A guitarra de Peixe, interface com um mundo infinito

Apneia foi a estreia a solo. Peixe, uma guitarra e a intuição a guiá-lo na descoberta. Motor, o álbum que editou este ano, prova o muito que o percurso escolhido tem para oferecer. Esta sexta na ZDB, em Lisboa. Sábado no Palácio, no Sobralinho.

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Adriana Oliveira

Peixe esteve nos Pluto que se seguiram aos Ornatos e foi guitarrista desse grupo em forma de banda-sonora desbragada chamado Zelig (deixou um álbum, Joyce Alive!). Peixe navegou as águas do jazz e da improvisação nos DEP e é o maestro da Orquestra de Guitarras e Baixos Eléctricos com baptismo quase auto-descritivo (para ser perfeito, faltava acrescentar “e duas baterias”). Em todos eles, Peixe trabalha em cardume, passe o trocadilho fácil. Mas o que temos descoberto é que Peixe pode ser um magnífico artesão musical enquanto navegador solitário. Exibam-se as provas: 1) Apneia, o álbum de estreia a solo, editado em 2012; 2) Motor, segundo álbum a solo, lançado há alguns meses. Neles, encontramos o músico portuense de 41 anos entregue àquilo que pode nascer da relação das suas mãos, da sua criatividade e intuição, com as seis cordas de uma guitarra. Apneia foi, nas palavras do próprio, “uma espécie de prelúdio”. Motor, o óptimo álbum que lhe sucedeu, não tacteia, avança decidido. “Sinto que é mais sólido quanto à construção de narrativas musicais, que é o que me toca mais na música instrumental. Ter esse lado abstracto, mas, ao mesmo tempo, uma ideia de narrativa que é concreta, porque se pretende levar o ouvinte numa viagem com princípio, meio e fim”, diz ao Ípsilon em entrevista telefónica desde a sua casa, no Porto.

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Peixe esteve nos Pluto que se seguiram aos Ornatos e foi guitarrista desse grupo em forma de banda-sonora desbragada chamado Zelig (deixou um álbum, Joyce Alive!). Peixe navegou as águas do jazz e da improvisação nos DEP e é o maestro da Orquestra de Guitarras e Baixos Eléctricos com baptismo quase auto-descritivo (para ser perfeito, faltava acrescentar “e duas baterias”). Em todos eles, Peixe trabalha em cardume, passe o trocadilho fácil. Mas o que temos descoberto é que Peixe pode ser um magnífico artesão musical enquanto navegador solitário. Exibam-se as provas: 1) Apneia, o álbum de estreia a solo, editado em 2012; 2) Motor, segundo álbum a solo, lançado há alguns meses. Neles, encontramos o músico portuense de 41 anos entregue àquilo que pode nascer da relação das suas mãos, da sua criatividade e intuição, com as seis cordas de uma guitarra. Apneia foi, nas palavras do próprio, “uma espécie de prelúdio”. Motor, o óptimo álbum que lhe sucedeu, não tacteia, avança decidido. “Sinto que é mais sólido quanto à construção de narrativas musicais, que é o que me toca mais na música instrumental. Ter esse lado abstracto, mas, ao mesmo tempo, uma ideia de narrativa que é concreta, porque se pretende levar o ouvinte numa viagem com princípio, meio e fim”, diz ao Ípsilon em entrevista telefónica desde a sua casa, no Porto.

Peixe continua esta semana a apresentar Motor. Esta sexta-feira, sobe ao palco da Galeria Zé dos Bois, em Lisboa (22h, 6€, primeira parte de Marco Luz e da sua luminosa estreia, Cores). Sábado actuará no Palácio, no Sobralinho (22h, 7,5€). Quando foi editado o segundo álbum a solo, escrevemos em crítica que este é “atravessado pela doçura da memória e pelo prazer em fazer das cordas da guitarra um desafio permanente: não para a vencer com exibição de virtuosismo, mas para procurar nelas forma de exprimir devidamente as ideias e emoções que atravessam a mente do guitarrista”.

Claro que Peixe desde sempre andou às voltas com a guitarra acústica, dedilhando-a em casa, arrumando ideias na cabeça, guardando-as na gaveta ou usando-as como ponto de partida para canções das suas bandas. Chegou um momento, porém, em que guardá-las deixou de ser hipótese. Porque, quando os Zelig terminaram, foi tomado pela vontade de se tornar “mais independente”: “é um bocado frustrante quando os grupos se separam e é difícil mantê-los”, comenta. Esse desejo foi acompanhado por outro: “agrada-me olhar a guitarra, uma coisa tão pequenina, tão portátil, tão simples, com umas cordas de metal, e perceber que é uma espécie de interface com um mundo infinito – achei que era quase um dever fazer música sozinho com o meu instrumento de eleição”.

No processo, ao seguir o trabalho de Norberto Lobo ou de Filho da Mãe, ou ao constatar como a música instrumental dos Dead Combo fazia o seu caminho no cenário português, sentiu o impulso definitivo: “Se calhar há pessoas com vontade de ouvir isto. Se calhar, não é só para tocar na sala”. Não era, definitivamente. Isto são graciosas valsas dançadas por guitarra e flauta, são reminiscências de Paredes (sempre ele, sempre obrigatório) a conduzirem a Lamento imenso, são fingerpicking americano tornado matéria evanescente e turbulência acústica em tangente com uma ideia (só a ideia) de rock.

Filho da intuição
Não há palavras na música de Peixe, mas abundam as imagens e a história, sobressai o prazer em desencantar melodias à imaginação e burilá-las até que se tornem corpo completo. “A música instrumental sempre foi um bocado marginalizada, não só pelos ouvintes, mas sobretudo pelos meios de comunicação, a televisão e a rádio, o que é estranho, porque pode levar o ouvinte a sítios onde a música com texto não leva”, afirma. “Não quero dizer com isto que seja superior à música cantada, mas a ausência de texto escrito confere uma outra linguagem ao som”.

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Na capa de Motor, ilustração criada por Ana Torrie, vemos uma mesa de refeição. Sobre ela, pratos de comida atacados com avidez pelas crianças de rosto assustador que a rodeiam. Lá em cima, em pé sobre a mesa, um miúdo com melancólicos olhos sonhadores brinca com um avião. A criança é Peixe (ou melhor, a criança foi desenhada por Torrie sobre uma foto de infância de Pedro Cardoso), a “brincar no mundo da criatividade e das ideias”. A leitura, que foi a nossa, e que, felizmente, é também a do autor do disco, é feliz. “Está próxima do que a música significa para mim. Este processo a solo é introspectivo e ajuda-me a descobrir mais sobre mim. A descoberta surge nesse mundo muito íntimo, o da criatividade, que assume uma função quase espiritual, sobretudo para mim, que sou ateu. A minha espiritualidade é a criatividade, a relação que estabeleço com a procura de uma expressão”.

Apesar de ter também desenvolvido trabalho para cinema ou para teatro (as valsas de Motor, a do cowboy enamorado e a judia, surgem nesse contexto) e de aí existir, inevitavelmente, uma condução do impulso criativo, o Peixe guitarrista a solo é filho da intuição. “À medida que vou fazendo mais desses trabalhos vou também dominando melhor o processo de emoldurar a cena com música”, explica. “A simples prática faz com que a intuição fique mais aguçada e que as coisas saiam mais rapidamente. Mas não tenho nenhum cenário, nenhuma ideia, nenhum conceito. A minha música é cem por cento intuitiva. Claro que tem que haver qualquer coisa por trás, mas intuição é a palavra que mais se aproxima do que acontece no momento em que a criatividade se manifesta”, explica.

Peixe, que continua a sentir vontade de pegar numa guitarra eléctrica (“tocar rock e fazer um bending com distorção é das coisas mais poderosas”), define-se como “uma pessoa inconstante que gosta de fazer muitas coisas diferentes”. Irá continuar a fazê-las. Este percurso a solo com a guitarra não é, porém, apenas a manifestação de outra das suas facetas. É um caminho que, ouvindo Apneia, ouvindo principalmente Motor, queremos que continue a percorrer. “Sinto que vou evoluindo enquanto músico e compositor, mas claro que quanto mais se descobre, quanto mais se aprende, melhor percebemos que ainda nos falta bem mais do que imaginávamos. Mas é isso que me alimenta e me entusiasma “. Cada vez mais longe, Peixe continua a caminhar em frente.