Os filmes “sobre” e os filmes “com”

Uns abrem-se à dúvida. Outros encantam-se com a suas certezas - um percurso pela competição nacional

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Não são filmes “sobre”, são filmes “com”: Rio Corgo, de Maya Kosa e Sérgio da Costa, que organiza rituais para fazer corpo com a malaise de uma personagem vagabunda (palhaço, mágico, jardineiro, barbeiro, todos os ofícios...) de uma aldeia do Douro; Talvez Deserto, Talvez Universo, de Miguel Seabra Lopes e Karen Akerman, que respira o tempo de uma Unidade de Internamento de Psiquiatria Forense do Hospital Júlio de Matos; Portugal- Um dia de Cada Vez, de João Canijo e Anabela Moreira, que viaja até ao Norte para se imiscuir na intimidade das aldeias e das casas.

São filmes “com”, não no sentido de serem exemplares de um triunfante idealismo - como se estivessem em pé de igualdade os que filmam e os que foram filmados –, mas numa acepção contrária a qualquer certeza, porque a lidar com a dúvida: sendo o resultado de uma empatia gerada, coisa que nunca pode ser programada, aliás, fazem-se com uma realidade e não sobre uma realidade, têm de navegar para chegarem a um destino que não sabem qual é.

“Talvez”, palavra do título do filme de Miguel Seabra Lopes e Karen Akerman, define-os. Há ganhos nisso: são os filmes de fôlego mais livre da competição nacional. O que faz de Rio Corgo o mais impressionante é o facto de nesse processo Maya e Sérgio deslizarem para um lugar indefinível, como quem aceitou atravessar uma fronteira sem saber o que era o lado de lá. É muito bonito o seu lado destemido e, simultaneamente, o espanto perante a sua própria transfiguração – como quando não sabemos o que nos está a acontecer mas nos entregamos à viagem (se isto soar a uma paramentação antes da morte, confere, o filme vai até lá com a personagem).

Perante estes três, os outros títulos, Acorda, Leviatã, de Carlos Conceição, Où est la Jungle, de Iván Castiñeiras Gallego, Raimundo, de Paulo Abreu, Setil, de Tiago Siopa e Vila do Conde Espraiada, de Miguel Clara Vasconcelos, fazem figura de miniaturas. Nada a ver com as diferenças de duração nem com a subalternização de umas, as curtas, face às outras, as longas – esta edição aboliu a separação, embora se deva testar se na prática esta diversidade é mesmo libertadora ou se cria outras prisões. Tem sobretudo a ver com o facto de esses filmes se fecharem: parecendo inventar as regras, estão a obedecer já a “géneros”. É claro que um mundo abissal separa a anedota caricatural que é Raimundo, dos territórios da biografia de Vila do Conde Espraiada e dos comboios e das sombras de Setil.  Mas mesmo nestes dois o ensimesmamento domina – são filmes “sobre” si próprios. Sendo afectuosa a forma como Miguel Clara Vasconcelos investe num território de biografia, recriando-o e recriando-a, ou como Tiago Siopa escuta as histórias que reverberam nos espaços desabitados de um antigo bairro de trabalhadores ferroviários, um parece encantado, de forma fetichista, com o seu romantismo, o outro vai desaparecendo num no man’s land impressionista e sensorial, transformando-se em eco (inclusive de outras coisas que já ouvimos, como Ruínas, de Manuel Mozos).