Até ao fim de Elle nunca sabemos quem ela é

Fala-se de Michelle e de Isabelle - personagem e actriz confundem-se -, fala-se de um festival feito de mulheres. Como decidirá o júri este domingo? Premiará as interpretações de Isabelle Huppert e Sônia Braga e dará a Palma de Ouro a outro que não Elle ou Aquarius? Não é fácil.

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Duas personagens de mulheres atravessaram Cannes como se tivessem como banda sonora da sua imparável caminhada explicação alguma a não ser o desejo – uma delas até dança ao som de Lust for life, de Iggy Pop/David Bowie. Uma delas é Sônia Braga, no Aquarius de Kleber Mendonça Filho. A outra é Isabelle Huppert no Elle de Paul Verhoeven.

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Duas personagens de mulheres atravessaram Cannes como se tivessem como banda sonora da sua imparável caminhada explicação alguma a não ser o desejo – uma delas até dança ao som de Lust for life, de Iggy Pop/David Bowie. Uma delas é Sônia Braga, no Aquarius de Kleber Mendonça Filho. A outra é Isabelle Huppert no Elle de Paul Verhoeven.

Os filmes têm ambos por trás a dedicação de um mesmo produtor, Saïd Ben Saïd, e ficam como os dois melhores do concurso (que o júri no domingo se desembarace como deve ser do dilema), mas o fulminante é a estranhíssima e luminosa possibilidade de pertença ao mesmo clube. O de duas actrizes de tradições tão opostas - o fluxo sensual da brasileira, a meticulosidade cerebral da francesa -, mas que são património de que os filmes se servem e também de que os filmes são feitos. É a possibilidade de diálogo entre um que é diurno e sinistro (o brasileiro) e o outro que é obscuro e espirituoso (o filme do holandês que já foi americano e que agora também é um pouco francês). De tal forma que, agora, quando tudo está a acabar em Cannes, Aquarius e Elle parecem seguir livremente um corpo. Ambas, Sônia e Isabelle, poderiam dizer que "a vergonha não é um sentimento suficientemente forte para nos impedir de fazer o que quer que seja", que é o que, na verdade, diz a personagem de Isabelle que é também aquela que dança Lust for life. Em Elle, porque hoje é dia de Elle, a primeira vez que o realizador Paul Verhoeven está em competição em Cannes.

Embora já tenha aberto a edição de 1992 (Instinto Fatal) nos seus tempos de Hollywood, chega nesta edição ao festival como se fosse um pouco francês, embevecido com os franceses que lhe permitiram a experiência que resultou neste seu segundo filme europeu, depois de Black Book, em 2006, que marcou o regresso de Hollywood. Sejamos directos e estritamente informativos, está tudo embevecido aqui: ele com os actores, os actores com ele - cheios de episódios, na memória, de inteligência e humildade na rodagem que, pelos vistos, terá sido um milagre -, e embevecidos estão os que viram o filme. Verhoeven está em estado de graça na Croisette, ponto final. Portanto, está em estado de graça no cinema.

Confirmou-se neste microcosmos a entronização do seu estatuto, que já vinha sendo anunciado (a homenagem que lhe fez o IndieLisboa há meses foi justamente um dos sinais). E em estado de graça está também Isabelle Huppert, que ao falar do que fez no filme, e de como o faz no filme, revela o essencial do que é Elle – uma das coisas que Verhoeven faz, ele que vem transformando pedaços de corpos híbridos em filmes e estes na sua obra, é “isabellehuppertar” Elle. É por isso que quem veja o trailer, quem veja as fotos, pode “cheirar” qualquer coisa do Haneke de A Pianista, como um déjà vu, e isso pode ser um risco que Elle corre, embora não haja nada aqui de experiência clínica. Isabelle, então, disse mais ou menos isto: que Verhoeven não lhe deu grandes explicações sobre a sua personagem, que Verhoeven, o máximo que faz, é “levantar hipóteses”, e que talvez seja esse o “segredo” (o segredo Huppert?), seguir em frente, continuar, reagir aos acontecimentos, utilizar a sua sagacidade. Como se se colocasse, ela, Isabelle Huppert, ao lado de Michelle, a sua personagem, ao lado do obscuro desejo dela, e caminhassem as duas juntas, lado a lado, que é o máximo que pode fazer (que é o máximo que o espectador pode fazer, não há hipótese de empatia), em vez de acreditar que é possível estar dentro dela e explicá-la.

Michelle lidera uma empresa de jogos de vídeo. Um dia é violada por um homem mascarado, mas vê-lhe o pénis, não circuncidado. Michelle arma-se com machados para se defender, mas recusa apresentar queixa à polícia. Só depois se percebe porquê - há um passado monstruoso na sua vida, em que a polícia entrou pela sua intimidade adentro, quando o pai, era ela adolescente, se revelou um serial killer, e Michelle não quer cruzar-se de novo com ela no espaço público. Continua em frente, com os amantes, mesmo que sejam maridos de amigas, ou, fazendo a sua própria investigação privada, pura e simplesmente obrigando homens a baixar as calças para encontrar a prova do delito num pénis - não há nada que seja suficiente na vergonha para cortar nas pulsões e obrigar à reconfiguração da sua (a)moralidade.

Até que um dia Michelle encontra, no affair com o vizinho, o violador. O que se segue é uma história de amor doentia, daquelas em que no final da violência se exclama, em voz ardente, que foi necessário tudo isso, todo esse caminho, para chegar ali? Mais não se pode dizer sobre o que acontece. Não por causa dessa coisa que se chama spoiler, mas porque na verdade continuamos sem saber quem é Michelle, o que é que a leva a fazer e o que é que ela faz. Recordamos as palavras de Paul Verhoeven, na entrevista que deu ao PUBLICO em Abril, quando, a propósito de uma possível genealogia entre as personagens dos seus filmes, que suspendem qualquer valor ou moral (que assim se suspendem…) em favor de uma acção, de um desejo, respondia: “A questão é que a personagem de Huppert não é revelada. Vemos o que ela faz, espantamo-nos com isso, mas não podemos dizer isto ou aquilo. Foi isso que me seduziu, aceitarmos o que ela faz sem sermos capazes de saber porque é que o faz.”

É esse o toque de Elle, a forma como, a partir de um livro de Philippe Dijan, a mise- en scène de Verhoeven – a palavra é importante aqui, porque este é um filme “francês” do holandês, tal como The Black Book era um filme holandês híbrido por causa da experiência em Hollywood – se constrói toda sobre, e com, essa impossibilidade de revelação. Tirando disso a sua energia e movimento, aquilo que o leva a continuar. Neste processo, talvez, de se “afrancesar”, que é uma reviravolta que vai mostrar um Verhoeven irreconhecível (e no entanto está lá tudo: o destemido, o sentido de humor…), decanta o seu universo, linhagem e personagens, como quem se separa de impurezas sólidas, reenviando para o grafismo trash e nasty dos jogos de vídeo que a espaços surgem (o inconsciente do filme?) aquilo que, em tempos de Robocop, Starship Troopers, de Showgirls, era imperioso para os seus sentidos e êxtase, dele e nosso: a explicitação.

Como pode o júri resolver?

O que fazer com Aquarius e com Elle, como escolher? Como é que um prémio às actrizes pode “resolver” o posicionamento dos filmes no palmarés – anunciado domingo por um júri presidido por George Miller –, dessa forma resolvendo dilemas e escolhas e “despachando” uma Palma de Ouro para outro lado? Toni Erdmann, de Maren Ade, era até hoje o filme mais votado pelas várias listas de críticos que se reúnem em diferentes publicações. Eis um filme com uma mulher de desejo preso, mal na sua pele – a interpretação de Sandra Hüller também deve contar para o jogo dos prémios, e se calhar temos de começar a concluir que tudo se vai decidir a partir delas.

Dito isto, chegaram também ao coração de uma maioria de jornalistas e críticos, pela forma como se expressaram, Paterson, de Jim Jarmusch, Ma Loute, de Bruno Dumont, I, Daniel Blake, de Ken Loach, e Sieranevada, do romeno Cristi Puiu. E o que poderá Le Client, de Asghar Farhadi, dois anos depois de O Passado, que deu o prémio de interpretação em Cannes a Bérénice Bejo, e depois do Óscar de Melhor Filme Estrangeiro a Uma Separação (ainda o seu melhor filme) em 2012? A questão com o filme do iraniano é semelhante à que pode levantar, por exemplo, o filme do romeno: a sensação de que já estiveram aqui, que não se moveram um milímetro e que o que fizeram foi explicitar sinais que podem tornar os filmes viagem de reconhecimento.

É de novo a classe média iraniana, de novo a implosão de uma família a partir de um incidente que vai afectar um casal (um encenador e uma actriz) que muda de apartamento, a erupção de um rosto mais sombrio e intolerante sob a máscara da cultura e da tolerância. Plano mais bonito do filme: uma porta aberta pela qual vai entrar uma personagem decisiva para o que vai acontecer no filme e ao casal, mas o realizador corta antes de a figura aparecer, ficamos com a porta aberta na retina, a possibilidade de invasão, coisa não nomeada, mas irreversível… Mas o filme, porque está sempre a ir e vir da ficção para a peça que o casal encena (A Morte de um Caixeiro Viajante, de Arthur Miller), a carregar-se de significação, raramente é assim.