Directora do DCIAP confirmou arquivamento que terá sido pago por vice de Angola

Imunidade levou autoridades angolanas a recusar constituir arguido e interrogar o vice-presidente daquele país africano.

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Manuel Vicente é acusado de corrupção e branqueamento de capitais CARLO ALLEGRI/REUTERS

A antiga directora do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), Cândida Almeida, confirmou um dos dois despachos de arquivamento que estão na base da acusação de corrupção ao vice-presidente de Angola, Manuel Vicente.

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A antiga directora do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), Cândida Almeida, confirmou um dos dois despachos de arquivamento que estão na base da acusação de corrupção ao vice-presidente de Angola, Manuel Vicente.

Na acusação, o Ministério Público sustenta que o ex-presidente da Sonangol pagou a um antigo procurador daquele departamento, Orlando Figueira, 760 mil euros e outras vantagens, nomeadamente, a integração do magistrado num departamento do BCP. Recorde-se que Manuel Vicente foi vice-presidente do conselho geral e de supervisão deste banco em representação da petrolífera angolana.

O arquivamento que Cândida Almeida validou está relacionado com um inquérito por suspeitas de branqueamento de capitais que visava Manuel Vicente, aberto na sequência da compra de um apartamento no empreendimento Estoril Sol Residence, em Abril de 2011, que custou 3,8 milhões de euros ao político angolano.

Num despacho proferido naqueles autos, Cândida Almeida escreveu: “Lidos os autos. Acompanho o douto despacho que antecede, e respectiva fundamentação. Arquivem-se os autos, conforme doutamente decidido”. Contactada pelo PÚBLICO, a antiga directora do DCIAP diz que não tem dúvidas que o arquivamento foi “a decisão correcta”, realçando que o inquérito nunca foi reaberto. “Os rendimentos apresentados [pelo vice-presidente de Angola] eram suficientes para comprar vários apartamentos como aquele”, sustenta Cândida Almeida.

Isto porque o advogado que representou Manuel Vicente naquele caso, Paulo Blanco – agora acusado de ser co-autor de corrupção passiva, branqueamento, violação do segredo de justiça e falsificação de documento - juntou ao processo quatro declarações de rendimentos do cliente, uma da Sonangol, outra de uma subsidiária da petrolífera, uma do Banco Africano de Investimento e outra do BCP, para comprovar a origem lícita do dinheiro. Estranho é que quando o caso foi arquivado, Paulo Blanco pediu a restituição dos originais desses documentos, que foram retirados do processo, onde nem sequer ficaram cópias dos mesmos. A antiga directora do DCIAP não comenta este procedimento, mas diz que o habitual era que os documentos que não deveriam ser de acesso público ficassem no cofre do departamento.

Este inquérito foi arquivado por Orlando Figueira em 12 de Janeiro de 2012, uns meses antes do procurador sair do departamento do Ministério Público que agora o investiga, em Setembro desse ano. Quando arquivou esse processo, Orlando Figueira já tinha pedido ao Conselho Superior do Ministério Público que autorizasse a sua licença sem vencimento de longa duração, um pedido discutido numa reunião a 18 de Janeiro de 2012 e feito umas semanas antes.

“Nunca foi sequer ouvido”

Em comunicado enviado à imprensa, o advogado do vice-presidente de Angola, Rui Patrício, critica o Ministério Público pois Vicente “nunca foi sequer ouvido”, “o que constitui obrigação processual fundamental, cuja violação, bem como a violação de outras regras aplicáveis ao caso, é grave e séria e invalida o processo”. Nem ele, nem Manuel Vicente foram notificados ou informados de “coisa alguma”, acusa Rui Patrício, que nega qualquer relação de Vicente com "os factos do processo". Também o advogado de Paulo Blanco se queixou que a Procuradoria-Geral da República (PGR) anunciou a acusação, sem que nem ele nem o cliente tivessem sido notificados da mesma. 

Questionado pelo PÚBLICO quanto à falta de audição do vice angolano, a PGR esclarece que “não foi possível notificar Manuel Vicente para constituição como arguido e respectivo interrogatório”. Explica que foi enviada uma carta rogatória às autoridades angolanas, mas que “foi impossível cumprir a mesma, uma vez que, segundo aquelas autoridades, ‘Manuel Vicente, na qualidade de vice-presidente da República de Angola goza de imunidades materiais e processuais’”. As autoridades angolanas justificaram a decisão com a Constituição da República de Angola, que prevê que o presidente e o vice-presidente só podem ser responsabilizados criminalmente por crimes estranhos ao exercício das suas funções, perante o Supremo Tribunal, “cinco anos depois de terminado o seu mandato”.

A PGR adianta ainda que na “sequência de requerimento apresentado aos autos pelo mesmo arguido, manifestando disponibilidade para prestar todos os esclarecimentos necessários, foi o mesmo notificado através do seu mandatário para se deslocar a Portugal a fim de ser constituído arguido e ouvido nessa qualidade, o que o mesmo recusou”. Numa carta que Manuel Vicente remeteu ao processo, a responder àquele pedido, o vice-presidente de Angola diz que não tem agendada qualquer deslocação a Portugal em data próxima, fazendo uma referência aos mecanismos de cooperação entre os dois países. “Mantenho a minha disponibilidade para esclarecer o que tiverem por conveniente, quando oportuno e possível, e pelos meios próprios e adequados”, escreveu Manuel Vicente.

Na missiva, datada de Abril do ano passado, o vice-presidente angolano diz que relativamente ao inquérito ligado à compra do apartamento tudo foi tratado pelo advogado Paulo Blanco e garante que nunca se deslocou a Portugal para tratar desse assunto, nem sequer reuniu pessoalmente com o advogado. “E nada tenho que ver, repito, directa ou indirectamente, com a noticiada contratação do mesmo Exmo. senhor procurador Orlando Figueira ou com pagamentos que a ele possam ter sido feitos”, garante.

Segundo uma nota da PGR, Orlando Figueira está acusado de um crime de corrupção passiva e de outros crimes em co-autoria com os restantes arguidos: branqueamento, violação de segredo de justiça e falsificação de documento. Durante a investigação, foram “arrestados e apreendidos” ao magistrado cerca de 512 mil euros “que se encontravam em contas bancárias portuguesas, em cofres e em contas bancárias sedeadas no Principado de Andorra”.

Além de Paulo Blanco foi ainda acusado em co-autoria com o vice de Angola, Armindo Perpétuo Pires, "o qual tinha a seu cargo a representação em Portugal de Manuel Vicente em todos os assuntos de natureza fiscal, financeira, empresarial e legal". 

"Por não terem sido recolhidos indícios suficientes para fundamentar a dedução de despacho de acusação", o MP arquivou "os factos susceptíveis de configurar a prática de crime de branqueamento" pelo Banco Privado Atlântico Europa, onde Orlando Figueira tinha uma conta que a instituição terá ocultado aos investigadores.

Falso contrato de trabalho

Além do crime de corrupção, o Ministério Público imputa ao procurador Orlando Figueira um crime de branqueamento, outro de violação de segredo de justiça e outro de falsificação de documento. Este último crime estará relacionado com o que o Ministério Público considera ter sido a simulação de um contrato de trabalho que visaria o procurador. Orlando Figueira assinou um contrato de promessa com uma empresa angolana, que o Ministério público diz ser subsidiária da Sonangol, ainda quando estava no Ministério Público, tendo recebido um sinal no âmbito do referido acordo. O PÚBLICO sabe que a acusação por violação do segredo de justiça está relacionada com informação confidencial que o magistrado – que esteve em prisão preventiva e agora está em prisão domiciliária – alegadamente passou ao advogado Paulo Blanco.