Ruy Belo: uma poesia que aprendeu a ver com o cinema

No dia em que o cinema Medeia Monumental acolhe em Lisboa uma sessão dedicada à relação da poesia de Ruy Belo com a sétima arte, que encerrará com a exibição de Esplendor na Relva, o PÚBLICO revela o manuscrito original do célebre soneto que o filme de Elia Kazan inspirou ao autor de Homem de Palavra(s).

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Este e outros poemas do autor nos quais comparecem expressamente filmes e actores, como No way out, Humphrey Bogart, Vício de matar ou Na morte de Marilyn, irão ser ditos hoje à noite pelo actor Pedro Lamares, no Medeia Monumental, em Lisboa, a abrir uma sessão dedicada à funda e persistente relação que a poesia de Ruy Belo estabeleceu com o cinema. A noite fechará com a exibição de Esplendor na Relva, mas antes ainda será possível ouvir o ensaísta António M. Feijó falar d’A Deanie Loomis de Ruy Belo, e assistir a um breve filme que o linguista e filólogo Luís Filipe Lindley Cintra rodou do casamento do poeta com Teresa Belo, celebrado em Vila do Conde, donde esta é natural, em 1966.

Ruy Belo evoca este momento no poema Portugal sacro-profano - Vila do Conde, que também se irá ouvir no Monumental, mas na voz do actor e encenador Luís Miguel Cintra, filho do cineasta de ocasião, que também assistiu à boda quando tinha 17 anos. O seu pai, de resto, não foi apenas o realizador de serviço, tendo assumido também funções de produção.

Desde logo, conta Luís Miguel Cintra, foi preciso desencantar o noivo, que não aparecia. “Faltou à hora do casamento e alguém disse que se calhar se tinha distraído e ainda estava na pensão. O meu pai foi procurá-lo e lá estava ele: era fim de tarde e distraiu-se a ver o pôr-do-sol”.

Mas “o mais engraçado”, acrescenta o actor, é que “eram tão ingénuos, tão puros, que não tinham combinado onde iam passar a lua-de-mel, não sabiam o que iam fazer a seguir, e foi o meu pai que os meteu no carro, depois do copo de água, à procura de um sítio simpático onde os pudesse deixar”.

Teresa Belo precisa que o local escolhido acabou por ser Espinho. E se ignora em que momento Ruy Belo escreveu o poema de Vila do Conde, esse “lugar onde o coração se esconde/ e a mulher eterna tem a luz na fronte”, sabe, em contrapartida, que Literatura explicativa, o poema inicial de Homem de Palavra(s), “foi escrito em Espinho, nessa lua-de-mel improvisada”. E tendo em conta os caeirianos versos que o abrem, tudo indica que o poeta continuava fascinado com os pores-do-sol que já o distraíam em Vila do Conde: “O pôr-do-sol em espinho não é o pôr-do-sol/ nem mesmo o pôr-do-sol é bem o pôr-do-sol (…)”.

Ruy Belo não costumava datar os manuscritos, de modo que Teresa Belo também não sabe quando este escreveu a primeira versão de Esplendor na Relva, mas o mais provável é que tenha sido logo após ter visto a obra de Kazan, que se estreou em Portugal em 1962. “Começámos a namorar em 1961, e deve ter sido mais ou menos por essa altura que fomos ver o filme ao antigo cinema Eden”, conta.

E não a surpreende que Ruy Belo tenho esperado até ao final da década para dar a conhecer este soneto em Homem de Palavra(s), publicado em 1969 na icónica colecção dos Cadernos de Poesia da D. Quixote. “Ele escrevia livros muito organizados, e portanto ficavam bastantes poemas de fora à espera de um livro onde coubessem.”

As duas versões, manuscrita e dactiloscrita, que encontrou nos seus papéis e que nos autorizou a reproduzir mostram como o poema evoluiu até Ruy Belo se dar por satisfeito. Sendo que aquele que foi porventura o mais virtuoso fabbro da poesia portuguesa da segunda metade do século XX tendia a só se satisfazer com a exactidão.

É talvez por isso que, sendo emocionante ver agora na elegante caligrafia do poeta um soneto que os leitores de Ruy Belo tantas vezes leram em letra de forma, não deixa também de causar uma certa estranheza constatar que este Esplendor na relva possa ter tido versões anteriores, que não tenha nascido logo inteiro e perfeito, como sempre o conhecemos. Mas o que nos deveria espantar é justamente o contrário: que só alguns detalhes, ainda que bastante decisivos, distanciem esta primeira tentativa, escrita ao correr da caneta, do que veio a ser o resultado final.

Ruy Belo escreveu o poema depois de ver o filme de Kazan, que por sua vez se inspirou numa conhecida ode de William Wordsworth, fundador do Romantismo inglês e um poeta central na genealogia literária do poeta português, o que complica a aparente linearidade poema-filme-poema. Não por acaso, Esplendor na relva é um dos poemas de Ruy Belo que mais tinta tem feito correr, a começar pela do próprio autor, que em 1978, no prefácio à segunda edição de Homem de Palavra(s), o integra nos “poemas onde o cinema [o] ensinou a ver”.

Também o poeta e ensaísta Joaquim Manuel Magalhães, autor de alguns dos mais importantes e pioneiros textos críticos sobre Ruy Belo, e organizador da primeira compilação da sua obra poética, alude a este poema, vendo nele um exemplo da lição wordsworthiana: a da “poesia como memória, como transbordar de sentimentos após ter passado a emoção de os ter vivido”. Uma perspectiva que Pedro Serra, num ensaio mais recente, tenta pelo menos matizar, servindo-se deste mesmo poema para tentar demonstrar as dimensões pós-românticas da poesia de Ruy Belo.

Para lá de hesitações menos significativas - e descontando as maiúsculas nos nomes próprios, que o poeta viria a abolir em toda a sua poesia, para que "palavra alguma levante a cabeça no meio da frase" -, a versão manuscrita apresenta dois versos diferentes (e consideravelmente menos interessantes): onde hoje estão os já citados “e a sua evolução segue uma linha/ que à imaginação pura resiste”, o poeta começara por escrever: “e tem comportamento de rainha/ só possível a quem no ser persiste”. Versos que transitam ainda para o dactiloscrito, onde são depois riscados e corrigidos à mão para a sua versão definitiva.

E estes dois versos posteriores serão justamente aqueles em que irá centrar-se João Bénard da Costa, num texto que, sendo uma apreciação do filme de Kazan, é também do que de mais belo se escreveu sobre o poema que este inspirou. O histórico director da Cinemateca pergunta: “Resiste à ‘imaginação pura’ (…) ou resiste, ‘pura’, à imaginação? (…) Ou seja, o adjectivo ‘pura’ refere-se à imaginação ou a Deanie Loomis? Ou – pode ser também – à ‘linha que resiste’? Nestas três perguntas está o cerne de Deanie Loomis, de Natalie Wood e de Splendor in the Grass. São mulheres e filme da nossa imaginação? Ou são mulheres e filme que resistem à nossa imaginação? Ou são mulheres e filme que resistem a uma linha evolutiva que só na nossa imaginação existe?”.

Admite não ter respostas e suspeita de que o poeta também as não teria. O que sabe é que concorda com o que o próprio Ruy Belo escreveu, e que explica bem a importância do cinema na sua obra: “Ninguém, no futuro, nos perdoará não termos sabido ver, esse verbo que tão importante era já para os gregos”.
 

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Este e outros poemas do autor nos quais comparecem expressamente filmes e actores, como No way out, Humphrey Bogart, Vício de matar ou Na morte de Marilyn, irão ser ditos hoje à noite pelo actor Pedro Lamares, no Medeia Monumental, em Lisboa, a abrir uma sessão dedicada à funda e persistente relação que a poesia de Ruy Belo estabeleceu com o cinema. A noite fechará com a exibição de Esplendor na Relva, mas antes ainda será possível ouvir o ensaísta António M. Feijó falar d’A Deanie Loomis de Ruy Belo, e assistir a um breve filme que o linguista e filólogo Luís Filipe Lindley Cintra rodou do casamento do poeta com Teresa Belo, celebrado em Vila do Conde, donde esta é natural, em 1966.

Ruy Belo evoca este momento no poema Portugal sacro-profano - Vila do Conde, que também se irá ouvir no Monumental, mas na voz do actor e encenador Luís Miguel Cintra, filho do cineasta de ocasião, que também assistiu à boda quando tinha 17 anos. O seu pai, de resto, não foi apenas o realizador de serviço, tendo assumido também funções de produção.

Desde logo, conta Luís Miguel Cintra, foi preciso desencantar o noivo, que não aparecia. “Faltou à hora do casamento e alguém disse que se calhar se tinha distraído e ainda estava na pensão. O meu pai foi procurá-lo e lá estava ele: era fim de tarde e distraiu-se a ver o pôr-do-sol”.

Mas “o mais engraçado”, acrescenta o actor, é que “eram tão ingénuos, tão puros, que não tinham combinado onde iam passar a lua-de-mel, não sabiam o que iam fazer a seguir, e foi o meu pai que os meteu no carro, depois do copo de água, à procura de um sítio simpático onde os pudesse deixar”.

Teresa Belo precisa que o local escolhido acabou por ser Espinho. E se ignora em que momento Ruy Belo escreveu o poema de Vila do Conde, esse “lugar onde o coração se esconde/ e a mulher eterna tem a luz na fronte”, sabe, em contrapartida, que Literatura explicativa, o poema inicial de Homem de Palavra(s), “foi escrito em Espinho, nessa lua-de-mel improvisada”. E tendo em conta os caeirianos versos que o abrem, tudo indica que o poeta continuava fascinado com os pores-do-sol que já o distraíam em Vila do Conde: “O pôr-do-sol em espinho não é o pôr-do-sol/ nem mesmo o pôr-do-sol é bem o pôr-do-sol (…)”.

Ruy Belo não costumava datar os manuscritos, de modo que Teresa Belo também não sabe quando este escreveu a primeira versão de Esplendor na Relva, mas o mais provável é que tenha sido logo após ter visto a obra de Kazan, que se estreou em Portugal em 1962. “Começámos a namorar em 1961, e deve ter sido mais ou menos por essa altura que fomos ver o filme ao antigo cinema Eden”, conta.

E não a surpreende que Ruy Belo tenho esperado até ao final da década para dar a conhecer este soneto em Homem de Palavra(s), publicado em 1969 na icónica colecção dos Cadernos de Poesia da D. Quixote. “Ele escrevia livros muito organizados, e portanto ficavam bastantes poemas de fora à espera de um livro onde coubessem.”

As duas versões, manuscrita e dactiloscrita, que encontrou nos seus papéis e que nos autorizou a reproduzir mostram como o poema evoluiu até Ruy Belo se dar por satisfeito. Sendo que aquele que foi porventura o mais virtuoso fabbro da poesia portuguesa da segunda metade do século XX tendia a só se satisfazer com a exactidão.

É talvez por isso que, sendo emocionante ver agora na elegante caligrafia do poeta um soneto que os leitores de Ruy Belo tantas vezes leram em letra de forma, não deixa também de causar uma certa estranheza constatar que este Esplendor na relva possa ter tido versões anteriores, que não tenha nascido logo inteiro e perfeito, como sempre o conhecemos. Mas o que nos deveria espantar é justamente o contrário: que só alguns detalhes, ainda que bastante decisivos, distanciem esta primeira tentativa, escrita ao correr da caneta, do que veio a ser o resultado final.

Ruy Belo escreveu o poema depois de ver o filme de Kazan, que por sua vez se inspirou numa conhecida ode de William Wordsworth, fundador do Romantismo inglês e um poeta central na genealogia literária do poeta português, o que complica a aparente linearidade poema-filme-poema. Não por acaso, Esplendor na relva é um dos poemas de Ruy Belo que mais tinta tem feito correr, a começar pela do próprio autor, que em 1978, no prefácio à segunda edição de Homem de Palavra(s), o integra nos “poemas onde o cinema [o] ensinou a ver”.

Também o poeta e ensaísta Joaquim Manuel Magalhães, autor de alguns dos mais importantes e pioneiros textos críticos sobre Ruy Belo, e organizador da primeira compilação da sua obra poética, alude a este poema, vendo nele um exemplo da lição wordsworthiana: a da “poesia como memória, como transbordar de sentimentos após ter passado a emoção de os ter vivido”. Uma perspectiva que Pedro Serra, num ensaio mais recente, tenta pelo menos matizar, servindo-se deste mesmo poema para tentar demonstrar as dimensões pós-românticas da poesia de Ruy Belo.

Para lá de hesitações menos significativas - e descontando as maiúsculas nos nomes próprios, que o poeta viria a abolir em toda a sua poesia, para que "palavra alguma levante a cabeça no meio da frase" -, a versão manuscrita apresenta dois versos diferentes (e consideravelmente menos interessantes): onde hoje estão os já citados “e a sua evolução segue uma linha/ que à imaginação pura resiste”, o poeta começara por escrever: “e tem comportamento de rainha/ só possível a quem no ser persiste”. Versos que transitam ainda para o dactiloscrito, onde são depois riscados e corrigidos à mão para a sua versão definitiva.

E estes dois versos posteriores serão justamente aqueles em que irá centrar-se João Bénard da Costa, num texto que, sendo uma apreciação do filme de Kazan, é também do que de mais belo se escreveu sobre o poema que este inspirou. O histórico director da Cinemateca pergunta: “Resiste à ‘imaginação pura’ (…) ou resiste, ‘pura’, à imaginação? (…) Ou seja, o adjectivo ‘pura’ refere-se à imaginação ou a Deanie Loomis? Ou – pode ser também – à ‘linha que resiste’? Nestas três perguntas está o cerne de Deanie Loomis, de Natalie Wood e de Splendor in the Grass. São mulheres e filme da nossa imaginação? Ou são mulheres e filme que resistem à nossa imaginação? Ou são mulheres e filme que resistem a uma linha evolutiva que só na nossa imaginação existe?”.

Admite não ter respostas e suspeita de que o poeta também as não teria. O que sabe é que concorda com o que o próprio Ruy Belo escreveu, e que explica bem a importância do cinema na sua obra: “Ninguém, no futuro, nos perdoará não termos sabido ver, esse verbo que tão importante era já para os gregos”.