Prémio Champalimaud vai para cientistas que estudam os “cabos” que ligam os olhos ao cérebro

Um milhão de euros para distribuir por quatro cientistas que querem manter, regenerar e reparar as ligações no complexo circuito entre os nossos olhos e o cérebro. Christine Holt, Carol Mason, John Flanagan e Carla Shatz são os premiados.

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Para que consiga ver estas palavras, algo de muito complexo acontece no seu cérebro numa fracção de segundo. É preciso que um complicado sistema com ligações, células, neurónios, proteínas funcione. Alguns estudos, desenvolvidos nas últimas duas décadas, têm conseguido explicar certos momentos desta enigmática viagem no cérebro que começa nos olhos e podem ser essenciais para novas terapias para problemas de visão e também para doenças neurodegenerativas. Quatro cientistas que conseguiram avanços importantes nesta área recebem esta terça-feira o Prémio António Champalimaud de Visão 2016 de um milhão de euros.

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Para que consiga ver estas palavras, algo de muito complexo acontece no seu cérebro numa fracção de segundo. É preciso que um complicado sistema com ligações, células, neurónios, proteínas funcione. Alguns estudos, desenvolvidos nas últimas duas décadas, têm conseguido explicar certos momentos desta enigmática viagem no cérebro que começa nos olhos e podem ser essenciais para novas terapias para problemas de visão e também para doenças neurodegenerativas. Quatro cientistas que conseguiram avanços importantes nesta área recebem esta terça-feira o Prémio António Champalimaud de Visão 2016 de um milhão de euros.

No desenvolvimento do embrião há células especializadas nos olhos que começam a enviar um fino cabo a partir do olho até ao cérebro que, no final, formará o nervo óptico. Quando falamos em nervo óptico parece que é uma só estrutura mas, na verdade, este nervo é feito de milhões de minúsculos axónios, os “cabos” nos neurónios que transmitem os impulsos nervosos a outros neurónios. Essas são as estruturas que levam a informação visual dos olhos até ao cérebro e que fazem com que sejamos capazes de ver.

A incrível viagem dos axónios

Durante a “instalação” deste complexo sistema de cabos e ligações, ainda no útero, os axónios passam por várias regiões cerebrais, viram à direita e à esquerda, passam por cruzamentos e rotundas até à meta – os alvos (sinápticos) no nosso cérebro.

“Uma enorme façanha de navegação” feita com muita precisão e que nos faz pensar que estes axónios têm uma espécie de GPS, como sublinha Christine Holt, investigadora na Universidade de Cambridge, do Reino Unido, e agora premiada. “O que estamos a tentar descobrir é como se orientam, o que é que guia estes axónios e os mantém no caminho certo para os alvos correctos”, resume a investigadora que adianta ainda que nos últimos 20 anos já se percebeu, por exemplo, que nesta viagem há algumas zonas importantes que atraem ou repelem os axónios. A investigação de Christine Holt debruça-se sobre os mecanismos (que podem ser moléculas) existentes nestas zonas e que guiam os axónios. “Se aquela molécula não estiver lá ou existir numa quantidade reduzida temos um problema grave de visão”, explica. A cientista também percebeu que o axónio é capaz de sintetizar novas proteínas em resposta a alguns sinais, revelando “uma impressionante capacidade de adaptação destas estruturas”.

Para já, os cientistas tentam perceber os mecanismos deste complexo sistema. Mas o objectivo é depois podermos interferir neste emaranhado de cabos e fios para corrigir problemas. “Se não soubermos como funciona o motor do carro não podemos repará-lo. Estamos a tentar perceber como tudo está montado e só depois vamos conseguir intervir. Esperamos que a nossa investigação venha a ter um impacto na reparação de danos causados por trauma, por exemplo. Outro aspecto será a possibilidade de intervir no campo da neuro-regeneração para doenças neurodegenerativas porque percebemos que alguns destes mecanismos que estamos a estudar são importantes para manter o axónio a funcionar depois de ele estar instalado e ligado”, refere Christine Holt ao PÚBLICO.

Os “semáforos”

Carol Mason, outra das vencedoras do prémio, também investiga o desenvolvimento do sistema visual na Universidade de Columbia, Estados Unidos. O seu trabalho centra-se sobretudo num momento especial da instalação deste sistema chamado “quiasmo óptico” e que, de forma simplista, consiste numa zona em que os axónios formam umas rotundas e um cruzamento no nosso cérebro.

“Para conseguirmos ver todo o campo visual, metade das células nervosas de um olho passam para o outro lado do cérebro no quiasmo óptico e a outra metade cresce para o mesmo lado do cérebro. O que estudamos é a forma como as células nervosas fazem esta navegação dual, ou seja, cruzam ou não cruzam o quiasmo óptico. Percebemos que há sinais no quiasmo óptico que funcionam quase como semáforos (que neste caso são moléculas) que dizem às células para atravessar ou não e que as células também têm receptores (moléculas) que interpretam estes sinais”, explicou ao PÚBLICO.

Em doenças como o glaucoma, em que assistimos à morte ou graves danos de células nervosas ou mesmo outro tipo de casos, como lesões traumáticas, acidentes vasculares cerebrais ou doenças neurodegenerativas, a grande questão é como fazer com que as células regenerem. “Uma maneira de estimular o crescimento de células nervosas no cérebro adulto poderá passar por restaurar a acção dos receptores identificados na fase de desenvolvimento embrionário [e que nessa etapa ajudam os neurónios a crescer]”, explicou ao PÚBLICO. “Conseguir que as células nervosas regenerem e restaurem as ligações no cérebro adulto é o sonho”, resume.

A maquinaria molecular

John Flanagan, que trabalha na Universidade de Oxford, em Inglaterra, também está empenhado em esclarecer como todo o sistema é criado e ligado no cérebro durante o desenvolvimento embrionário. “Conseguimos identificar alguns mecanismos moleculares importantes que “dizem” às células quando crescer e que podem servir para resolver problemas no cérebro adulto”, diz ao PÚBLICO, adiantando que estes mecanismos são sinais extracelulares e que o próprio axónio da célula tem uma “maquinaria” que responde a esses sinais.

Carla Shatz é outra das cientistas premiadas mas que não está presente na entrega do milhão de euros do Instituto Champalimaud pois esta terça-feira recebe também o Prémio Kavli de Neurociência, ou seja, mais uma milhão de euros mas a dividir por três investigadores. A cientista da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, que soma prémios e milhões, passou a carreira a tentar decifrar o que acontece durante o desenvolvimento do cérebro, particularmente na região que recebe informação dos olhos. Entre outros avanços, descobriu que os neurónios expressam genes que antes se pensava serem exclusivos de células do sistema imunitário. A investigação de Carla Shatz e da sua equipa será relevante para esclarecer o funcionamento do cérebro e perturbações do desenvolvimento como o Autismo e a Esquizofrenia, mas também para perceber como é que o sistema nervoso e imunitário interagem.

Christine Holt, Carol Mason, John Flanagan e Carla Shatz têm muito em comum. Querem esclarecer o que se passa no cérebro durante o seu desenvolvimento para conseguirmos ver e, assim, perceber como podemos intervir quando surgem problemas na idade adulta. Escolheram o caminho feito de um emaranhado de "cabos" que parte dos olhos. Têm o mesmo sonho, a mesma visão. E agora têm também um milhão de euros para dividir.