Brinquedos sexuais: eles são reflexo do mundo em que vivemos

Será a América de hoje menos aberta do que era no século XIX? Ainda se teme a sexualidade feminina? Como será o futuro dos sex toys? Entrevistámos Hallie Lieberman, investigadora norte-americana, de 36 anos, que se tem dedicado ao estudo da história dos brinquedos sexuais — em Novembro sai o seu primeiro livro

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Morderska/Wikimedia

As reacções que palavras como “vagina” ou “pénis” provocavam sempre a cativaram. Desde nova, muito nova, que se apercebeu no quão “desconfortáveis” as pessoas ficavam só por falar de sexo. “Parecia-me que havia uma força motriz na vida das pessoas que elas tentavam esconder”, conta Hallie Lieberman, investigadora norte-americana, de 36 anos, para quem a sexualidade sempre foi motivo de interesse.

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As reacções que palavras como “vagina” ou “pénis” provocavam sempre a cativaram. Desde nova, muito nova, que se apercebeu no quão “desconfortáveis” as pessoas ficavam só por falar de sexo. “Parecia-me que havia uma força motriz na vida das pessoas que elas tentavam esconder”, conta Hallie Lieberman, investigadora norte-americana, de 36 anos, para quem a sexualidade sempre foi motivo de interesse.

Em Novembro, sai o seu primeiro livro, Buzz: The Stimulating History of the Sex Toy, pela editora Pegasus. Nele, ao longo de quase 300 páginas, conta a curiosa — e detalhada — história de tudo o que rodeia o universo dos brinquedos sexuais, sex toys em inglês. Dos mais antigos registos do uso de lubrificantes, que datam da Grécia Antiga, ao primeiro preservativo, em 1560, passando pelos dildos de borracha e pelos vibradores que, em meados do século XIX, eram publicitados como equipamentos médicos nas revistas e, cem anos depois, acabariam por se tornar símbolos da emancipação feminina. Uma narrativa também à boleia de personagens como Dell Williams, Betty Dodson, Beate Uhse e Gosnell Duncan.

“Dildógrafa” assumida — desde 2011 que alimenta intermitentemente um blogue com esse nome —, Hallie começou a estudar o assunto há muito tempo. Em 2014, defendeu na Universidade do Wisconsin-Madison a tese de doutoramento de onde este livro nasce, na qual analisa a história dos brinquedos sexuais nos EUA desde 1850 até aos dias de hoje. Foi o primeiro doutoramento do mundo escrito em inglês sobre o tema. Antes, no mestrado em publicidade pela Universidade do Texas, em Austin, dedicou-se a averiguar como é que os sex toys eram comercializados. E pelo meio ainda esteve a vender estes produtos, numa altura em que era proibido fazê-lo no Texas (“Podias vender vibradores se lhes chamasses massajadores e não dissesses que se podiam usar nos genitais”) — ainda é ilegal vendê-los no Alabama e na Georgia. Idiossincracias que a levam a concluir que, de alguma forma, hoje a sociedade é “menos aberta” do que era no século XIX em relação a estes objectos. Que são realmente um “reflexo” do mundo em que vivemos.

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Hallie com um vibrador do início do século XX DR

 

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Anúncio a um vibrador eléctrico de 1916 DR

O teu livro parte da tua tese de doutoramento, em que te centras no estudo dos brinquedos sexuais nos EUA de 1850 até agora, sendo que vai mais atrás no tempo. Também é especialmente centrado na indústria americana, certo? Porquê? É uma questão de proximidade ou algo mais?
O meu livro examina a história dos dildos desde há 28 mil anos, mas está especialmente focado no período de 1960 até agora. Centra-se nos EUA, embora no que toca à história inicial fale dos brinquedos sexuais em todo o mundo, como os da Grécia Antiga ou os do Japão do século XVII ao XIX. Também abordo a história recente da Alemanha nesta área. No fundo, estou interessada nos sex toys em todo lado (risos). Centro-me na América porque tenho experiência aqui, chego às fontes facilmente e gosto muito da história oral, em preservar fontes que vão desaparecer. Mas a América também é interessante de outro modo, que é o quão loucos e estranhos somos em relação à sexualidade, com as leis anti-brinquedos sexuais e outras coisas. Os sex toys são uma representação da estranha relação que os americanos têm com o sexo.

Como assim?
Há muitas atitudes contraditórias. Temos pessoas nuas a vender perfumes e comida no meio da rua e isso está bem; mas já os brinquedos sexuais são muito controversos. É como se fosse OK insinuar sexo, mas falar directamente sobre isso não é tão aceite. Mas também depende. Os brinquedos sexuais são mais aceites se estiveram ao serviço de valores convencionais. Se estás a vendê-los para melhorar um casamento, as pessoas estão bem com isso, mas se os estás a promover para masturbação e como uma forma de as pessoas estarem em contacto com a sua própria sexualidade isso já é desconfortável. Porque está relacionado com a anatomia feminina, algo que não depende dos homens.

Em The Technology of Orgasm (1998), Rachel Maines defendeu que médicos usavam vibradores para curar a histeria

Quais foram as maiores conclusões da tua dissertação?
Não foi nada do que estava à espera. De alguma forma, na América tornámo-nos menos abertos do que éramos no século XIX no que toca aos brinquedos sexuais. Na altura, eram vendidos em simultâneo como equipamentos médicos e sex toys, sendo que era mais raro isto acontecer por causa das leis anti-obscenidade e dos padrões morais vigentes. Por exemplo, havia publicidade a vibradores em todos os jornais e revistas respeitáveis — como não pareciam pénis isto podia acontecer. Eram vendidos como equipamentos médicos ou de beleza, mas os anúncios eram frequentemente sexualizados — punham na imagem uma mulher sexy com um vibrador na cara e diziam que ajudava nas rugas ou a atenuar as dores de cabeça. No entanto, actualmente, nunca veríamos estes artigos serem anunciados em publicações respeitáveis como o New York Times. Hoje, os anúncios publicitários nos locais proeminentes desapareceram e mesmo assim não se vendem sex toys de forma aberta — mesmo em 2004, quando eu estava a vendê-los no Texas, era ilegal se disséssemos o que realmente eram. Então no início do século XIX não os vendíamos como brinquedos sexuais mas eram mais visíveis na cultura; agora que se sabe o que são, tornaram-se underground e menos visíveis.

Então, os EUA são hoje menos livres do que eram em relação aos brinquedos sexuais?
Gostamos de pensar em nós próprios como pessoas livres a nível sexual, mas as coisas não mudaram tanto como nós pensamos. A masturbação, especialmente a masturbação feminina, ainda não é confortável para muita gente. Ficamos mais confortáveis em usar brinquedos em relações heterossexuais, numa relação tradicional monogâmica com compromisso. As pessoas têm ideias de género muito tradicionais e enquadram os sex toys nisso, mas se falarmos deles fora disto, por exemplo entre lésbicas ou como objectos masturbatórios, já não estamos confortáveis. Isto está definitivamente relacionado com o medo de a mulher se tornar independente, satisfeita sexualmente sem estar dependente de outros. Acho que estamos a ficar um bocadinho mais confortáveis com isso, por exemplo na cultura pop já aparecem mulheres a masturbarem-se com brinquedos. Mas nos EUA, e a eleição de Trump de algum modo mostrou isso, ainda há muita misoginia, ainda há muito medo de mulheres independentes e fortes, como se viu nos comentários que foram feitos sobre Hillary Clinton.

Qual foi o primeiro sex toy de que há registo?
Os primeiros são coisas da Idade do Gelo, que podem, ou não, sê-lo. A primeira vez em que realmente se vêem pessoas a usá-los é na Grécia Antiga. Tinham dildos de pele, mas também de madeira ou de barro. Eram usados para rituais, teatro, talvez pudessem ter um uso masturbatório, mas não sabemos. Sabemos que eram parte da cultura e que estavam nos teatros. Há também quem acredite que há referências na Bíblia.

E quando é que os sex toys se tornaram populares?
A primeira vez que foram produzidos em massa em larga escala foi provavelmente a meio de 1800, depois da vulcanização da borracha pelo Charles Goodyear [1839], que permitiu que a borracha se tornasse estável — podia aguentar diferentes temperaturas, não se partia ou secava. Com isto foram criados produtos que podiam ser introduzidos no corpo humano. Algumas empresas de borracha que produziam impermeáveis e outros artigos estavam em paralelo a produzir preservativos, dildos e french ticklers — os immoral rubber goods, como lhes chamou mais tarde Anthony Comstock [em 1873, a Lei de Comstock proibiu a distribuição de sex toys mas também de contraceptivos e outros produtos]. É aqui que começamos a ver isto como indústria, com a borracha vulcanizada e a energia eléctrica.

Por onde passa o futuro deste mercado?
Acho que hoje em dia estamos muito preocupados com a qualidade. Estamos a sair dos brinquedos mais baratos, feitos com plásticos perigosos, para produtos feitos de silicone, com materiais ecofriendly. Já há muito tempo que se estão a criar robôs sexuais, mas é algo que se vai fazer mais. A realidade virtual também está a ser descoberta. E já há aqueles brinquedos sexuais em que se pode controlar a outra pessoa à distância ou outros em que se pode ver pornografia em sincronização com o sex toy que se está a usar.  Mas é engraçado... Há tanta tecnologia, nomeadamente para as mulheres, mas as pessoas não deixam de regressar ao vibrador Magic Wand da Hitachi, que já existe há 40 anos. Às tantas, a tecnologia, no que toca ao sexo, não precisa de mudar tanto — a Magic Wand [varinha mágica, em português] será sempre um clássico e foi renovada recentemente.

Existem mais brinquedos sexuais para mulheres do que para homens. Isso não é algo parodoxal? Por um lado, teme-se a sexualidade feminina; por outro, têm mais escolha nesta indústria.
É um bom ponto. Uma das razões também é que os homens estão muito confortáveis com a masturbação desde novos. Não há um estigma, não precisam de ferramentas e não estão tão interessados em sex toys como as mulheres, que muitas vezes chegam à masturbação tarde e têm mais vergonha. Era um mercado dominado pelos homens até recentemente — agora há mais mulheres a envolverem-se e a desenhar produtos.

Nos últimos anos, têm surgido brinquedos sexuais diferentes: mais discretos, de maior qualidade, com uma maior preocupação com o design e com a anatomia feminina. Há uma nova tendência?
Penso que sim. Quando os homens estão a dominar a indústria, fazem sex toys que parecem o seu pénis; mas, por exemplo, a Janet Lieberman — que não é da minha família (risos) — está em Nova Iorque a fazer brinquedos completamente diferentes daquilo que um homem iria desenhar. O Eva é para ser usado no clítoris durante o sexo, tem asas que ficam debaixo dos lábios, é bonito, é design. Quando as mulheres entram nisto estão a pensar mais — ela é engenheira no MIT — em coisas práticas e nos seus próprios corpos (e no clítoris), e não naquelas coisas gigantes que parecem pénis, que é como estes brinquedos historicamente sempre se pareceram. Estão mais preocupadas com segurança e materiais. Para além da Alexandra Fine e da Janet Lieberman da Dame há mais marcas, a Jimmy Jane, a Lelo.   

Estes brinquedos poderão ajudar a abrir as mentalidades em relação à masturbação?
Estou optimista e é por isso que também estou a fazer este trabalho. E outras pessoas, como a Lieberman, estão a ajudar a mudar as mentalidades. Acho que o design vai ajudar, a cultura pop e séries de televisão como Broad City, que normaliza a masturbação, também. Os sex toys são um reflexo da sociedade — se tivermos uma mulher presidente, uma maior celebração da independência da mulher e uma maior abertura à sexualidade isso vai reflectir-se nos nossos brinquedos sexuais.