As novas formas de violência e a legislação vigente

Injustificadamente não existe qualquer diploma que contemple de forma explícita os crimes praticados durante a fase do namoro.

O termo "falta de valores", significa que os pais têm, no mínimo, a obrigação de não permitir que os filhos vejam imagens violentas na televisão, ou que, eles pais, se comportem na presença dos filhos como tal.

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O termo "falta de valores", significa que os pais têm, no mínimo, a obrigação de não permitir que os filhos vejam imagens violentas na televisão, ou que, eles pais, se comportem na presença dos filhos como tal.

Num tempo em que a imagem destronou todos os outros veículos de cultura, o seu efeito em muita da violência que por aí se vê e sente tem sido devastador. As principais vítimas deste mundo da imagem a toda a hora e a todo o instante são os jovens. O "bullying" nas escolas, onde os adolescentes e os menos adolescentes, em geral ignorantes e incapazes de se distinguir pela inteligência e pelo saber, procuram distinguir-se humilhando o próximo, geralmente mais mal vestido, sorumbático e pouco dado a dinâmicas de grupo, ou, o que ultimamente tem aparecido com alguma regularidade, a violência entre namorados.

Namorar é uma relação íntima de afeto, atribuída tradicionalmente a um homem e uma mulher, livres, que se relacionam romanticamente, com vínculo de exclusividade, independente da prática de relações sexuais. Envolve interação social para aprofundar o conhecimento da pessoa amada, até que uma das partes termine ou até que seja estabelecida uma relação de maior compromisso.

Os adolescentes e jovens envolvidos em relações de namoro parecem, cada vez com uma maior frequência, experimentar múltiplas formas de violência, nomeadamente a violência física, a violência sexual e a violência psicológica ou emocional. Todas elas acarretam consigo consequências, no mínimo, alarmantes. No namoro, a namorada não pode ser obrigada a manter relações sexuais com o seu namorado, qualquer violência ou grave ameaça para constranger o outro a praticar ato sexual contra sua vontade é crime de coação sexual punido com pena de prisão até oito anos.

Se até há uns anos, a maioria dos países tendia a negligenciar a existência deste problema, hoje a criminalização da violência nas relações de intimidade é uma prioridade, face a um crescente número de vítimas de violência cujas agressões não se restringem à integridade física, ou sexual, mas que também atinge o seu estado psicológico ou emocional.

A rutura de uma relação amorosa é suscetível de potenciar o ex-namorado, instigado pelo ciúme ou por outros sentimentos derivados da rejeição, a iniciar uma incessante e obstinada perseguição psicológica, «stalking» à ex-namorada. O "stalking" consiste numa obsessiva perseguição à vítima, seja por amor, ódio, vingança ou inveja, seja através de encontros provocados, na saída do trabalho, na residência ou noutro local de frequência habitual, procurando impor a sua presença indesejada.

A perseguição obsessiva e insidiosa salta para as redes sociais e para o telefone através de mensagens indesejáveis, sejam convites insistentes ou ofensas rotineiras, sejam meras chamadas ou mensagens anónimas, causando, em ambos os casos, perturbação, medo, intranquilidade. O agressor não pára até atingir os seus objetivos, por exemplo, a reconciliação forçada de um relacionamento amoroso. A perseguição torna-se assim infernal para a vítima.

As consequências de  "stalking" atingem a saúde mental e emocional infligindo rejeição ou dúvida, ou seja, a vítima não acredita no que lhe está a acontecer. Ao aperceber-se da gravidade, esta assume sentimentos de frustração, culpa, vergonha, insegurança, raiva, isolamento, perda de confiança em si própria e desenvolve pensamentos violentos para com o agressor, não dorme nem descansa o necessário. A desordem no dia-a-dia da vítima é total refletindo-se no trabalho, no estudo, nas tarefas diárias e nos momentos de lazer. A ideia de que a violência contra mulheres, crianças, ou outros seres humanos (sem esquecer os animais) pode ser justificada necessita de ser reconsiderada.

Um longo caminho legislativo iniciou-se na década de 90, com o reforço dos mecanismos de proteção legal às mulheres vítimas de crimes violentos. Destaque para o sistema de prevenção e apoio às vítimas de violência, através de campanhas nacionais de sensibilização e prevenção; um serviço telefónico de informações nacional grátis e acessível 24 horas por dia, que, em caso de emergência, poderá solicitar a intervenção imediata das autoridades, e uma rede múltipla de Casas de Apoio, que prestam atendimento, abrigo e encaminhamento das mulheres vítimas de violência doméstica. Criou-se, igualmente, o regime jurídico do adiantamento pelo Estado da indemnização devida às vítimas de violência conjugal. Refira-se, ainda, que tal diploma veio possibilitar a atribuição daquela indemnização a pessoas que se encontrassem numa grave situação económica. O benefício pode ser requerido pela vítima ou pelo seu representante, pelas associações de proteção à vítima ou ainda pelo Ministério Público.

Regressando ao namoro, injustificadamente não existe qualquer diploma que contemple de forma explícita os crimes praticados durante essa fase, tão importante e que, por razões óbvias, constitui a antecâmara do casamento ou de uma vida em comum. A jurisprudência tem vindo, no entanto, a fazer uso do que está contemplado para a violência doméstica, enquadrando estas relações como se de relações análogas aos cônjuges se tratassem.

O crime de violência doméstica, está previsto no artigo 152.º do código penal sendo este preceito aplicável sempre que se verifique existirem "maus tratos físicos e psíquicos, incluindo castigos, corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais (…) a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agressor mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem habitação."

É evidente que a justiça tem de pensar maduramente no assunto e combater, firme, a violência que grassa por aí nas relações entre namorados. Mas tal, porém, não impede a que se lance um olhar crítico para aqueles que são, em meu entender, os principais culpados da deformação social a que impotentemente se assiste, por condicionarem, sem qualquer tipo de pudor, os cérebros de quem não sabe, não pode ou não é capaz de defender-se da violência física, moral, intelectual ou sexual, para só referir estas, que lhe entram diariamente pela casa adentro. E no meio de toda essa violência, naturalmente que também se encontra a que começa no namoro.

Advogado, sócio-partner da Dantas Rodrigues & Associados