Este é o Cristo nu e esquecido de Miguel Ângelo

É uma das obras menos conhecidas do mestre do Renascimento, mas, passados 500 anos, mantém todo o seu poder de inquietação. Vai estar em Londres a partir de 15 de Março, numa exposição que volta a juntar Miguel Ângelo e Sebastiano del Piombo. Por que terá o artista desistido desta escultura?

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Miguel Ângelo abandonou esta primeira versão do seu Cristo ressuscitado em 1516, deixando a cabeça por fazer Alessandro Vasari/The Nationl Gallery, Londres

Estamos habituados a ver deuses e heróis clássicos sem roupa, mas uma escultura em que Cristo surge nu em adulto, pensada para figurar numa igreja, é, no mínimo, pouco comum. É por isso que não devemos estranhar que Jonathan Jones, crítico de arte do diário britânico The Guardian, comece assim o texto que escreveu recentemente sobre a primeira versão do Cristo della Minerva, de Miguel Ângelo: “Vi finalmente o pénis de Jesus Cristo.”

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Estamos habituados a ver deuses e heróis clássicos sem roupa, mas uma escultura em que Cristo surge nu em adulto, pensada para figurar numa igreja, é, no mínimo, pouco comum. É por isso que não devemos estranhar que Jonathan Jones, crítico de arte do diário britânico The Guardian, comece assim o texto que escreveu recentemente sobre a primeira versão do Cristo della Minerva, de Miguel Ângelo: “Vi finalmente o pénis de Jesus Cristo.”

O tom irónico e provocador é uma marca de Jones, que parte da escultura que o mestre italiano terá começado por volta de 1515, para falar das suas versões que dela fez, em especial da que ainda hoje mantém à vista os genitais do filho de Deus e que fará parte da próxima exposição que a National Gallery de Londres dedica ao Renascimento, Michelangelo & Sebastiano (15 de Março a 25 de Junho). Uma “obra-prima” com quase uma tonelada.

Na segunda versão, a que está na basílica de Santa Maria sopra Minerva, uma das principais igrejas dos dominicanos em Roma, Cristo é representado de pé, com a cabeça voltada para o seu lado esquerdo, tem as duas mãos sobre a cruz, e numa delas segura dois dos instrumentos do seu martírio, a vara e a esponja embebida em vinagre. Inicialmente, também esta estátua tinha os genitais à vista mas, durante o barroco, foram cobertos com um panejamento de bronze, um púdico véu de metal a que o crítico do Guardian chama “bizarro” e que ainda hoje mantém. Isto porque “a crença de Miguel Ângelo na exposição total da humanidade de Cristo é ainda demasiado moderna para a Igreja do século XXI”, escreve Jonathan Jones.

O contrato para uma escultura em tamanho natural representando Cristo nu, com a cruz nos braços, foi celebrado com o artista em Junho de 1514, e previa que a peça fosse terminada num prazo de quatro anos. A obra nasceria da encomenda de Metello Vari, que deixou o restante programa a cargo do mestre (muitas fontes referem, também, que por trás desta escultura estão outros três mecenas, Bernardo Cencio, Mario Scappucci e Pietro Paolo Castellano).

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A segunda versão que está ainda hoje com os genitais tapados na Igreja Santa Maria Sopra Minerva, em Roma DR

Miguel Ângelo (1475-1564) começou, então, a trabalhar na obra, mas terá abandonado a primeira versão quando trocou Roma por Florença, em 1516, porque o mármore de Carrara que estava a esculpir tinha um veio negro que apanhava precisamente o rosto da figura.

No ano seguinte, e porque Metello Vari o pressionava para que entregasse a peça, o mestre pediu um adiantamento ao cliente e encomendou um novo bloco de pedra, que chegaria a Florença em 1518 e em que trabalharia entre 1519 e 1520.

Na sombra de dois génios

Quando a segunda versão ficou praticamente pronta, foi transportada para Roma e instalada na igreja de Santa Maria sopra Minerva pelo assistente do mestre, Pietro Urbano, que terá sido o responsável por alguns acabamentos – pés, mãos, narinas e barba – à época considerados desastrosos. Como Urbano parecia incapaz de terminar o que o mestre deixara por fazer satisfatoriamente, Sebastiano del Piombo terá encontrado quem o fizesse - Federico Frizzi.

Sebastiano e Miguel Ângelo conheceram-se em 1511, quando o segundo estava já a acabar o tecto da Capela Sistina, uma das suas obras mais celebradas, e deram início a uma colaboração que haveria de durar um quarto de século. Diz o crítico do Guardian que, ao trocar Veneza pelo Vaticano, Sebastiano abdicou do que poderia ter sido uma carreira brilhante, já que na cidade dos Papas vivia na sombra de dois génios – Miguel Ângelo, que o dominava, e Rafael.

Dada por terminada em Março de 1521, quando Miguel Ângelo tinha 46 anos, esta segunda versão foi apresentada ao público em Dezembro, tomando o artista a decisão de oferecer a Metello Vari, principal encomendador, a primeira escultura (com dois metros de altura), ainda inacabada. Vari terá ficado radiante e instalou-a nos jardins do seu palácio romano, próximo da igreja onde estava o segundo Cristo della Minerva.

A primeira das duas esculturas, abandonada por um artista que parecia não tolerar se não a perfeição, terá sido vendida no início do século XVII e, segundo o jornal britânico The Telegraph, está no Mosteiro de São Vicente, em Bassano Romano, na província de Viterbo, desde 1644. Foi aí que, em finais dos anos 1990, a historiadora de arte italiana Irene Baldriga a localizou e a atribuiu ao mestre, escrevendo sobre a descoberta na revista da especialidade The Burlington Magazine, em Dezembro de 2000 (The First Version of Michelangelo's Christ for S. Maria Sopra Minerva).

Como o David

A exposição que abre a meio de Março em Londres dará agora a esta escultura pouco conhecida – o mosteiro não é muito visitado – o palco internacional que merece.

Ao diário norte-americano The New York Times, Cleto Tuderti, padre no mosteiro italiano, reconheceu que, ao longo de séculos, “certamente ninguém pensou que fosse um Miguel Ângelo”, o que é bem capaz de ter garantido a sua salvaguarda (as tropas de Napoleão saquearam a cidade no final do século XVIII, mas não tocaram nesta escultura).

Não há como não sentir que durante anos a obra esteve esquecida, perdida, mesmo que a atribuição ao mestre da Pietá e de Moisés pareça hoje, aos olhos dos especialistas, evidente. Como pode a sua autoria ter sido posta em causa? Talvez por causa dos elementos que foram feitos por outros artistas, já que a escultura foi intensamente retrabalhada no século XVII – a maior parte da cruz e toda a cabeça, incluindo a cara, não foram feitas pelo mestre.

Para Jonathan Jones estes elementos não são, no entanto, suficientes para desacreditar este Cristo. A imaginação única de Miguel Ângelo está toda lá, defende, naquela nudez rigorosa, inflexível, numa obra notável que só deixou de parte porque, ao desbastar o mármore para esculpir a cabeça, se terá deparado com o veio negro que plantaria uma cicatriz no rosto da figura (por regra, Miguel Ângelo começava a trabalhar as suas esculturas a partir da base).

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O artista começou a trabalhar no seu David quando tinha 26 anos Tony Gentile/REUTERS

Garante o crítico que o pénis e os testículos deste primeiro Cristo della Minerva fazem lembrar os de David (1501-1504), a célebre e monumental escultura de Miguel Ângelo que evoca o herói bíblico e que hoje faz parte da colecção da Galeria da Academia, em Florença.

O seu corpo, como o do David que o artista começou a esculpir aos 26 anos, é um tratado de perfeição: “Enquanto se mostra ressuscitado, Cristo exibe a dignidade e a força de um herói clássico. Este naco sagrado tem músculos poderosos electrizando os seus braços pujantes. O seu tronco vibra com energia e força. Ele regressou da morte triunfante e essa vitória é visível no imenso poder do seu físico.”

Miguel Ângelo, um cristão convicto, não teria qualquer intenção de desrespeitar a figura de Cristo ao representá-lo nu, garante Jones, muito pelo contrário. O artista tinha grandes preocupações teológicas e terá certamente boas razões para ter decidido fazê-lo, embora hoje não as conheçamos.

É bem provável que a apresentação da segunda versão desta escultura tenha causado algum espanto, mas o artista, já na época um dos mais celebrados do mundo, não terá sofrido represálias. Lembra o crítico do Guardian, aliás, que na pintura da Renascença – época de uma “cultura livre e experimental formidável” – é frequente Jesus aparecer nu como prova da sua humanidade. Qual é então a diferença? É que na pintura estas representações tendem a ser de Cristo ainda bebé. Retratá-Lo “ressuscitado em toda a sua masculinidade é mais ameaçador e, por isso, mais raro”.