Os sons do silêncio

Pode-se gostar, ou não, do novo filme de Scorsese, Silêncio.. Mas é difícil não reconhecer nele um dos poucos cineastas ainda capazes de resgatar o cinema da obsolescência anunciada.

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Talvez a principal questão que rodeia Silêncio seja exterior, prévia, ao filme. É, sequer, possível, nos nossos tempos de ruído constante, estarmos abertos a um filme chamado Silêncio, cujo conflito essencial é um conflito interior, invisível, de um homem com a sua fé? (Diríamos que sim; é não só possível como imperioso.) Durante a projecção à imprensa, não foram poucos os que abriam regularmente o telemóvel para ver ou responder a mensagens; sinal de que estariam maçados com o filme de Martin Scorsese (para o que, é certo, não seria preciso abrir o telemóvel...) ou que o mundo exterior os impedia de se concentrar no que estava ali, à sua frente.

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Talvez a principal questão que rodeia Silêncio seja exterior, prévia, ao filme. É, sequer, possível, nos nossos tempos de ruído constante, estarmos abertos a um filme chamado Silêncio, cujo conflito essencial é um conflito interior, invisível, de um homem com a sua fé? (Diríamos que sim; é não só possível como imperioso.) Durante a projecção à imprensa, não foram poucos os que abriam regularmente o telemóvel para ver ou responder a mensagens; sinal de que estariam maçados com o filme de Martin Scorsese (para o que, é certo, não seria preciso abrir o telemóvel...) ou que o mundo exterior os impedia de se concentrar no que estava ali, à sua frente.

Pode, é certo, parecer um pequeno fait-divers, mas a sua aparente irrelevância vai directamente à essência do que faz de Silêncio um filme importante. É que, goste-se ou não, Silêncio exige uma entrega que talvez já não seja possível hoje, uma reclusão impiedosa perante o cinema visto em sala como altar de devoção. É um filme que remete para, e pertence a, uma outra era do cinema (americano, mas não só). Nesse processo, acredita que, através de meios puramente audiovisuais, é capaz de abrir uma janela para o espectador habitar outros mundos, outras personagens, e de nelas encontrar algo que ressoe com a sua própria existência quotidiana. E não faz cedências absolutamente nenhumas nesse processo: Silêncio é Martin Scorsese a jogar num tabuleiro que ele próprio definiu. Como quem diz que há coisas que não são para quem quer, nem para quem pode, mas para quem sabe.

Sabe-se que Silêncio era um projecto de longa data do realizador, que o transportou durante quase 30 anos até finalmente o concretizar. Uns dirão que Scorsese já não tem unhas nem alma para esta guitarra, depois de ter sido “ignorado” por Hollywood pelos seus grandes filmes e finalmente aclamado por obras menores, mais convencionais, como The Departed, A Invenção de Hugo ou O Lobo de Wall Street. Mas este é um filme de quem já não tem nada a provar, e que não quer provar nada; apenas levantar interrogações que o perseguem desde sempre, sem por isso forçosamente lhes responder. Para quem esperava de Silêncio um filme “oriental” — e, sim, há aqui e ali um toquezinho de Kurosawa —, a verdade é que o filme vai numa outra direcção, muito mais próxima da “nova Hollywood” dos anos 1970 que o revelou: uma versão contemporânea de uma estética clássica, um filme de guerra moderno transplantado para um campo de batalha espiritual. Como se os seus heróis fossem soldados por trás das linhas do inimigo em busca de um homem perdido; em vez de comandos aliados numa missão suicida, padres jesuítas enviados para um Japão em plena purga da religião ocidental. A história do “resgate do padre Ferreira” tem qualquer coisa do Apocalypse Now de Coppola — uma viagem ao coração das trevas, menos agressivas mas mais insidiosas, que não por acaso é iniciada pelo meio do nevoeiro, com Andrew Garfield a fazer as vezes de Martin Sheen.

A escolha do actor britânico para herói desta odisseia espiritual tem sido muito criticada pela sua aparente superficialidade — e Garfield, que vimos recentemente no Herói de Hacksaw Ridge de Mel Gibson mas que recordamos sobretudo da Rede Social de Fincher, não seria a primeira escolha de ninguém. Mas não é uma decisão descabida: a aparente transparência de Garfield fá-lo ideal, na sua convicção pura e heróica do martírio pela fé, para transportar a queda em pecado de soberba do padre Sebastião, para perceber lentamente que as torturas da certeza são a base da dúvida que alimenta a fé. Silêncio é, também por isso, o filme de um realizador que conduz um actor por uma via sacra de compreensão da sua arte, que faz o silêncio à sua volta tornar-se mais ruidoso do que qualquer trabalho de som. E essa talvez seja a maior grandeza de Silêncio: este filme sobre a fé abdica por completo daquela que sempre foi uma das forças anímicas do cinema de Scorsese — a música. Como se só no silêncio a verdade se fizesse ouvir.

Pode-se gostar, ou não, de Silêncio (nós gostamos, e muito). Mas é difícil não ver, e não reconhecer, nele o espelho de um dos poucos cineastas que ainda são capazes de resgatar o cinema, e de se resgatarem, a si próprios, da obsolescência anunciada. Este Silêncio não é para todos: é para quem acredita.

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