De Keersmaeker e Kaori Ito querem dançar onde as palavras não chegam

Na sexta edição do GUIdance.

Fotogaleria

O que de mais relevante retemos de Golden Hours (As you like it) (2015), peça a encerrar com um nome de peso a 6ª edição do GUIdance, é o extremo de radicalidade a que Anne Teresa de Keersmaeker continua a levar a sua pesquisa em torno do metabolismo comum entre som e movimento. A coreógrafa belga não desiste de ser uma criadora inquieta.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

O que de mais relevante retemos de Golden Hours (As you like it) (2015), peça a encerrar com um nome de peso a 6ª edição do GUIdance, é o extremo de radicalidade a que Anne Teresa de Keersmaeker continua a levar a sua pesquisa em torno do metabolismo comum entre som e movimento. A coreógrafa belga não desiste de ser uma criadora inquieta.

É notável como os seus onze bailarinos dançam, com os seus neutros fatos de treino e ténis num palco completamente vazio, num silêncio apenas aparente. Na verdade – perceberemos – o seu movimento é gerado por sonoridades que são (sobretudo) mentais: a cadência dos ritmos e sentidos de textos que o público pode ler, projectadas sobre o fundo do palco.

São fragmentos de As you like it (Como queiram, a comédia romântica pastoral de Shakespeare, uma ode à natureza, repleta de jogos de engano amorosos e trocas de género) aos quais Keersmaeker tentou uma (difícil) articulação a Golden Hours, tema de Antother Green World, o álbum de  Brian Eno de 1975. 

Se a coreógrafa aqui procurou incluir questões que têm ocupado o seu universo criativo (a percepção do tempo, género e identidade, preocupações ambientais) esse foco é desvanecido a favor de um desígnio sobretudo conceptual. E este, por sua vez, pareceu hesitar entre uma pura abstracção formal e uma reinterpretação sensorial da narrativa shakespeariana e da canção de Eno, cuja presença dramatúrgica tende, aliás, a soçobrar.

O texto escrito torna-se, na verdade, a “partitura musical silenciosa” para o qual movimento se desenvolve; e os bailarinos incorporaram-no tão bem que os vemos murmurar as palavras enquanto as dançam. Pouco a pouco, somos enleados nesta espécie de mantra poético (de duas horas de duração). Mas, entendida a intenção, instala-se alguma conflitualidade: a ideia de a linguagem não precisar de ser literalmente descodificada para ser entendida é, de certo modo contradita pelo confronto com a transcrição (quase) literal dos 5 Actos do argumento shakespeariano. Golden Hours resulta numa interessantíssima proposta que, infelizmente, parece em parte ter perdido a direcção.

No serão anterior, a coreógrafa-intérprete Kaori Ito (Tóquio, 1979), trouxe-nos um emotivo dueto intimista, que contou com a participação do seu próprio pai, o escultor Hiroshi Ito. Em Je danse parce que me méfie des mots, a anatomia da relação entre pai e filha, foi, ainda, pretexto para uma deambulação autobiográfica: os paradoxos experimentados ao revisitar as próprias origens, humanas e culturais, após dez anos passados na Europa e EUA.

Tal como Keersmaeker, Kaori Ito partiu das palavras: uma lista de perguntas que dirigiu ao pai, endereçou a si mesma, e outras indagações sobre a vida. Um extenso catálogo de interrogações, proferido em off, repetido ao vivo, e projectado ao fundo do palco ao longo da peça.

Na performance Kaori Ito  (re)constrói  a sua própria história, os processos de separação-individuação, enquanto pessoa e artista. Mas, ao invés do pretendido, esta dança que nos queria falar dos lugares onde a palavra não chega, acaba refém do verbo; pouco acrescenta (excepção para os jogos de presença/ausência dos corpos, enquanto o eco das palavras paira sobre a cena) ao universo por ele criado. Se o potencial da intérprete é evidente, requereria uma direcção externa, também no que à dramaturgia (de uma previsibilidade a raiar o ingénuo) diz respeito. Je danse…não deixa, contudo, de ser um curioso ensaio auto-etnográfico, a deixar visível o quanto os debates identitários do nosso tempo se inscrevem no corpo, e no modo como este se relaciona com a dança.