O Vodafone Mexefest é um festival, é uma longa caminhada

No festival que ocupa a Avenida da Liberdade e zonas adjacentes, em Lisboa, há tantos roteiros possíveis quanto espectadores. No nosso, destacaram-se Talib Kweli ou Medeiros/Lucas. E a possibilidade de descobrir espaços habitualmente escondidos do nosso olhar.

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Num momento estamos num salão ricamente decorado, sala nobre no centro da cidade, a ver Filipe Sambado mostrar como fazer de romantismo e prazer pela vida canções para iluminar os nossos dias. No momento seguinte, aterramos noutro salão, este mais vivido, para perceber, uma vez mais, como é tocante, superlativa, a música que Pedro Lucas e Carlos Medeiros – Medeiros/Lucas, portanto – vêm criando entre nós (e quando Selma Uamusse se lhes junta em Corpo vazio, tudo se torna ainda mais intenso e imponente).

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Num momento estamos num salão ricamente decorado, sala nobre no centro da cidade, a ver Filipe Sambado mostrar como fazer de romantismo e prazer pela vida canções para iluminar os nossos dias. No momento seguinte, aterramos noutro salão, este mais vivido, para perceber, uma vez mais, como é tocante, superlativa, a música que Pedro Lucas e Carlos Medeiros – Medeiros/Lucas, portanto – vêm criando entre nós (e quando Selma Uamusse se lhes junta em Corpo vazio, tudo se torna ainda mais intenso e imponente).

O primeiro actuou com a sua banda no Palácio Foz, nos Restauradores. Os segundos, acompanhados de baterista e teclista, na Casa do Alentejo. Dois dos espaços que percorremos e dois dos concertos que vimos na noite no primeiro dia de Vodafone Mexefest, sexta-feira. O do hip hop de Talib Kweli, o da confirmação de Bruno Pernadas e, no fim, o da festa dançante dos australianos Jagwar Ma.

Recuemos algumas horas. Estão a atravessar em passo de corrida a rua das Portas de Santo Antão em direcção ao Largo de São Domingos. As duas raparigas que corriam sorridentes apressavam-se para ver Jorge Palma, que, em concerto surpresa, toca Terra dos sonhos ou Lobo malvado à guitarra, tal como nos anos em que actuava para o lufa-lufa de gentes no metro de Paris.

Não longe de Palma, na Rua das Portas de Santo Antão, e mais acima dela, na Avenida da Liberdade e nos Restauradores, misturavam-se vários tipos de azáfama. A descontraída dos turistas, a ouvir as interpelações dos empregados de mesa ou, já sentados, a observar a artista de rua que se entrega a uma mescla de dança do ventre e flamenco. Alguns tentam perceber o que é que se passa (para além da dança do ventre sevilhana, claro), quando se vêem rodeados por uma multidão em movimento constante, entre a qual se formam pequenos grupos de gente que se põe de olhos nos telemóveis ou em pequenos folhetos vermelhos. A outra azáfama era a do público do Vodafone Mexefest, fazendo contas para perceber que concertos conseguiria ver, e quais iria inevitavelmente perder.

O festival já tem hoje lugar reservado nos acontecimentos da cidade. Sabemos como funciona: vários concertos, espalhados por diversos espaços, dos mais nobres e reconhecidos a outros, mais inesperados, a que a população não tem habitualmente acesso. Sendo os concertos aquilo que move a multidão, a verdade é que parte do atractivo do Mexefest prende-se, precisamente, com a possibilidade de descobrir o que se passa no interior de edifícios de que habitualmente não vemos mais do que a fachada. Como a Sociedade de Geografia de Lisboa, colada ao Coliseu, onde passaram Lula Pena e a nova canção angolana, protagonizada por Toty Sa'Med. Como o sotão do Tivoli, transformado em discoteca para suar ao ritmo do DJ set de Pedro Coquenão (Batida), acompanhado pelo sul-africano Spoek Mathambo. Como o supracitado Palácio Foz, a austera Garagem EPAL, por onde passou Manuel Fúria, ou o pátio da Estação Ferroviária do Rossio, onde nos demorámos, como normalmente não fazemos, a observar a lua no alto, e o Castelo de São Jorge na colina, enquanto os nova-iorquinos Sunflower Bean descobrem, para seu espanto e felicidade, que há por aqui uma multidão que muito aprecia o shoegaze vitaminado do seu álbum de estreia, Human Ceremony.

Enquanto se acumulam quilómetros nas pernas, a sobreposição de concertos espalhados pelos diversos espaços leva a que cada um dos espectadores caminhantes elabore o seu próprio roteiro. Esse incluiu, para muitos deles (o Tivoli estava muito bem preenchido), a big band rock de Bruno Pernadas, capaz de misturar rock sónico, pop de harmonias vocais iluminadas (cortesia de Francisca Cortesão e Afonso Cabral), jazz com a coolness de banda sonora dos 70s, space rock e tropicalismo, sem que nos percamos no eclectismo – o maestro Pernadas sabe como coser tudo com mestria.

Caminhadas acompanhadas pela fanfarra ambulante dos Kumpania Algazarra, nas ruas, ou pelo rock acelerado dos Fugly, no autocarro que transporta o público pela avenida, que podem ter desembocado na Casa do Alentejo, onde um veterano guardião da canção americana, Howe Gelb, se apresentou ao piano, acompanhado de baterista e contrabaixista, para ouvir a mais surreal tirada da noite. A determinado momento, referiu que seria a altura ideal para uma canção de Leonard Cohen. Da plateia, alguém, ou muito distraído, ou afectado por uma momentânea disfunção cognitiva, gritou “Elvis Costello!” – tocou-se Cohen, claro.

No nosso roteiro, destacou-se Talib Kweli, rapper da palavra feita acção que, disse, não tolera estes tempos em que se diz aos artistas para calarem as suas convicções. No reinaugurado Cine-Teatro Capitólio, cerca das 22h00, Kweli foi agente activista trabalhando sobre as tarolas cortantes e baixos bojudos lançadas pela DJ de serviço, foi homem consciente e orgulhoso da sua história, citando nomes como J Dilla, Bob Marley, Beatles ou Nina Simone. Ouviu-se o piano blues dela, samplado, introduzindo-se assim Get by, e Kweli tornou-se um com o público que o celebrava.

Uma hora mais tarde, todos os caminhos pareciam confluir para o Coliseu dos Recreios. Sem outros concertos a fazerem-lhes concorrência, para além da festa de Coquenão no sótão do Tivoli, os australianos Jagwar Ma tinham o fim de noite no Mexefest por sua conta. Ou quase. Porque, primeiro, surgiu no camarote presidencial Carlão para ler ao público um conto que o protocolo de Estado certamente não toleraria (título: “O Princípio de uma Boa Queca”). Depois sim, o trio vindo dos antípodas.

Sintetizadores analógicos a carburar em pleno, guitarras a psicadelizar o ritmo e baixo a marcar o andamento. A Manchester dos Stones Roses, revista e actualizada, para uma rave de 2016 a sonhar com 1989. O vocalista Gabriel Winterfield balançou naquele seu modo meio trôpego, a house ganhou refrões pop solares e batidas hip hop serviram, aqui e ali, como base para voos planantes. Os Jagwar Ma cumpriram a sua função: oferecer o ritmo à madrugada.

Terminado o primeiro dia de Mexefest, era tempo de começar a pensar no seguinte, sábado. O de Elza Soares, chegada de concertos no Porto e em Aveiro, e que tem Mayra Andrade, Whitney, Digable Planets, Kevin Morby ou Branko como outros destaques.