Oliver Sacks, autor de Despertares, adormeceu para sempre

Em Fevereiro, o célebre neurologista e escritor britânico anunciara nos media que estava a morrer. Eis um apanhado póstumo da vida multifacetada do médico que pôs a pessoa no centro da narrativa médica e explicou ao mundo as doenças mais paradoxais do cérebro humano.

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Oliver Sacks tinha uma popularidade rara para um cientista JAMES LEYNSE/CORBIS

No seu último livro, uma autobiografia intitulada On the Move (“em movimento”, “em mudança”) e publicada há uns meses, Sacks revelava partes pouco conhecidas da sua intensa história pessoal: foi motard e halterofilista, foi viciado em anfetaminas. Era um homossexual, que só agora, em tempos mais tolerantes, o assume publicamente – mas que praticava o celibato há 35 anos.

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No seu último livro, uma autobiografia intitulada On the Move (“em movimento”, “em mudança”) e publicada há uns meses, Sacks revelava partes pouco conhecidas da sua intensa história pessoal: foi motard e halterofilista, foi viciado em anfetaminas. Era um homossexual, que só agora, em tempos mais tolerantes, o assume publicamente – mas que praticava o celibato há 35 anos.

E não há muita margem para dúvidas: viveu cada momento dessa vida em cheio. Basta ler os inúmeros testemunhos e artigos de amigos e admiradores publicados na imprensa internacional nos últimos meses, na sequência da sua “morte anunciada”.

Daí que seja difícil abordar aqui todas as facetas e fases da vida deste médico, apaixonado por química e música, física e neurociências. Mas uma coisa é certa: o que o tornou mundialmente conhecido – e de facto, incontornável para milhões de leitores – foi esse cruzamento único que Sacks inventou entre a neurologia e a arte de contar, motivado pelo seu amor pelos seus doentes.

“Sacks contribuiu para humanizar uma série de estranhas perturbações neurológicas – e, em certa medida, tornou naturais bizarros sintomas tais com os tiques e os tremores dos doentes”, disse ao PÚBLICO por email o conhecido neurocientista português António Damásio. “Fez os leitores perceber que, por detrás da estranheza dessas manifestações, há também uma pessoa que pensa e que sente. Essa foi um feito notável, conseguido por Sacks ao longo de décadas de escrita incessante.”

Sacks escrevia com uma humanidade e uma empatia sem iguais (já para não falar da sua mestria literária e científica) sobre as patologias neurológicas mais bizarras. E tinha sempre coisas profundas e emocionantes a dizer sobre a luta dos doentes com as suas trágicas doenças, descrevendo como ninguém os mistérios do mais misterioso dos órgãos que é o cérebro humano.

A prova disso, a admiração que nutria por ele o poeta anglo-americano (e seu amigo) W.H. Auden (1907–1973). Ou a que tem hoje a escritora britânica Hilary Mantel (autora, entre outros, do aclamado romance Wolf Hall), que declarava, num curto texto em 2013 no jornal The Guardian, que Sacks era o seu herói e que ele tinha “elevado a história clínica ao patamar da literatura”, acrescentando que “[Sacks] nunca faz o leitor sentir-se um voyeur; a sua abordagem é subtil, e o que emerge de todo o seu trabalho é o seu respeito pelos seus sujeitos. Parece amar os seres humanos (…). Não ama a humanidade em abstracto, mas admira e aprende com cada indivíduo, não importa o quão devastado [pela doença]”.

De Londres para Nova Iorque
Nascido em Londres em 1933, numa família de médicos e cientistas, Sacks estudou medicina na Universidade de Oxford e a seguir emigrou para os EUA, onde fez o internato em São Francisco e Los Angeles, lê-se na curta biografia no seu site oficial. E a partir de 1965, passou a residir e a exercer a neurologia em Nova Iorque, dedicando-se a tratar pessoas com doenças neurológicas literalmente fora deste mundo (não é por acaso que intitularia, mais tarde, um dos seus grandes livros de contos clínicos Um Antropólogo em Marte).

Foi em 1973 que publicou Despertares, o seu segundo livro, que mais tarde daria lugar ao filme com o mesmo nome, com Robin Williams no papel de Sacks. Mas a sua “saga” com o grupo de doentes descritos no livro, “congelados no tempo” desde os anos 1920 devido a uma misteriosa epidemia de “encefalite letárgica” e esquecidos num hospício do Bronx, começara pouco depois da sua chegada à Big Apple. Sacks fê-los literalmente acordar, quatro décadas depois, quando teve a ideia de lhes administrar um então novo medicamento contra a doença de Parkinson, a L-Dopa.

Todavia, o que celebrizou Sacks – na medicina e na escrita – foi a sua primeira recolha de “contos clínicos” propriamente ditos, O Homem que Confundiu a Mulher com um Chapéu, publicada em 1985. A história que dá título a esta antologia não podia deixar ninguém indiferente: era a de um homem que sofria de “prosopagnosia” (como aliás o próprio Sacks), uma doença rara que torna a pessoa incapaz de distinguir os rostos humanos entre si apesar de ter uma visão e um processamento pelo cérebro da informação visual totalmente normais. O encenador de teatro britânico Peter Brook criaria nos anos 1990, em Paris, o espectáculo L’Homme qui (O homem que), com base nesses contos de Sacks.

Mas essa era apenas a primeira leva de novelas verídicas que compunham o livro. Histórias fascinantes e ao mesmo tempo angustiantes, uma vez que mostram a fragilidade do mundo perceptual construído pelo nosso cérebro – do nosso único elo com o mundo que nos rodeia. Mais de duas dezenas de capítulos, com títulos como O homem que caiu da cama, O dedo fantasma, A doença de Cupido ou Um cão sob a pele perfaziam uma viagem a um mundo quase extraterrestre, misterioso e desconhecido da maior parte das pessoas: o das doenças neurológicas, do cérebro fragmentado.

Um deles, A mulher desencarnada, particularmente memorável (não há outra forma de o qualificar), relatava o caso de uma jovem mulher que tinha perdido a “propriocepção” (o sentido que permite, mesmo com os olhos fechados, saber qual é posição e a postura do nosso corpo no espaço). Sacks contava como aquela vida humana, de repente interrompida de forma tão trágica como invulgar, fora a seguir reconstituída, reunificada pela própria doente, numa batalha heróica contra o seu mal.

Outros contos ainda revelavam, por exemplo, o mundo de dois gémeos autistas com extraordinárias capacidades matemáticas, ou um caso de “doença dos tiques” (a síndrome de Tourette) que faz as suas vítimas praguejar sem controlo – e uma doença de que na altura ninguém falava.

Ao longo dos anos, Sacks escreveu uma série de artigos para a revista The New York Review of Books (NYRB). Um deles, especialmente comovente, integraria a seguir o seu livro Um Antropólogo em Marte: falava em grande pormenor do caso de um pintor que, na sequência de um acidente de viação, se tornara incapaz de ver cores – e mais: incapaz sequer de imaginar, de saber, o que é a cor. Por causa disso, o pintor passara a viver num mundo de pesadelo onde o Sol parecia um grande disco preto e as pessoas tinham a pele da cor das ratazanas.

Tal é a força da descrição que Sacks faz deste caso único que ficamos com a convicção de que, se a nossa mente se encontrasse numa encruzilhada tão bizarra como essa, quereríamos ser tratados por ele e só por ele. “Todos os médicos aspiram a ser um pouco como Sacks (…) pela sua óbvia humanidade e pela sua escrita sublime, que vai ao âmago do que significa ser humano e frágil”, salientava em finais de Julho, no Guardian, a oncologista Ranjana Srivastava.

Pode-se dizer que Sacks reinventou assim a relação médico-doente. E foi ainda mais longe. Na sequência de um grave acidente que teve durante um passeio solitário, numa região montanhosa da Noruega – em que foi perseguido por um touro que quase lhe arrancou uma perna –, Sacks foi hospitalizado e teve uma recuperação lenta e dolorosa. E no seu livro Perna para que te quero (A Leg to Stand On) relata com profunda perspicácia essa experiência, em que teve a estranha sensação de que a sua perna já não lhe pertencia. De repente, o neurologista passara para o outro lado da barreira, tornando-se ele próprio num caso neurológico a ser “dissecado” pelos seus colegas. 

Uma morte anunciada
A doença mais grave de Oliver Sacks, essa, começou há quase uma década, quando lhe foi diagnosticado um melanoma num olho – um tumor maligno raro. Perdeu o olho devido à cirurgia necessária para retirar o cancro – e durante anos, pensou-se que estava curado, uma vez que, no seu caso, o cancro parecia pouco susceptível de criar metástases noutros órgãos. Mas não foi assim.

Em Fevereiro, num pungente artigo publicado no New York Times (NYT), Sacks revelava que estava a morrer. “Há um mês, sentia-me de boa saúde, de saúde mesmo robusta”, escrevia. (…) Mas a minha sorte acabou: soube há poucas semanas que tenho múltiplas metástases no fígado.”

A seguir, com a sua habitual sensibilidade, acrescentava:  “[Sinto-me] intensamente vivo [e espero que, no tempo que meresta], aprofundar as minhas amizades, dizer adeus às pessoas que amo, escrever mais, viajar se tiver forças para isso, atingir maiores níveis de compreensão e de perspicácia.”

E mais à frente, como que se desculpava: “Ainda me importo profundamente com o Médio Oriente, com o aquecimento global, com as desigualdades crescentes, mas essas coisas já não me dizem respeito; pertencem ao futuro.” Confessava ainda:  “[Não posso] fingir que não tenho medo”, mas acrescentava logo: “O meu sentimento predominante é de gratidão.” E concluía: “Acima de tudo, fui um ser que sente, um animal que pensa, neste maravilhoso planeta, e isso foi só por si um enorme privilégio e uma enorme aventura.”

Desde então, Sacks foi submetido a um tratamento dito de embolização, destinado a limpar o seu fígado das metástases (quase metade daquele órgão fora invadido pelo cancro). Descreveu-o num outro artigo, publicado em Abril desta vez na NYRB – o segundo de uma espécie de “crónica de uma morte anunciada” que tem alimentado nos últimos tempos.

O tratamento, escrevia Sacks, consistira em injectar na artéria hepática uma quantidade de “minúsculas bolinhas, para serem transportadas até às mais pequenas arteríolas, bloqueando-as e cortando o aprovisionamento em sangue e oxigénio necessário às metástases – ou seja, matando-as à fome e asfixiando-as”.

Os dias seguintes da sua vida foram marcados por uma série de efeitos secundários de pesadelo – o que não impediu Sacks de continuar a escrever incansavelmente. Mas “ao décimo dia deu-se uma viragem (…); à tarde, senti-me outra pessoa. Foi uma sensação deliciosa e totalmente inesperada”. Sacks esperava, graças ao tratamento, “sentir-se mesmo bem durante três ou quatro meses”.

Mas a deterioração da sua saúde foi infelizmente mais rápida. Num terceiro artigo em finais de Julho, novamente no NYT anunciava que “essa sensação de bem-estar e de energia começou a declinar de Maio para Junho”. A 14 de Agosto, também no NYT, publicava o seu último artigo.

Apesar de continuar activo (nadava todos os dias), Sacks confessava pela primeira vez, no artigo de finais de Julho, que já não conseguia negar o facto de que estava mesmo doente. E a 7 de Julho, uma TAC revelara que o cancro tinha não só regressado ao fígado, como estava espalhado para outros órgãos. À espera de poder ter “mais alguns meses bons”, Sacks começara um outro tratamento – uma imunoterapia, também ela arriscada.

No mesmo artigo de Julho, o médico e escritor regressava à sua paixão de sempre pela química – e pelos elementos químicos, que desde a sua pequena infância foram, dizia, os seus “companheiros” em situações de perda de entes queridos.

E explicava ainda que tinha uma colecção de minerais, uma tabela periódica muito pessoal, na qual os números dos elementos representavam os anos que passam. “O bismuto é o elemento 83. Acho que não vou chegar ao meu 83º aniversário, mas (…) há qualquer coisa de encorajador em ter o ‘83’ por perto.”

E concluía: “Na outra ponta da minha tabela – a minha tabela periódica – tenho um belíssimo pedaço de berílio trabalhado (o elemento 4) para me lembrar da minha infância e de quanto tempo já passou desde que a minha vida – que em breve irá acabar – começou.”

Notícia actualizada às 15h58 de 30 de Agosto de 2015