O outsider Mendoza está inteiro, os habituais Dardenne colam os cacos

Já consagrado em Cannes, Brillante Mendoza continua a ter perfil de outsider: é bom reencontrá-lo em Ma’Rosa. Já os Dardenne, duas vezes premiados com a Palma de Ouro, chegam sempre a Cannes como se isto lhes pertencesse – mas a desagregação do seu cinema já é uma realidade

Fotogaleria

Brillante Mendoza tem andado longe daquele ano, 2009, em que, no espaço de quatro meses, passou de besta a bestial – Kinatay, prémio de melhor realizador em Cannes (onde espectadores irados iam abandonando a sessão), e Lola, que a seguir apresentou ao concurso de Veneza, dando-se a descobrir como cineasta de sentimentos.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Brillante Mendoza tem andado longe daquele ano, 2009, em que, no espaço de quatro meses, passou de besta a bestial – Kinatay, prémio de melhor realizador em Cannes (onde espectadores irados iam abandonando a sessão), e Lola, que a seguir apresentou ao concurso de Veneza, dando-se a descobrir como cineasta de sentimentos.

Houve um falhado projecto com Isabelle Huppert (Cativos, em 2012, no mesmo ano deThy Womb), e parecia que no momento da sua consagração internacional o filipino começava a negar, inesperada e involuntariamente, tudo o que se andava a dizer sobre as manobras de expansão do seu cinema, que começara perto do "exploitation”, da novela e do porno.

Taklub, em Cannes 2015, mesmo tendo sido feito com apoio governamental no âmbito do programa de protecção contra os desastres naturais – em causa estava o ciclone tropical Yolanda que em 2014 fez mais de seis mil vítimas das Filipinas –, voltava a mostrar que um filme, para Mendoza, só pode ser mesmo uma forma de fazer parte de uma catastrófica ligação com os lugares e as pessoas, qualquer coisa de intransponível como as leis da natureza. Ma’Rosa, o regresso à competição de Cannes, é outra vez muito claustrofóbico, muito determinado e o seu filme mais convincente dos últimos anos.

Não há novidades de maior, pelo contrário: Mendoza coloca-se de novo a trilhar as ruas de um bairro da lata de Manila, super povoadas, encharcadas em água e lama, sabendo que elas não chegarão a lado nenhum – talvez cheguem com o cinema, quando as personagens se transcendem naqueles finais de falsa e amarga resolução em que Mendoza, quando está em momento apurado, suspende os filmes. É o caso de Ma’Rosa, já uma das heroínas de pleno direito do cinema do realizador, uma pequena comerciante de um bairro pobre, quatro filhas, e com negócio de drogas undercover para manter a economia doméstica a flutuar ao nível da sobrevivência. Quando ela e o marido são apanhados pela polícia, que joga com o casal o jogo da corrupção, cabe aos filhos intervir – conseguir o dinheiro que a polícia pede - para desenrascar os pais. Neste império determinista da precaridade, a câmara de Mendoza não faz um único plano a mais, um daqueles que sublinhe, por exemplo, aproveitando-se da miséria com redundância, ou que prometa epifanias. A montagem é cortante, cruel, é essa a única forma de estar com as personagens. Há um momento transbordante, quando Ma’Rosa tem tempo para parar a pensar no que lhe aconteceu, mas... fim. Tudo no sítio (de Mendoza) neste cinema.

Apesar de ter sido consagrado em Cannes, o filipino continua a ter um perfil de outsider, como se em cada presença em Cannes tivesse que vencer a suspeita de que não a merecia. O caso dos irmãos Dardenne é diferente: com as Palmas de Ouro a Rosetta (1999) e  A Criança (2005) passaram a pertencer ao restrito clube dos oito cineastas que já venceram por duas vezes a Palma de Ouro (para além deles, Alf Sjöberg, Francis Ford Coppola, Shohei Imamura, Emir Kusturica, Bille August e Michael Haneke), e a cada novo filme há um lugar para eles guardado na competição como se fosse inquestionável. O problema com o cinema dos Dardenne, depois da segunda Palma de Ouro, em 2005, é que se tem visto em dificuldades para continuar a mostrar a resistência do modelo, que em tempos pareceu coriáceo.

Já tentaram tudo, já trabalharam com estrelas, depois de se terem ocupado da revelação de corpos e rostos “virgens”, e começam a aproximar-se de uma forma encapotada de cinema de género, como se quisessem ainda tentar dar unidade ao que parece ter sido quebrado ou estilhaçado: Dois Dias, Uma Noite (2014) parecia um action movie com caução proletária; o novo, La Fille Inconue, é um thriller de investigação encapotado. Tem no centro uma das personagens mais desinteressantes (e desinteressadas) do cinema dos Dardenne, uma médica (supostamente) obcecada em descobrir a identidade de uma rapariga que lhe bateu à porta no consultório, ela não se ocupou dela e mais tarde o seu cadáver foi encontrado. Como Adèle Haenel, a intérprete dessa personagem, é, não opaca mas de uma densidade tão fina que chega a ser invisível mesmo (é ela a verdadeira “desconhecida”?), não suscita qualquer interesse no espectador, que terá tendência a virar-se então para o thriller, mas o que encontra aí são os “fios” à mostra de um argumento – e onde aparece, em pequenas participações, gente que o cinema dos Dardenne revelou no passado, como Jérémie Renier ou Olivier Gourmet em pequenas participações, e de novo a sensação de que os Dardenne filmam já os cacos do seu cinema, tentando só adiar um colapso.