No novo Museu Richard Wagner, o anti-semitismo já não está debaixo do tapete

O complexo que reabre este domingo em Bayreuth não omite a proximidade entre as posições de Wagner sobre os judeus alemães e o discurso nazi sobre a raça, nem as comprometedoras ligações da família Wagner a Adolf Hitler – pelo contrário.

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"Temos de olhar para a nossa História, e temos de trabalhar com a nossa História", disse à Reuters Brigitte Merk-Erbe, a presidente da Câmara de Bayreuth, que pagou cerca de um terço dos 20 milhões de euros investidos nas obras de remodelação e de ampliação de que o Museu Richard Wagner foi alvo. Além de finalmente pôr o dedo nas duas feridas mais dolorosas do colosso Richard Wagner, o compositor dos compositores alemães, o museu abre pela primeira vez ao público a casa onde viveu até à sua morte, em 1930, um dos filhos do compositor, Siegfried, cuja mulher se tornaria depois muito próxima do Führer. É justamente nesta nova ala que se mostram, com destaque muito significativo, os textos anti-semitas que Wagner escreveu sobretudo durante a sua juventude, alguns dos quais sob anonimato. O mais famoso destes textos, Das Judentum in der Musik, publicado em 1850, foi de resto retomado pelos ideólogos do nazismo, que subscreveram e amplificaram as teses de Wagner sobre o papel dos judeus ("ex-canibais" tornados "homens de negócios") na corrupção da cultura e da língua alemãs e transformaram o compositor no mais definitivo exemplo da superioridade da raça ariana.

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"Temos de olhar para a nossa História, e temos de trabalhar com a nossa História", disse à Reuters Brigitte Merk-Erbe, a presidente da Câmara de Bayreuth, que pagou cerca de um terço dos 20 milhões de euros investidos nas obras de remodelação e de ampliação de que o Museu Richard Wagner foi alvo. Além de finalmente pôr o dedo nas duas feridas mais dolorosas do colosso Richard Wagner, o compositor dos compositores alemães, o museu abre pela primeira vez ao público a casa onde viveu até à sua morte, em 1930, um dos filhos do compositor, Siegfried, cuja mulher se tornaria depois muito próxima do Führer. É justamente nesta nova ala que se mostram, com destaque muito significativo, os textos anti-semitas que Wagner escreveu sobretudo durante a sua juventude, alguns dos quais sob anonimato. O mais famoso destes textos, Das Judentum in der Musik, publicado em 1850, foi de resto retomado pelos ideólogos do nazismo, que subscreveram e amplificaram as teses de Wagner sobre o papel dos judeus ("ex-canibais" tornados "homens de negócios") na corrupção da cultura e da língua alemãs e transformaram o compositor no mais definitivo exemplo da superioridade da raça ariana.

Mas se o anti-semitismo de Wagner fica assim arrumado na colecção permanente do museu, o igualmente delicado tema da familiaridade que, postumamente (quando Wagner morreu em Veneza, o século XX ainda nem sequer tinha começado...) , os descendentes do compositor mantiveram com o topo da pirâmide social nazi ocupa toda a primeira exposição temporária no novo edifício principal. As regulares deslocações de Adolf Hitler, um furioso wagneriano, ao teatro de ópera que Wagner mandou construir na década de 70 do século XIX (a Bayreuth Festspielhaus) não são propriamente novidade, mas nunca o Museu Richard Wagner tinha exposto e documentado tão frontalmente as comprometedoras ligações dos descendentes do compositor com o topo da pirâmide nazi, abrindo o álbum da família para mostrar por exemplo as fotografias em que as sobrinhas do compositor aparecem de braço dado com o Führer

Mas enfrentar os fantasmas do legado wagneriano faz parte da missão da instituição, declarou abertamente à Reuters o director, Sven Friedrich, na visita guiada de sexta-feira: "Quando abriu, há quase 40 anos, o Museu Richard Wagner não estava completo. Este museu não deve ser apenas sobre a música e as óperas de Wagner, mas também sobre a recepção da sua obra (...) e sobre as relações da sua família com Hitler." E é assim que, como conta a agência noticiosa, os esqueletos que muitos wagnerianos prefeririam nunca ter visto sair do armário passam agora a conviver com os itens mais benignos da colecção permanente – entre os quais se incluem figurinos originais das óperas de Wagner, manuscritos do compositor, e muitos materiais audiovisuais – num novo edifício principal de vidro e cimento contíguo à villa que o compositor construiu e ocupou em Bayreuth, a Wahnfried, e que ironicamente sofreu danos severos durante a Segunda Guerra Mundial.

Assuntos de família

A reabertura do Museu Richard Wagner foi agendada para coincidir com o arranque de mais uma edição do Festival de Bayreuth, talvez o mais singular dos acontecimentos do calendário anual da ópera – os bilhetes, como sublinhou o responsável comercial do festival, Heinz-Dieter Sense, citado pela France-Presse, continuam a ser dos mais difíceis de obter do mundo, com esperas de 13 ou 14 anos para certas produções. Para as 30 representações agendadas até 28 de Agosto (em cena estarão Tristão e Isolda, o LohengrinO Holandês Voador e as quatro óperas que compõem a mais seminal das construções wagnerianas, O Anel dos Nibelungos), foram postos à venda 60 mil bilhetes, um quarto dos quais se destina à poderosa Sociedade dos Amigos do Festival.

Depois do escândalo da iconoclástica encenação de Franz Castorf para a tetralogia O Anel dos Nibelungos, em 2013, em pleno bicentenário do compositor, o caso deste ano parece ser a nova produção de Tristão e Isolda dirigida pela polémica Katherine Wagner, neta de Wagner e actual directora principal do festival. O problema não é só o facto de o currículo de Katherine não se mostrar propriamente abonatório (em Bayreuth limitou-se a dirigir um espectáculo muito mal recebido pela crítica e pelo público); como sempre em Bayreuth, há telenovelas de bastidores: em Junho, vários jornais alemães noticiaram rumores de que a meia-irmã de Katherine e co-directora do festival, Eva Wagner-Pasquier, foi impedida de se aproximar dos ensaios por imposição do todo-poderoso maestro Christian Thielemann, que terá ameaçado retirar-se da produção caso a sua vontade fosse desafiada. Os rumores do complot contra Eva, que já há mais de um ano anunciou que se retirará da direcção do festival no fim desta edição, foram "vigorosamente desmentidos" pela organização do festival, mas terão sido levados a sério pelos advogados da bisneta do compositor e também por Daniel Barenboim, actual director do La Scala de Milão e da Berlin Staatsopera. Num depoimento emitido a título estritamente pessoal, o maestro considerou o tratamento a que Eva foi submetida "desumano": "Pensei que não se podia privar uma pessoa da sua liberdade de movimentos – a não ser tratando-se de um criminoso."

Como se não bastasse (os enredos em Bayreuth são sempre bastante barrocos), o actual maestro da tetralogia do Anel, o russo Kirill Petrenko, condenou publicamente a substituição de última hora do tenor canadiano Lance Ryan, que foi o Siegfried nas duas últimas temporadas, por Stefan Vinke, considerando-a "totalmente indigna". Informação de bastidores: a ordem terá sido dada pelo rival Thielemann, depois de se ter visto preterido em favor de Petrenko para o ambicionado cargo de director da Filarmónica de Berlim.

Não foi o primeiro (e avaliar pelo historial dificilmente será o último) ajuste de contas em Bayreuth. Mas, e para voltar ao início desta notícia, numa coisa tanto Katharine como Eva estão do mesmo lado da barricada: pelo menos até à inauguração deste domingo, nenhuma das duas quis ir conhecer o novo museu.