Um lugar contra a solidão

O modo como se conta uma história determina a identidade – ou como encontrar a forma na escrita equivale a achar um lugar no mundo. Um livro sobre a arte de imaginar enquanto modo de vencer o efeito do tempo.

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Rebecca Solnit: um ajuste de contas de uma mulher adulta com a sua mãe doente de Alzheimer DR

Natural da Califórnia, onde nasceu em 1961, Rebecca Solnit teve uma infância atribulada. Em muitas das entrevistas que tem dado, conta como o facto de ser mulher no meio onde cresceu era considerado uma condição menor, capaz de justificar comportamentos violentos por parte dos que a rodeavam. A sua história tem essa marca. Activista política contra a administração Bush nas guerras do Iraque e Afeganistão, Solnit tem marcado posição na denúncia dos efeitos das alterações climáticas e em defesa dos direitos das mulheres em textos que valorizam a criatividade e que são fortemente marcados pela arte e pela política. 

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Natural da Califórnia, onde nasceu em 1961, Rebecca Solnit teve uma infância atribulada. Em muitas das entrevistas que tem dado, conta como o facto de ser mulher no meio onde cresceu era considerado uma condição menor, capaz de justificar comportamentos violentos por parte dos que a rodeavam. A sua história tem essa marca. Activista política contra a administração Bush nas guerras do Iraque e Afeganistão, Solnit tem marcado posição na denúncia dos efeitos das alterações climáticas e em defesa dos direitos das mulheres em textos que valorizam a criatividade e que são fortemente marcados pela arte e pela política. 

Em Esta Distante Proximidade encontramos os traços que compõem não apenas a carreira literária de Solnit – de que fazem parte 13 títulos, mas também o que de mais essencial a moldou. Como a relação com a mãe. Doente de Alzheimer, incapaz de tomar conta de si, a mãe vai viver para um lar. Antes de vender a casa, um dos seus filhos colhe todos os damascos da árvore do quintal e entregando-os à irmã mais velha para que ela lhes dê um destino. Esses frutos a passam a ser ao mesmo tempo o enigma e o motor de uma narrativa de construção do eu que se faz com esta a colocar-se tanto no lugar do outro – relações de empatia – como em lugares geográficos que lhe conferem continuidade ou ruptura – geografia tanto espacial como de afectos. Desses pressupostos, a nossa história, escreve Solnit, tem a ver com o modo como é contada. “Tudo está no contar. As histórias são bússolas e arquitectura...” A forma e posição em relação ao Norte moldam uma identidade, confere a nossa posição no mundo. “... as histórias são geografia, e empatia é antes de mais nada um acto de imaginação, uma arte de contar histórias, e ainda um modo de viajar de um lugar para o outro“. 

Quem leu W. G. Sebald, um dos grandes escritores do século XX que associaram memória a lugar, ou a identidade a um atlas, e fizeram disso um encadear de narrativas capazes de criar um jogo de espelhos onde o difícil é não encontrar uma imagem reflexo do eu – qualquer que ele seja –, sabe o que é ficar refém de uma teia que remonta à tradição de encantamento de Penélope ou Xerazade. Contam-se histórias de modo a continuar a viver ou a evitar morrer. Os damascos funcionam para Solnit como a barreira fundamental que o protagonista dos contos de fadas tem de vencer para chegar à amada ou para ver resgatada a sua perda, são o alibi para a transformação ocorrer. O que fazer com os damascos?, questiona-se a narradora num momento da sua vida em que tudo do corria mal e ao mesmo tempo em que começa a dar forma à sua história num livro que é memória, biografia, mas também feitiço pelo que tem de criatividade e sedução, pelo encadear de experiências e do modo como são apresentadas por quem as narra. Somos o modo como nos contamos e é essa a nossa singularidade. 

Nada de novo, podemos dizer. A grande novidade está em saber fazer dessa narrativa comum algo exemplar. Rebecca Solnit faz isso nos textos que compõem Esta Distante Proximidade, onde torna uma experiência pessoal um caso literário e faz do lugar algo determinante nessa construção pessoal e, por consequência, universal. E o lugar pode ser o corpo onde a finitude se manifesta a cada momento, o grande traço da identidade de qualquer ser vivo: é-se vivo enquanto se está vivo e esse enquanto é o grande determinante. 

Com os damascos por resolver, a narradora enfrenta essa sua finitude pouco antes de partir numa viagem transformadora para a Islândia e dessa geografia parte para todas as outras que foram determinantes nessa sua história: Birmânia, India, Bol]ivia, Cuba, Novo México, Califórnia, Sibéria, Alasca, Islândia, lugares unidos pelo fio da sua narrativa, o mesmo que as mulheres teciam e que se tornou metáfora da arte de contar história. O fio através do qual Esta Distante Proximidade ganha forma é uma linha onde se decifram sentidos, que percorre silêncios e falhas, algo que estava nas histórias primordiais e que um escritor actual tem de percorrer para poder criar, para chegar a uma qualquer “coerência lógica”, ou seja, àquilo a que qualquer escritor aspira quando escreve, quando conta uma “Qual é a nossa história?”. 

“Qual é a nossa história?” é a pergunta inicial e aquela que o livro persegue em 13 textos que nos confrontam com o espaço e o tempo, a mortalidade e a vaidade, as histórias fundadoras e uma contemporaneidade em busca de sentido. “Qual é a nossa história?” é desafio, provocação, enigma, exercício arriscado a que Rebecca Solnit se propõe para avançar na escrita de um livro onde através da arte, da viagem e da literatura quer chegar ao essencial, às histórias enquanto grandes motores de transformação pessoais e colectivos, o meio em que chegamos ao nosso lugar no mundo.