Cuba e Angola à procura dos seus heróis

Mais de 400 mil cubanos estiveram em Angola de 1975 a 1991. Apesar das histórias oficiais, Cuba e Angola parecem não ter hoje a mesma visão desses anos.O Ípsilon falou com cubanos e angolanos que andam à procura dos seus heróis.

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Havana, Julho de 2011. Um amigo convida-me para um concerto de Frank Delgado, compositor da Nueva Trova cubana. Voz e violão, letras comprometidas e chistes subversivos, Frank estava todas as quartas no Sótano, no Vedado. “Tens de vir”, disse-me o amigo: “E verás o que os cubanos sentem sobre Angola.”

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Havana, Julho de 2011. Um amigo convida-me para um concerto de Frank Delgado, compositor da Nueva Trova cubana. Voz e violão, letras comprometidas e chistes subversivos, Frank estava todas as quartas no Sótano, no Vedado. “Tens de vir”, disse-me o amigo: “E verás o que os cubanos sentem sobre Angola.”

Eu andava atrás das memórias dos cubanos sobre a guerra de Angola, mas tinha chegado a um impasse: o que se publicava em Cuba nessa época eram sobretudo testemunhos de militares que tinham estado em Angola. Independentemente da sua idade, classe, raça ou patente militar, contavam, de forma mecânica e talvez demasiado “eficiente”, a experiência da guerra: ideologicamente comprometida com o discurso da revolução, mas sem as tripas de fora. Na rua, contudo, bastava mencionar que era portuguesa para começarem a falar-me de Angola. E esses encontros ocasionais não tinham o mesmo tom dos livros, de orgulho pátrio: eram amargos, duros, tristes. Havia uma espécie de ressentimento. Mas quando se faziam mais perguntas, respondiam: “De Angola não se fala.”

Foi assim que se me entranhou a ideia de que talvez Cuba sofresse de alguma espécie de “síndrome de Angola”: um discurso oficial em que se vangloriavam os heróis dessa presença de mais de 400 mil cubanos ao longo de 16 anos (1975-1991); e um discurso colectivo, implícito, com expressões de trauma latente. Estes dois discursos não se excluíam, nem eram contraditórios. Coexistiam numa mesma experiência: um veterano repetiria que fora a Angola para “ser como o Che [Guevara]”, cumprir o dever internacionalista de Cuba, líder da solidariedade com o Terceiro Mundo, ajudar um país irmão a lutar contra o imperialismo e proteger o MPLA do avanço da UNITA e das tropas sul-africanas. E o mesmo veterano contaria depois que, apesar do orgulho que sentia na sua missão, talvez Angola lhe tenha destruído a vida, a família, a relação com o álcool, as noites de sono, começando até a questionar o porquê desse esforço militar e humano.

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Também Frank Delgado foi em missão internacionalista a Angola nos anos 80. Nos concertos do Sótano, Frank interpretava os clássicos, sobretudo os do período especial – pós-91, pós-URSS. A audiência acompanhava os velhos temas sobre imigração e a invasão turística de Havana, mas quando chegou Veterano a atmosfera mudou.

Angola, mi novia procuró calor humano,
mi perro, nuevo dueño.
Y hasta puede suceder que algún día me llamen veterano.

Não é coincidência que esta canção tenha marcado uma geração e por isso sirva de epígrafe ao mais recente romance da cubana Karla Suárez, Um lugar chamado Angola (Porto Editora).

Lisboa, Março de 2017. Karla, 47 anos, ainda guarda as chapas de identificação militar do pai, que fez dois anos de missão em Angola. Há muito tempo que Angola a perseguia: no primeiro romance, Os Rostos do Silêncio (1999), havia um veterano. Em casa, diz, “quando éramos pequenos, Angola estava presente mas ainda era uma coisa quase secreta. Depois, nos anos 80 começámos a falar de forma normal. Quando estava na Universidade, um dos meus companheiros tinha estado na batalha do Cuito Cuanavale, fez lá o serviço militar. Angola tornou-se conversa de todos os dias.”

A geração de Karla viveu tudo sobre a presença cubana em África. Mas naquela altura, ao contrário de outros escritores da sua geração, não lhe interessava falar de Angola: “Cuba é um país em que se vive com a história na cabeça. Tudo, desde que nos levantamos até nos deitarmos, é política. Qualquer momento, gesto, opinião se converte em política. É pesado. Mas sabia que um dia tocaria no tema.”

A semente ficou. Continuou a guardar informação. Quando se mudou para Lisboa, em 2010, encontrou uma continuidade nos “testemunhos dos últimos anos da descolonização” que estavam a sair em Portugal, ouvia “gente que me contava a sua experiência em Angola”, portugueses que tinham feito serviço militar, angolanos a viver em Portugal e de diferentes quadrantes políticos. “Para entendermos as coisas temos de ter distância. Quando estamos a viver, não se entende. Foi muito tempo depois, e com muito mais informação, que pude juntar os pontos.” Levou quase quatro anos a escrever: tinha clara a ideia de que queria contar a história de Ernesto, que aos 12 anos perde o pai na guerra.

Luanda, Setembro 1979. O escritor e crítico de arte angolano Adriano Mixinge tinha 11 anos quando aterrou na Ilha da Juventude, a sul da ilha-mãe, e onde Cuba tinha construído escolas secundárias para cubanos e para jovens de países do campo socialista. A sua irmã recebera uma bolsa para estudar em Cuba. Mixingue acompanhou-a à sede da Organização de Pioneiros Angolanos, onde ambos militavam: “Perguntaram-me se eu também queria ir.” Nessa mesma noite, pediu autorização aos pais.

Viviam no bairro Nelito Soares que “naquela altura fazia a fronteira entre asfalto e musseque, e onde estava um destacamento de cubanos a construir uns prédios que estão na Avenida Brasil [actual Hoji Ya Henda]”. Apesar disso, Mixingue não tinha contacto directo com os cubanos: “Admirava-os. O acampamento que eles tinham feito por trás da Igreja de São Domingos era um lugar muito limpo e iluminado, havia sempre música. Os trabalhadores viviam aí.” Foi então a conjuntura política internacional, “país de partido único, de ascendência socialista”, que permitiu que no mesmo ano Adriano e a irmã partissem para Cuba.

Mixinge, 48 anos, fala com nostalgia da escola onde esteve até aos 17 (seguiu-se o ensino superior em Havana). “Foi maravilhoso. Tinha 11 anos e estava na pré-adolescência, tinha vários amigos pioneiros e vínhamos do mesmo bairro.” Relembra a arquitetura do espaço, o módulo central com refeitório, o edifício à esquerda eram os dormitórios, e à direita as salas de aulas. “Tudo era verde e havia plantações de citrinos. Fomos imediatamente para o campo”, conta. Na construção do “Homem Novo” segundo Guevara havia a comunhão do estudo com o trabalho no campo: “Estávamos então no ambiente perfeito, supostamente ‘ideal’ para a nossa educação.”

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Karla Suárez, 47 anos, ainda guarda as chapas de identificação militar do pai, que fez dois anos de missão em Angola PAULO RICCA/arquivo

Enquanto contingentes de jovens de países socialistas (e das ex-colónias portuguesas) chegavam a Cuba, milhares de cubanos partiam para Angola.

Havana-Luanda, Verão de 1975. Cuba enviou secretamente os primeiros militares a Angola, para treino das FAPLA, exército do MPLA. Portugal explodia no Verão Quente e a independência estava longe. Mas a invasão do país pelo exército da África do Sul, via fronteira sul, internacionalizou o conflito. O historiador Piero Gleijeses explica em Conflicting Missions (2002), Agostinho Neto pedira ajuda à União Soviética e a Cuba. Mas os soviéticos não queriam intervir directamente numa guerra em África (e os americanos também não, estavam ainda frescas as feridas do Vietname). Fidel Castro decidiu lançar a Operação Carlota e despachou 35 mil homens que desembarcaram em Luanda em princípios de Novembro, forçando a URSS a enviar armas.

Seguiu-se uma batalha pelo poder em Luanda: Portugal retirou-se e o MPLA venceu o primeiro grande combate no Quifangondo, contra tropas do FNLA, do Zaire, ex-comandos portugueses e África do Sul, com apoio físico de cubanos e logístico dos famosos “órgãos de Estaline”, coletes anti-aéreos da URSS. A 11 de Novembro Agostinho Neto declarou a independência de Angola.

A primeira fase da guerra durou até ao cessar-fogo de 76 e seguiram-se os primeiros professores e médicos cubanos vindos nas Brigadas Che Guevara que iam cumprir missão internacionalista.

Luanda, ano lectivo 1989-90. Os “camaradas” Ángel e María dão aulas de Matemática e Biologia, respectivamente, aos alunos da 7a classe na escola Juventude em Luta. O aluno Ndalu é hoje o escritor angolano Ondjaki, 39 anos, que imortalizou em bom dia, camaradas (2001) os seus professores cubanos. Há, raras, aparições de cubanos na obra de Manuel Rui, Pepetela e Sousa Jamba, e mais concretamente em Estação das Chuvas (1996), de José Eduardo Agualusa. A poeta angolana Ana Paula Tavares, 65 anos, explica que nessa obra de Agualusa “há uma dessacralização do cubano” porque surgem personagens que “não têm o comportamento tipificado do internacionalismo proletário e talvez seja a primeira vez que na literatura angolana surge uma personagem a contra-gosto, contrariando o discurso oficial mas também subjectivo da visão de angolanos sobre Cuba”.

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Ana Paula Tavares fugira do Huambo, invadido pela UNITA, quando viu os cubanos desembarcarem no Kwanza-Sul. Para a poeta, a relação entre Cuba e Angola é feita de afectos mas também de equívocos PEDRO CUNHA/arquivo

Ondjaki é dos poucos angolanos que dá conta dos cubanos na sua obra – também estão em Os da minha rua (2007) e AvóDezanove e o segredo do soviético (2008), obras em que os frutos da missão civil cubana (mais de 50 mil professores, médicos ou construtores) vêm, pontuadas pela nostalgia da infância e a utopia dos anos revolucionários, à superfície.

Ao Ípsilon, em Lisboa, Ondjaki diz que evocar a memória dos professores cubanos se prende sobretudo com “as urgências literárias [que] são muito densas e não nos abandonam”. Volta a esse período “porque faz parte de uma voz de mim, literária e pessoal. Escrevo para me libertar e também para reencontrar fantasmas”. Sublinha que essas memórias são “absolutamente afectivas” em relação aos cubanos que conheceu.

Na literatura, são os laços “que me perseguem e me alimentam”: “Falo pelos rastros que deixo nos meus livros, pelo meu imaginário afectivo, pelas minhas memórias que são reais e por uma voz de brutal saudade que me persegue e me emociona. Ainda hoje se processa em mim esse vulcão de afectos, um turbilhão de manobras infantis que só me traz coisas boas. Não escondo isso nem na vida privada nem no meu discurso literário.”

Porto Amboim, Agosto de 1985. Ana Paula Tavares fugira do Huambo, invadido pela UNITA, quando viu os cubanos desembarcarem no Kwanza-Sul. Para a poeta, a relação entre Cuba e Angola é feita de afectos mas também de equívocos. Os primeiros vêm das ligações entre os dois territórios e o facto de Cuba ter recebido milhares de escravos do reino do Congo, que haveriam de se levantar contra os espanhóis e liderar a guerra de Independência (1895-98). Castro afirmou que o auxílio internacionalista a Angola era um “regresso dos escravos”. Daí o nome Operação Carlota, título da reportagem de Gabriel García Márquez quando visitou Angola em 1977: Carlota foi a escrava que conduziu uma rebelião contra colonos em 1843, mas foi capturada e brutalmente assassinada.

Os equívocos mantiveram-se. Apesar das excepções, Tavares fala “mal-entendidos”: “Nunca houve aproveitamento quer da presença deles, quer das nossas possibilidades. Da nossa parte, dos intelectuais, dos escritores, havia uma certa desconfiança relativamente aos cubanos: que eles fossem todos militares ou informadores. E isso de certa maneira impediu uma amizade franca, que surgiu em casos particulares. No geral creio que houve sempre um olhar desconfiado de parte a parte e isso contaminou a presença.”

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Ondjaki é dos poucos angolanos que dá conta dos cubanos na sua obra Rui Gaudêncio

O que era para ser uma curta missão militar transformou-se em mais de 350 mil soldados para Angola: a guerra recomeçou pouco depois de 76, e os cubanos só saíram de Angola em 1991, depois dos acordos de paz que levaram à independência da Namíbia (território ocupado pelos sul-africanos). Para Savimbi, “o verdadeiro inimigo é o colonialismo cubano”: “Os cubanos tomaram conta do país, mas cedo ou tarde sofrerão o seu Vietname em Angola.”

A conjuntura política internacional, mas também a construção da nova nação angolana, levou à permanência dos cubanos: “Do meu ponto de vista, era uma amizade necessária e que beneficiava sobretudo Angola, pela carência de quadros, de gente formada em vários domínios, mas também pela falta de experiência militar”, diz Mixinge. Jogava-se o xadrez da Guerra Fria: de um lado a UNITA e a África do Sul (e os americanos); do outro o MPLA, cubanos e soviéticos. Guerra Fria só talvez no hemisfério norte: em Angola, mortos, mutilados, refugiados, desaparecidos foram milhões (a guerra só terminou em 2002). Ali morreram oficialmente 2600 cubanos.

Na “selva verde”, Angola, 1982. Morre o pai de Ernesto, protagonista de Um lugar chamado Angola. O título português engana: em espanhol, El hijo del héroe seria vago para o leitor português. Mas em Cuba quando se fala em heróis, fala-se da guerra de Independência, dos barbudos da Sierra Maestra, dos milicianos na Baía dos Porcos, de Angola, Nicarágua, Granada, Etiópia. É uma cronologia coesa, gerando um fio condutor entre o pai da nação cubana, José Martí, e o pai de Ernesto, imaginado por Karla Suárez.

É na questão da heroicidade ou hombridade cubanas que a crise da masculinidade se manifesta e, nela, a guerra de Angola é paradigmática. Cuba, lembra Suárez, é uma sociedade profundamente chauvinista onde domina “o machismo-leninismo”. No discurso oficial, revolucionário, heróico e patriótico, isto reforça-se. “Ernesto tem 12 anos, morre-lhe o pai e, de um dia para o outro, tem de se converter noutra coisa: primeiro, no homem da casa, chefe de família. Logo dizem-lhe que os homens não choram. Depois, a nível social, na escola, tem de ser o exemplo: o pai é herói da revolução. Interessava-me mostrar como a um homem, em Cuba, tudo lhe cai em cima e o esmaga.”

Karla queria mostrar como a História “com maiúscula” muda “a história e a vida das pessoas normais que não saem nos jornais”. Sobre esta guerra há “muitas versões oficiais” que “nos contam sempre a parte heróica, correcta, positiva: uma guerra não é isso”. A literatura, pelo contrário, “vai por baixo, vai às vozes, ao que se passou com determinada pessoa: um dia põem-te a Kalashnikov na mão e dizem-te que o outro tem de morrer para que te salves tu.”

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Leonardo Padura conta que no estrangeiro lhe perguntavam se “Angola era o Vietname de Cuba” Manuel Roberto

Houve um tempo em que a história oficial sobre Angola coincidia com a história literária. Nos anos 70, a poesia e os testemunhos de Angola estavam embebidos de um fervor utópico que Cuba só teria visto na década de 60. Depois da morte de Che em 1967, do quinquénio cinzento (período de sovietização do país, em que se recrudesceu a censura e a perseguição aos intelectuais), do golpe do Chile em 1973, Cuba estava numa encruzilhada ideológica: as revoluções na América Latina tinham falhado. Mas Angola deu um novo ímpeto a Cuba. A utopia revolucionária dos primeiros anos de independência angolana era alento para uma geração demasiado jovem para se lembrar de 1959. A narrativa do “regresso dos escravos”, aliada à “irmandade” da solidariedade internacionalista, mobilizou os cubanos.

“A geração dos meus pais tinha um projecto que coincidia com o projecto colectivo da revolução. A minha geração nasceu e cresceu noutra situação: já havia educação e saúde para todos. Queríamos outras coisas: queremos sempre o que nos falta”, diz Karla.

Havana, Junho de 2012. Houve quem começasse a olhar para Angola de outra maneira: longe do testemunho e da experiência pessoal da guerra, olhar distante e crítico. O escritor cubano, Yoss, 48 anos, é uma das vozes dissonantes sobre Angola. No final dos 80, era um dos jovens autores dos Novísimos, grupo liderado por Ángel Santiesteban e Amir Valle, que estavam cansados da versão da realidade via jornal Granma. “O que nos unia era o desejo de escrever uma narrativa que não estivesse divorciada da realidade que estávamos vivendo e que não era a que aparecia nos jornais nem na televisão”, disse Yoss numa entrevista em Havana.

Os filhos da revolução começaram a pôr em causa o herói cubano: invencível, corajoso, imutável e, acima de tudo, fiel à revolução. Eles não queriam mais ser uníssono, queriam ter voz própria, indivíduos, serem escutados. Fala Yoss: “Era muito chocante, porque tinham-nos educado com o conceito do Homem Novo em que todos se devem comportar da mesma maneira, que estes autores defendessem algo que naquele momento era circunstancialmente heterodoxo e até subversivo para o socialismo: o direito à individualidade.”

Também nesse Verão visitei Leonardo Padura, cuja tetralogia dos anos 90, As Quatro Estações, saga do detective Mario Conde, apresenta el Flaco, personagem que esteve em Angola. Padura conta que no estrangeiro lhe perguntavam se “Angola era o Vietname de Cuba”. Cuba ganhou a guerra, a Namíbia tornou-se independente, o apartheid acabou. Só Angola continuou a guerra, mas já caíra o muro em 1989 e a URSS, em 1991. “Não creio que tenha sido um Vietname, mas houve uma tendência nos novísimos em buscar um realismo social, ‘coisas negras’ na sociedade cubana: jineterismo, balseiros, homossexualidade, drogas, e Angola está também aí”, diz Padura. Até certo ponto, “os novísimos vietnamizaram a guerra de Angola”.

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Yoss, 48 anos, é uma das vozes dissonantes sobre Angola: os filhos da revolução começaram a pôr em causa o herói cubano

Yoss acha que há uma “síndrome de Angola” em Cuba. “É uma síndrome de guerra, mas oficialmente para a psicologia e psiquiatria cubanas não aconteceu – essa é outra das manifestações típicas da realidade e ficção oficiais. Também houve uma síndrome social na epidemia de divórcios quando eles regressaram da missão”. Ao escrever algumas das suas histórias sobre Angola – ficções, sempre, porque “pessoalmente sempre pretendi destruir o género do testemunho” – o desafio era contar que a guerra “era uma ferida que estava aberta, por mais que se dissesse que não era uma ferida, que era uma condecoração”.

Havana, Luanda, Berlim 1989, ano dos fins. Mixinge estava, tal como Suárez, na Universidade, em Havana. Ondjaki ainda tinha professores cubanos. Os cubanos e sul-africanos acabavam de assinar a paz (Dezembro 1988) depois da longa batalha do Cuito Cuanavale (o “Estalinegrado africano”), quando Gorbachov foi a Havana em Abril de 1989 dizer que o dinheiro acabou. Esse foi o Verão Quente de Cuba: quando se descobriu que o então chefe da missão militar em Angola, General Arnaldo Ochoa, estava envolvido num esquema internacional de corrupção, lavagem de dinheiro e tráfico de droga. O julgamento, em parte televisionado, durou um mês. Ochoa, herói da pátria e da revolução, foi executado.

“Uma guerra não acaba com os acordos de paz”, escreve Suárez. Porque não se pode falar de Angola sem falar do Verão de 89. Yoss também disse: “Entre Cuba e Angola, há um antes e um depois de Ochoa.” Antes, exibiam-se as medalhas com orgulho. Depois, esconderam-nas. A sociedade cubana estava paralisada, dividida com o julgamento, a acusação e as “discussões atrás de discussões: havia quem dissesse, sim, que se fuzile; e outros que diziam não, deveria ser preso”, conta Karla: “O que mais me impressionou foi, de um dia para o outro, preso, acusado, julgado e fuzilado. Num mês, acabou-se. E quando acabou foi um silêncio total. Foi o ponto final da guerra. Custou muito: crescer com o discurso dos heróis e depois descobrir que os heróis também se fuzilam.”

Como se isto não fosse suficiente, o muro de Berlim caiu em 1989 e, nesse ano, em Dezembro, chegaram 2600 cubanos em caixões, caídos na guerra. Honras pelo país, funerais de estado. “A sociedade cubana ficou profundamente abalada com aquele enterro. Essa imagem do internacionalista cubano que voltou em caixas foi uma imagem que chocou”, conta Mixingue.

A turbulência de 1989 passou quase despercebida a Adonis Flores, artista plástico, 45 anos, a cumprir serviço militar em Angola. Já tinham cessado oficialmente os combates, mas havia ainda muita tensão, ataques, emboscadas. Flores reconhece que a guerra o mudou, que esse caos lhe provocou a necessidade de uma ordem criativa, que o empurrou do curso de Arquitectura para as artes plásticas. “Foi uma situação muito extrema. E quando passamos por uma violência tão forte, tudo pode mudar uma pessoa. Foi o que sucedeu. De facto, pensei que nunca regressaria”, diz.

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O escritor e crítico de arte angolano Adriano Mixingue tinha 11 anos quando aterrou na Ilha da Juventude, onde Cuba tinha construído escolas para cubanos e jovens de países do campo socialista Rosa Cubillo

Na sua série de fotografia e performance, Camuflagem, parte de uma foto sua no Huambo para apresentar temas como a fragilidade, a violência, o poder, a irracionalidade e a morte. Adonis surge fardado, por vezes quase irreconhecível. As imagens demonstram a apropriação dos sentidos como instinto de sobrevivência; a morte mesma, orgânica, verde da terra à terra de alento, ou pelo contrário grotesca e violenta, carne de canhão. Questiona assim também a heroicidade, o anonimato, os peões da história com caixa baixa. Noutro trabalho, Memorial, acende a sua chama eterna e monta um memorial a si mesmo, à memória do seu próprio herói. “Porque o meu herói morreu”, diz.

Cuba-Angola, hoje. Ondjaki anda à procura dos seus heróis. Isto só se pode explicar porque é a sua geração que está a contar a história da presença cubana em Angola – a par de Ondjaki, o grupo Geração 80, com o documentário Independência, ou os artistas Kiluanji Kia Henda ou Yonamine (lembra Mixinge) estão a resgatar esse período. “Acho que as novas gerações têm uma distância que permite abordar no cinema e na literatura as coisas de outro modo. Esse ‘outro modo’ é o nosso. Não posso dizer que estou ou sou isento de julgamentos. O meu julgamento é positivo e afectivo. Mas outros virão com um olhar mais seco, digamos assim, mais histórico e menos personalizado. A presença dos cubanos em Angola é um fenómeno histórico, sim, mas absolutamente humano, numa dimensão que está por dizer ou calcular”, diz Ondjaki.

Tanto Ondjaki como Mixinge não concordam que haja “omissão” em Angola sobre a presença cubana. Mixingue diz que “os silêncios que existem em Angola, na sua história recente, não têm a ver com os cubanos, são generalizados”. Têm a ver com o poder, diz o autor de O Ocaso dos Pirilampos (2014), um romance sobre o poder: “É o lado camaleónico do poder angolano que conseguiu adaptar-se a várias fases diferentes do mundo, transformar-se para se manter e satisfazer um segmento importante da população angolana, e é esse lado camaleónico e pragmático que fez com que o poder em Angola não fosse refém ideológico de nada. Na verdade, a grande ideologia em Angola foi a da sobrevivência. Isso permitiu que o poder se metamorfoseasse.”

Mas em Cuba essa “síndrome” é agravada pela sensação de que Angola ainda “não pagou a sua dívida” e que, até certo ponto, tem excluído os cubanos da sua narrativa oficial. Há uma espécie de ressentimento e Ana Paula Tavares diz que “os cubanos têm absoluta razão”: “Deixa-me triste que a memória de Angola actual esteja a ser construída como se os cubanos nunca lá tivessem estado, como se eles não tivessem sido parte importante de todo o processo, para o bem e para o mal.” Está em curso uma espécie de guerra de narrativas oficiais: os peões da história ficam em silêncio e só a literatura, o cinema ou as plásticas parecem conseguir ouvi-los, resgatar as suas vozes do esquecimento.

Ondjaki já foi a Cuba mas nunca reencontrou os professores Ángel e María. Sabe que há um ciclo na sua vida que só se cumprirá no dia em que os abraçar. “Quero dar-lhes o bom dia, camaradas não apenas como um livro, mas como parte viva da minha vida que foi mudada pela presença deles. O meu modo de ver o mundo e as pessoas. O meu modo de ler as crianças, os afectos, a sociedade e o lugar ‘dos outros’.” Ondjaki não hesita em dizer que foram eles a dar-lhe “uma ferramenta para trabalhar as relações sociais entre os indivíduos numa sociedade: foi uma semente que deixaram e eu vi brotar em mim. Isso não posso agradecer directamente a eles, tenho que ir espalhando em outros lugares.”

* Raquel Ribeiro é escritora, jornalista, professora na Universidade de Edimburgo, membro do Centre for Research on Cuba, no Reino Unido.