Kerry acusa Rússia de viver "num universo paralelo" em relação à Síria

“Há poderes sentados a esta mesa que não querem o cessar-fogo e têm-no demonstrado uma vez e outra e outra e outra”, repetiu o secretário de Estado americano.

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O tom da intervenção de John Kerry mostrou a sua frustração Lucas Jackson /Reuters

Uma troca de farpas acesa e pública marcou a reunião de emergência do Conselho de Segurança das Nações Unidas, em Nova Iorque, em que se tentava discutir como salvar o cessar-fogo no país. O secretário de Estado dos Estados Unidos, John Kerry, disse que depois de ouvir o seu colega russo, Sergei Lavrov, sentia que este estava “num universo paralelo” em relação à situação na Síria. Antes, Lavrov apontou o dedo de modo não muito subtil aos EUA.

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Uma troca de farpas acesa e pública marcou a reunião de emergência do Conselho de Segurança das Nações Unidas, em Nova Iorque, em que se tentava discutir como salvar o cessar-fogo no país. O secretário de Estado dos Estados Unidos, John Kerry, disse que depois de ouvir o seu colega russo, Sergei Lavrov, sentia que este estava “num universo paralelo” em relação à situação na Síria. Antes, Lavrov apontou o dedo de modo não muito subtil aos EUA.

Kerry fez este comentário após um ataque a uma coluna humanitária das Nações Unidas e Crescente Vermelho, durante uma trégua acordada entre Washington, que apoia os rebeldes moderados, e Moscovo, que apoia o regime de Bashar al-Assad. Este ataque foi descrito pela maioria das agências no terreno como um ataque aéreo, e por isso provavelmente levado a cabo pela aviação russa ou síria, e os EUA acusam a Rússia. Moscovo reagiu dizendo no dia do ataque que não se tratava de um ataque aéreo, e um dia depois alegando que havia um drone americano na zona na altura do ataque.

O tom da intervenção de Kerry mostrou a sua frustração. “Há poderes sentados a esta mesa que não querem o cessar-fogo e têm-no demonstrado uma vez e outra e outra e outra”, repetiu. “Não podemos continuar como se isto fosse normal. Não podemos sair desta sala e dizer, Ok, vamos ter este cessar-fogo que toda a gente sabe que não vai resultar”. O único modo de dar credibilidade ao processo seria, sugeriu, “deixar todos os aviões em terra e dar uma hipótese à ajuda humanitária de circular sem impedimentos”.

Já Lavrov pediu uma investigação ao ataque à coluna humanitária, que a Rússia mantém não ter sido da sua responsabilidade, e lançou um ataque aos Estados Unidos, dizendo que o conflito na Síria, assim como no Iraque e na Líbia, é “consequência directa” das intervenções militares na região. Na Síria, “a principal prioridade é separar as forças da oposição dos terroristas”, defendeu ainda Lavrov – algo que tinha sido a maior cedência americana no acordo de cessar-fogo: considerar um grupo extremista que luta ao lado dos rebeldes moderados como alvo de futuros ataques aéreos coordenados pela Rússia e Estados Unidos, a fase seguinte do plano de cessar-fogo.

Tentando um último esforço, o ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Jean-Marc Ayrault, anunciou entretanto a proposta de um novo mecanismo de monitorização do cessar-fogo, sem dar mais detalhes sobre ele. “A França acredita que apenas uma mobilização colectiva tornará possível atingir os objectivos [do cessar-fogo]”, disse. “A trégua está morta, por isso têm de ser feitos todos os esforços para a reavivar.”

No terreno, confrontos continuavam perto de Alepo e um hospital foi atingido num ataque aéreo que terá deixado mais de dez mortos, incluindo quatro elementos de tripulação de ambulâncias. 

A União de Organização de Cuidados Médicos e Ajuda, um grupo sírio com sede em Paris, disse à BBC que o ataque ao hospital e o ataque de véspera à coluna humanitária “não são uma coincidência”. “Alguém está a tentar dizer-nos que os trabalhadores humanitários não são bem-vindos na Síria, que somos um alvo, que vamos ser mortos”, declarou Zaydoun al Zoubi à emissora britânica.

Antes, Moscovo anunciou o fortalecimento da sua presença militar no país “Nesta altura, seis navios de guerra e três ou quatro navios de apoio fazem parte da nossa frota no Leste do mar Mediterrâneo”, declarou o ministro russo da Defesa, Sergei Choigou, citado pela AFP. “Para reforçar as nossas capacidades militares, vamos acrescentar-lhe o nosso porta-aviões Almirante Kouznetsov”.

A trégua estava em vigor desde 12 de Setembro e tinha sido já fortemente abalada no sábado, quando um ataque dos Estados Unidos que visava combatentes do autodenominado Estado Islâmico (EI) acabou por matar 60 soldados sírios por engano.

Kerry referiu-se a este incidente, reconhecendo o enorme erro mas sublinhando as diferenças em relação ao ataque à coluna humanitária. Primeiro, “do ar, é muito diferente como parecem homens com armas e camiões com marca da ONU”; segundo, Washington reconheceu o erro de imediato e “não avançou um monte de factos confusos”.

Os Estados Unidos estão convencidos da culpa ou conivência da Rússia neste ataque, e fontes do New York Times adiantavam que apesar de ter informação sobre a intervenção russa, a Administração americana quer dar tempo e espaço a Moscovo para fazer a sua investigação e apresentar as suas próprias conclusões sobre o bombardeamento.

Horas antes, o Governo russo tinha argumentado que a coluna de ajuda humanitária não foi atacada a partir do ar. “Não há crateras e o exterior dos veículos não apresentam o tipo de danos criados pela explosão de bombas lançadas do ar”, lê-se numa declaração do Ministério da Defesa, citada pela BBC.

A ONU, que começou por referir um ataque aéreo, recuou e indicou por seu lado “não estar em posição de determinar” o tipo de ataque. Mas um alto responsável americano garantiu ao NYT que “não há indícios de que tenha sido outra coisa que não um ataque aéreo”. Em todo o caso, Moscovo não negou que estava a seguir os veículos (foram emitidas imagens recolhidas por drones), mas afirmou ter-lhes perdido o rasto quando entraram em território rebelde.

O Ministério russo da Defesa declarou ainda mais tarde que na zona do ataque estava um drone norte-americano. “Só os donos do drone podem saber o que ele lá estava a fazer”, disse o porta-voz, major-general Igor Konashenkov, concluindo no entanto que a Rússia não estava a “tirar conclusões” da presença do drone.

Os alvos dos mísseis foram um armazém usado pelas organizações humanitárias e uma coluna de 31 camiões que transportavam produtos de assistência urgente – alimentos, antibióticos, material cirúrgico – para 78 mil pessoas numa localidade cercada da província de Alepo. Dezoito veículos ficaram totalmente destruídos. Para além disso, o chefe do Crescente Vermelho Sírio, Omar Barakat, e cerca de 20 civis perderam a vida, adiantou aquela organização.

Se for provado que foi intencional, o ataque seria um crime de guerra, disse o responsável do Gabinete de Coordenação Humanitária (OCHA) das Nações Unidas, Stephen O’Brien.

A ONU suspendeu a distribuição de ajuda na sequência do ataque, mas anunciou que está pronta a recomeçar assim haja condições.