O Padrinho acabou. Hoje a máfia é capitalismo puro”

Não poderia haver local mais apropriado para se discutir o narcotráfico do que em Paraty, uma das cidades mais violentas do Rio de Janeiro. Foi a este lugar que Roberto Saviano não veio.

Foto
Os jornalistas Ioan Grillo (à esquerda) e Diego Osorno (à direita) protagonizaram uma das melhores sessões desta edição da FLIP WALTER CRAVEIRO

A sua cara enche os ecrãs gigantes da Tenda dos Autores e dos que ficam ao ar livre espalhados pelo recinto no dia de encerramento da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). “Nunca tive pretensão de mudar nada. Não creio ter outro objectivo ou outro interesse a não ser partilhar. Não sei o que advirá de contar todas essas histórias que eu quis contar justamente num estilo literário. O que advirá, o que acontecerá? Só sei que quero partilhá-las”, disse o escritor italiano que foi o grande ausente desta 13ª edição da FLIP.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

A sua cara enche os ecrãs gigantes da Tenda dos Autores e dos que ficam ao ar livre espalhados pelo recinto no dia de encerramento da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). “Nunca tive pretensão de mudar nada. Não creio ter outro objectivo ou outro interesse a não ser partilhar. Não sei o que advirá de contar todas essas histórias que eu quis contar justamente num estilo literário. O que advirá, o que acontecerá? Só sei que quero partilhá-las”, disse o escritor italiano que foi o grande ausente desta 13ª edição da FLIP.

Explicou que tinha pena de não estar em Paraty, mas infelizmente aconteceu-lhe aquilo que lhe acontece muitas vezes desde que escreveu Gomorra e vive sob escolta policial por ter sido ameaçado de morte pela Camorra italiana: cancelou a sua vinda ao festival à última hora por razões de segurança.

Recentemente o escritor voltou a Casal di Principi - o povoado em Caserta de que fala na sua obra e que foi a capital da Camorra por muitos anos -, onde já não ia há oito anos e isso criou novamente, à sua volta, uma disciplina de protecção elevada. “O livro que escrevi [ ZeroZeroZero - A Cocaína Governa o Mundo, editado pela Objectiva] tem o coração na América Latina. O Brasil tem um papel importante no tráfico de coca”, afirma. Explica que o poder criminal no Brasil, a estrutura mafiosa que agora abrange também as organizações de São Paulo e do Rio, aquilo a que ele chama “máfia brasileira”, é uma estrutura com regras, com códigos morais de comportamento, com tribunais internos e está preparada para influenciar o sistema económico e político.

“Não pode existir a criação de um poder económico criminoso sem uma conivência e uma aliança com a burguesia saudável do país. É este elo que precisa de ser descrito. A periferia napolitana bombeia dinheiro do centro de Itália; as favelas e o mundo criminal brasileiro bombeiam dinheiro da economia legal brasileira”, lembra o autor cuja participação na FLIP foi substituída pela mesa Jornalismo de Guerrilha, com o inglês Ioan Grillo e o mexicano Diego Osorno, especializados na cobertura da guerra entre cartéis mexicanos de traficantes de drogas, moderados pela antropóloga Paula Miraglia, e que acabou por ser uma das mais interessantes e das melhores do festival literário. Em Paraty esteve ainda o cartoonista francês Plantu, que também tem protecção policial, como se viu no palco onde esteve ao lado do francês Riad Sattouf e o brasileiro Rafa Campos a falar sobre os limites do humor tendo o atentado à redacção do Charlie Hebdo como pano de fundo.

Violência e marinas de luxo
Quando se soube que o jurado de morte pela Camorra italiana cancelou a vinda à FLIP por motivos de segurança, o escritor brasileiro Ronaldo Bressane escreveu no seu blogue Impostor: “Vai à FLIP? O mais bravo jornalista do mundo, Roberto Saviano, não vai. Ligue os pontos”. Nesse texto, que se tornou viral, lembra que Paraty é hoje a terceira cidade mais violenta do Rio de Janeiro; em Maio o prefeito de Paraty e o seu assistente foram alvejados com tiros na cabeça quando saíam da câmara municipal, perto do local onde fica a Tenda dos Autores, por um homem numa mota que fugiu sem ser identificado. E o crime ainda não foi resolvido. Dois dias depois, uma criança de seis anos foi alvejada por uma bala perdida durante “uma escaramuça” entre o Comando Vermelho (que domina a localidade Ilha das Cobras) e o Terceiro Comando (que domina a localidade Mangueira) e que num episódio parecido no centro da cidade, na Praça Matriz, durante o último Carnaval, morreu um rapaz e várias pessoas ficavam feridas.

Quem chega a Paraty entusiasmado com a literatura e passa o dia na área onde se realiza aquele que é o mais importante festival literário do Brasil, percebe que Paraty é uma cidade de contrastes mas não se apercebe de toda esta violência. Embora este ano houvesse um carro da polícia em cada esquina, muito mais do que nas últimas edições (foi montado um esquema de segurança sem precedentes pela Polícia Militar). Quem ainda está na cidade no dia seguinte ao encerramento da FLIP, sabe do vaivém barulhento de aeronaves que partem do aeroporto que divide a Paraty rica da pobre e transportam quem veio ao festival de avião particular. Mas é preciso estar três meses em Paraty e sair da área da pousada - como esteve Ronaldo Bressane numa residência literária - para descrever, como ele descreve, o condomínio Laranjeiras, que tem 150 casas desocupadas o ano inteiro menos uma. Os proprietários só as usam um mês por ano ou quando vêm à FLIP, andar no meio da lama e da chuva como aconteceu este ano, com as suas carteiras e roupas de marcas de luxo.

“O condomínio é um dos mais luxuosos do Brasil e conta com lagos belíssimos, marina onde se ancoram cerca de 50 embarcações e carrinhos de golfe para levar os seus habitantes para lá e para cá. Banqueiros, políticos, fazendeiros, empresários, proprietários de empresas de media e artistas são donos, mas usufruem das suas casas — a maioria de arquitectura neoclássica, imponente e ruim — por apenas um mês ao ano. O lugar é ‘habitado’ sobretudo por funcionários”, escreve Bressane, que lembra também que “é possível observar nas ruas do centro histórico turistas do Brasil e do mundo consumirem maconha e cocaína quase sempre compradas em Ilha das Cobras ou Mangueira, bairros nos quais, no entanto, a droga favorita é o crack — como de resto em todas as periferias do espoliado litoral brasileiro —, bem como na Vila Oratório, onde residem muitos funcionários do condomínio Laranjeiras.”

Foi a este lugar que Roberto Saviano não veio. Onde os jornalistas Ioan Grillo e Diego Osorno, que o substituíram, vieram falar de legalização das drogas e da falência do actual modelo de combate ao tráfico e pareceram esperançados com a Assembleia-Geral da ONU, que em Abril do próximo ano vai discutir a descriminalização da canábis e da cocaína, tendo estado a ajudar a equipa de especialistas que está a analisar os modelos adoptados por Portugal, pela Holanda e pelo Uruguai. “Vivemos numa época histórica. O debate transformou-se massivamente. Para a maior parte dos políticos, era impossível falar em legalização há quatro ou cinco anos”, lembrou Ioan Grillo no palco da Tenda dos Autores.

E Diego Osorno recordou Saviano, explicando que já não vivemos na era de O Padrinho retratado nos filmes de Francis Ford Coppola: “Não há romantismo, O Padrinho acabou, deixou de existir. Hoje a máfia é economia e capitalismo puro. É uma empresa mergulhada nas dinâmicas onde opera”, concluiu.