Cultura em diálogo, aqui estou

É a americanização que neste momento manda, com uma verdadeira afirmação daquilo que é “evenemencial” e que é uma cultura de bolhas, cheias de vazio, que aparecem fulgurantes e se esfumam coladas com cuspo que são.

Na recente entrevista do SEC, Miguel Honrado, é dito: estamos a mudar os modelos de apoio às artes numa perspectiva de maior estabilidade e os concursos vão ser mais parecidos com os pontuais que com os outros. A afirmação não é completamente definitiva — “será mais numa linha de apoios pontuais que de apoios plurianuais ou anuais” — mas pode colher-se dela que há a possibilidade de uma secundarização da média/longa duração — longa, relativamente, pois! Plurianuais são apoios a dois ou a quatro anos; o tempo de uma legislatura de quatro anos, tempo sempre inferior à necessidade de qualquer reforma, alteração de fundo estruturante.

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Na recente entrevista do SEC, Miguel Honrado, é dito: estamos a mudar os modelos de apoio às artes numa perspectiva de maior estabilidade e os concursos vão ser mais parecidos com os pontuais que com os outros. A afirmação não é completamente definitiva — “será mais numa linha de apoios pontuais que de apoios plurianuais ou anuais” — mas pode colher-se dela que há a possibilidade de uma secundarização da média/longa duração — longa, relativamente, pois! Plurianuais são apoios a dois ou a quatro anos; o tempo de uma legislatura de quatro anos, tempo sempre inferior à necessidade de qualquer reforma, alteração de fundo estruturante.

Uma lógica de planificação, um programa, portanto, só pode ancorar-se num tempo mais prolongado do que o do apoio pontual. Seja qual for o modo de acentuação da esfera do pontual não trará estabilidade ao sistema que, neste momento — o que coincide com mínimos existenciais de um serviço público — assenta em estruturas exauridas pelas políticas de cortes administrativos e cegos dos últimos anos e cuja vida não pode coincidir com o tempo de criação de um espectáculo, numa lógica de produção espectáculo a espectáculo, inevitavelmente feita de actos esporádicos, pontuais. As estruturas de criação são modos colectivos de cumplicidade interpessoal feitos de labor e tentativa de rigor constantes, feitos de tempo de criação conjunto, de experiências de escrita comuns e de mergulho nos reportórios, nos textos referenciais, mesmo que seja para “traí-los” ou mesmo “torná-los fáceis, estupidificá-los” — é um direito que assiste aos partidários de estéticas voluntariamente sujeitos ao marketing e a formas de exteriorização mediatizadas que os conotam, enroupadas de um actualismo prêt-a-porter e dos clichés expressivos do momento da “cultura mediática”.

Escrevo produção, porque criação pressupõe, de facto, uma profundidade diferente da concretização das condições de produção da realização pontual. Esta nada tem de dever, nem a uma memória comum produtiva - pelo contrário, surfa a hora - nem a uma lógica de equipa nem ao conhecimento profundo do espaço e do tempo criativos, identificável numa linha que essa memória comum explicita como linguagem, e tudo deve ao engenho produtor, a um chico-espertismo desenrascado. O teatro, neste aspecto, não é o cinema (e aqui há equipas mínimas), não só as equipas têm cumplicidades de longa duração, como os espaços de criação, as equipas técnicas e técnico-artísticas dominam, no tempo, os segredos da arquitectura do espaço de criação privilegiado — lembremo-nos da Cristina Reis. O espaço é essencial: diferente é um teatro à italiana de uma garagem e é contra a cenografia antiga instalada que o contemporâneo tem de se afirmar, pois esta impõe outro teatro, vive nela como fantasma bem presente de outro tempo. Digamos que o primeiro texto, o texto contentor, é o espaço e que este mata ou faz viver, os seus dispositivos de comunicação cena/sala não podem ignorar-se. O mesmo para a qualidade acústica dos vazios e das paredes. Entre a secura e a reverberação a palavra vive, ou não, o excesso de som mata, a secura torna as palavras por vezes inaudíveis e estas quase mudam de identidade, entre a dimensão de câmara e a cena impositiva, decibéis ao alto sobre a plateia de “surdos”. Tudo são equilíbrios inventivos, formas de “ouver”.

O que é estruturante e coincide com o que seja estável não pode afirmar-se do avulso, a democracia não é um outsourcing nem vive de lucro algum como finalidade que não seja uma maior profundidade das suas margens de qualidade e liberdade fruíveis pelos cidadãos. Ela é o luxo necessário da despesa a inventá-la, mas sem ela não há nem escola nem saúde para todos nem qualificação cultural, condição das qualificações profissionais, nem mercado regulado. Só selvageria, totalitarismo financeiro. O avulso é o que é próprio de uma lógica que privilegia o espectáculo, o “show”, a celebridade instante, em detrimento da memória, da energia propulsora do que está inscrito na História e que não é de desvalorizar: 2500 anos da dramaturgia que, numa estrutura de criação competente, têm de inscrever-se com a universalidade de saber que podemos reconhecer a uma equipa de pesquisa de uma Universidade e mais de um século de encenação e encenadores, de Antoine e Evreinov e Meyerhold e Appia a Vilar, Brecht, Vitez, Muller, Strehler, Chéreau, Brook e a Crimp — que há pouco encenou no seu Orange Tree Theatre — e a tantos outros, paisagem infinita e rica de criadores de um teatro da cena que age em contradição estimulante com um teatro da palavra. Estas tradições não podem ser dispensadas do olhar que hoje possa emergir. É dos contributos da dramaturgia e da encenação para uma prática estética hoje, cénica, teatral, do seu legado, das suas potencialidades de partilha universais, europeias, que o teatro, com as suas fronteiras em ebulição de trânsitos disciplinares e multiculturais que um novo teatro se afirmará eventualmente, se não sucumbir, também ele, ao rápido e ao descartável que a americanização comporta. E é esta que neste momento manda com uma verdadeira afirmação daquilo que é “evenemencial” e que é uma cultura de bolhas, cheias de vazio, que aparecem fulgurantes e se esfumam coladas com cuspo que são.

E retenhamos que o teatro é essencialmente uma história europeia alargada — se pensarmos na mitologia grega como uma espécie de totalidade da diversidade das experiências do mundo e da vida em embrião na história (Heiner Muller disse-o em entrevista ao L’Unitá), esta ampla matriz original será sempre reinventada, renascida, vivificada nos modos de escrita do nosso presente, não na versão pobre de adaptação dos clássicos feita à blue jeans dos anos setenta, mas no uso de novas tecnologias da representação baseado nos novos modos de análise do texto e de conhecimento da história — a “dramaturgia” não é uma falácia mas um modo experimental, empírico mas metodológico, de transição ao cénico, de parto do cénico, capaz de convocar um olhar científico ao seio da decisão e do fazer artístico, além de ser um estímulo ao jogo do actor, literal e fabular, uma alimento da energia criativa no presente do trabalho de ensaio. Ensaiar, para além de repetir, é construir hipóteses a partir de teses.

Sabemos que trabalhar os clássicos, ou afrontar a História seja de que forma for — e a memória é um absoluto em qualquer presente, mesmo desprezada, já que o tempo não cessa — é um trabalho da forma sobre a forma, inevitavelmente e não o renascimento mimético de um “como terá sido” que nunca regressará nem falará aos modos de ver contemporâneos. Essa experimentação, a da adaptação dos clássicos, tem no nosso presente já um longo caminho, tal como a adaptação de materiais narrativos à cena. Um estrutura dotada destas capacidades de ler o real hoje é necessariamente o exemplo de uma identidade construída no tempo, na duração. A obra é o resultado dessa persistência na duração e da capacidade renovada de inventar: esta não se faz sem a profundidade de um substrato cultural na base, sem uma profundidade rica tornada partilha cúmplice. É esse o chão da criação, é esse o chão de uma estrutura de criação.

A meu ver, aproveitando a constante insistência do Miguel Honrado na ideia de uma cultura de diálogo — bandeira de António Guterres, como a escola e a criação necessitada de estabilidade que a estimule — que, de facto, a governação anterior liquidou por autoritarismo de projecto — o fim do próprio Ministério — um passo a dar é o de, verificadas as dimensões de serviço público dos projectos e portanto a resposta de cada um às necessidades de alargamento dos espaços de respiração artística que acrescentem democracia à democracia, fecundando-a, articular uma eficácia de “intervenção social” (Miguel Honrado fala da cultura enquanto categoria de intervenção social, reconhecendo nessa intervenção uma função) que faça convergir Sector Público (unidades de criação ultra-estáveis) com as unidades municipais/estatais e com as unidades privadas sem fins lucrativos que o assumem projectualmente, sendo que o que é pontual estará para além desta necessária estruturação de convergências e só faz sentido quando apoiado e incentivado pelas estruturas estáveis — os italianos chamam-lhes Teatro Stabile — único modo da sua inscrição na maior parte dos casos.

Só essa forma será estruturante de qualquer aprofundamento das artes cénicas e presenciais no corpo amputado da democracia para o completar e complementar mais. De facto é necessário caminhar para a estabilização de um mínimo de actividade artística permanente numa rede nacional que cubra os territórios de um ponto de vista demográfico e geográfico. Também os que estão longe têm direito a aceder ao que é de todos e está oculto, não só a tradição vivificável mas também a experimentação que, de uma dada base, se crie como exploração de linguagens em articulação com práticas reconhecidamente capazes de “escrita”. O que é questão de algo que se chama literacia — os projectos artísticos não podem propagandear formas de analfabetismo, nem praticar uma constante desqualificação da própria língua, da sua riqueza múltipla. Onde é que a língua tem um laboratório constante da sua própria vida prática? No teatro, no cinema, nas artes da cena.

Tem de haver obviamente um lugar para o inêxito, para o que não seja apenas programa reconhecido segundo todos os critérios do apoio, para um campo enigmático, desconhecido, que não se negue como possibilidade de caminho para a invenção artística — mas mesmo essa dimensão das coisas será capaz de revelar o seu interesse na sua fundamentação, não podemos escapar a uma racionalidade produtiva e transparente. Nem tudo vive do excesso de identificação possível e muito menos é estimulado por um clausulado de abstracções somadas feito lei, muitas vezes montado aos bocados, fazendo copy-paste de documentos anteriores, mal escrito e mal ordenado, sequenciado, textos que são pobremente normativos e autoritariamente complicados. Mas nada disto sobreviverá sem um amplo trabalho de avaliação baseado nesse caminho longo de um “diálogo cultural” competente e produtivo, de longa duração, permanente, também ele inventor.

Encenador