Amor de mãe

A forma mais elevada de vida em sociedade não se conquista através da exigência de mais amor pelos nossos (que é coisa que não costuma faltar), mas de mais amor pelos outros.

O artigo de Daniel Oliveira exibe uma indignação profunda pela atitude desta mãe. Escreve ele: “Não posso, sem precisar de mais nada para além do meu instinto paternal, deixar de me arrepiar com a forma como a mãe do homicida de Salvaterra ofereceu à comunidade, na busca de perdão para si, o seu filho para sacrifício.” No seu entender, “os pais amam irremediavelmente as suas belas ou horrendas criaturas” e, por isso, espanta-se que “haja tanta gente que não sinta que o amor pelos seus filhos é incondicional e irrevogável. Acima do bem e do mal”.

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O artigo de Daniel Oliveira exibe uma indignação profunda pela atitude desta mãe. Escreve ele: “Não posso, sem precisar de mais nada para além do meu instinto paternal, deixar de me arrepiar com a forma como a mãe do homicida de Salvaterra ofereceu à comunidade, na busca de perdão para si, o seu filho para sacrifício.” No seu entender, “os pais amam irremediavelmente as suas belas ou horrendas criaturas” e, por isso, espanta-se que “haja tanta gente que não sinta que o amor pelos seus filhos é incondicional e irrevogável. Acima do bem e do mal”.

Um importante ponto prévio: não quero avaliar em concreto as condições de vida daquela família, os traumas do homicida — que cresceu longe dos pais e a saltar entre instituições ou o perfil psicológico da mãe, que entretanto já se mostrou arrependida do que escreveu e disse que iria acompanhar o filho em tribunal. Interessa-me, isso sim, discutir a ideia de que o amor pelos filhos está “acima do bem e do mal”, não por acaso uma frase nietzschiana que tenta superar as categorias clássicas da moral cristã. Moral essa, convém recordar, construída a partir da fé num Deus que entrega o próprio filho para morrer na cruz ou seja, antes da secularização do mundo, o amor dos pais pelos filhos nunca esteve acima do bem e do mal (é começar nos gregos e acabar em Shakespeare), e até a própria mitologia lusitana cultiva com denodo e admiração a lenda de Egas Moniz, que se entregou de baraço no pescoço, juntamente com a mulher e os seus filhos, ao rei de Castela.

forma mais elevada de vida em sociedade não se conquista através da exigência de mais amor pelos nossos (que é coisa que não costuma faltar), mas de mais amor pelos outros daí o interesse da mensagem cristã, mesmo para quem é ateu, desde que tenha superado os tiques mata-frades. Ela é um convite para sair do nosso reduto em direcção ao outro, ainda que esse outro não nos seja próximo melhor: sobretudo se ele não nos for próximo. Se Daniel Oliveira ficou horrorizado por uma mãe declarar o abandono do seu filho e consigo entender isso, ainda que lhe aconselhe a audição de Uma canção desnaturada, de Chico Buarque , eu fiquei sobretudo comovido ao vê-la escrever: “Preferia mil vezes que [o meu filho] estivesse no lugar do Felipe.” Perante uma frase tão forte quanto esta, há quem possa ver nela uma “mãe que arrepia”. Mas eu vejo sobretudo uma mãe que se recusa a colocar o seu coração à frente do sentimento de justiça e isso, no mundo em que vivemos, é tanto mais raro quanto digno de admiração.

Jornalista, jmtavares@outlook.com