O Brasil, o diabo e a moça

Sobre A Moça que Dançou com o Diabo, de João Paulo Miranda Maria

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O texto seguinte foi produzido por um dos participantes do workshop Crítica de Cinema realizado durante o Curtas Vila do Conde – Festival Internacional de Cinema. Este workshop é formado por um conjunto de masterclasses e debates com convidados internacionais e pela produção de textos críticos sobre os filmes exibidos durante o festival, que serão publicados, periodicamente, no site do PÚBLICO e no blogue do Curtas Vila do Conde.

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O texto seguinte foi produzido por um dos participantes do workshop Crítica de Cinema realizado durante o Curtas Vila do Conde – Festival Internacional de Cinema. Este workshop é formado por um conjunto de masterclasses e debates com convidados internacionais e pela produção de textos críticos sobre os filmes exibidos durante o festival, que serão publicados, periodicamente, no site do PÚBLICO e no blogue do Curtas Vila do Conde.

Num quarto escuro, uma mulher, de costas para a câmara, abre a janela. Um plano fixo, um quarto sem vista, uma janela com grades virada para tijolos. Ela, apenas de roupa interior, debruça-se sobre os ferros, como se fosse uma prisão cálida. Vemos apenas um teclado à sua frente, desligado. E então o plano inicia um lânguido zoom out e vemos a moça, também de costas, a olhar para ela. E em menos de dois minutos A Moça que Dançou com o Diabo (2016) já nos agarrou à cadeira pela cinematografia magistral, por uma noção perfeita de enquadramento e um controlo exímio de luz e sombra “caravaggiano”. Voltando à cena, a moça olha para o lado enquanto o seu pai entra no quadro. A mulher veste uma camisa translúcida e balbucia: “Oh, Meu Deus”. A família está completa e, apesar de ser apenas um desabafo, estas palavras dão o mote à temática espiritual da obra.

A cena seguinte é filmada na rua: com a sua mulher em segundo plano de mão pousada no teclado silencioso, o marido, munido de microfone, prega entusiasticamente os princípios do Evangelho. Mas o que o pai não percebe é que enquanto ele brada sobre o fogo e o enxofre que destruíram Sodoma, nós reparamos que a filha olha a câmara com um sorriso sedutor: a adolescência está aí à porta e não há Deus que nos proteja dos pecados mais elementares.

A terceira curta-metragem de João Paulo Miranda Maria, que arrecadou o Prémio do Júri em Cannes, consiste na recriação contemporânea de uma antiga lenda do interior rural paulista: uma moça decide, contra a vontade de seus pais, organizar um baile numa sexta-feira santa; o Diabo, espantado com tal ousadia, aparece disfarçado e acaba por dançar e enfeitiçar a dita. Miranda Maria, que é simultaneamente realizador, argumentista e montador do filme, parte desta premissa para apresentar um retrato fidedigno do Brasil actual, país quente e por vezes paradoxal, onde obsessões místicas e religiosas convivem com roupas justas e provocantes, tudo isto ao som de música sertaneja de qualidade duvidosa.

A produção é modesta — parte do financiamento foi conseguida através de rifas —, mas a fotografia é irrepreensível, com momentos brilhantes como o plano inicial da protagonista no bar, já mulher feita e insinuante. Os actores são todos amadores e locais, o que favorece uma ambição realista e documental na reprodução do Brasil mais pobre, algo já evidente na curta anterior, Command Action (2015). Tal como esse filme, A Moça que Dançou com o Diabo possui um excelente poder de síntese cinematográfica e revela-se uma obra autoral e madura onde o único aspecto menos inspirado será o seu final, pouco surpreendente apesar de abrupto.

Texto editado por Jorge Mourinha