo reside apenas no virtuosismo da sua apresentação e construção, cuja narrativa não passa de um mero pretexto para alinhar tours de force de uma audácia que, ainda hoje, parece inexplicável.

A história, escrita pelo próprio Argento com a actriz Daria Nicolodi, sua companheira da altura, é uma variação macabra sobre os contos de fadas e a velha frase da “menina na mão das bruxas”, sobre uma jovem bailarina americana que, aceite numa prestigiada academia de dança alemã, dá por si mergulhada num pesadelo paredes-meias com o sobrenatural. Suzy é um Capuchinho Vermelho cuja viagem à casa da avózinha tropeça sem dar por isso num coio de bruxas, sempre sob o signo de um vermelho-sangue que aparece pela primeira vez no aeroporto de Friburgo quando aterra vinda de Nova Iorque e não mais a largará: o edifício da academia é vermelho (como a Red Lodge de Twin Peaks), o que nele se esconde está por trás de um espesso cortinado teatral de veludo azul – e não é, se calhar, por acaso que se evoque aqui David Lynch, tal é o surrealismo teatral que percorre os grandiosos cenários de Giuseppe Bassan, fotografados em cores primárias saturadas ao limite do psicadelismo pop pelo grande Luciano Tovoli (que filmou com Antonioni, Ferreri, Comencini ou Zurlini).

O vermelho é, no entanto, a cor omnipresente deste conto de terror gótico estilizado ao limite da credibilidade, filme simultaneamente visceral e abstracto, onde praticamente todas as cenas fulcrais são elaboradíssimas construções audiovisuais de cinema puro. Argento, filho de um produtor e de uma actriz, começou por ser crítico, trabalhou como argumentista (com Leone, por exemplo), o seu cinema assume influências de outras práticas artísticas, da banda-desenhada à arte sacra; Suspiria é o ponto-charneira onde essa construção de alta cultura e baixa cultura se funde num grand-guignol formalista e transfigurado, um cinema popular que leva ao limite o que é possível entender como “popular”, onde a própria dimensão de puro entretenimento é desintegrada e reduzida aos seus componentes básicos: corpos, espaços, movimentos, sons. E o sangue, que nem por ser garantidamente fajuto, com aquele vermelho vivo do guache de liceu, consegue macular a perfeição quase artesanal de um dos mais extraordinários filmes fantásticos de sempre. É no grande écrã que ele pertence.

No âmbito da Festa do Cinema Italiano, Suspiria é exibido no canal TVCine 2 no dia 5 de Abril às 23h45, e em sala, dia 7 de Abril às 21h30, em simultâneo em Lisboa (UCI El Corte Inglés), Porto (UCI Arrábida) e Coimbra (Teatro Gil Vicente). Estará igualmente em exibição comercial de 7 a 12 de Abril nos UCI El Corte Inglés e Arrábida, sempre às 23h45