Quase 200 crimes de ódio contra pessoas LGBT em Portugal, num ano

A dois dias de se assinalar o Dia Internacional de Luta contra a Homofobia e a Transfobia, foram apresentados novos estudos, um dos quais da ILGA. Vítimas não vão à polícia. “Não queria dar mais ‘vergonhas’ à minha família.”

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Dois relatórios, um da rede ex aequo e outro da ILGA, analisam a discriminação contra pessoas LGBT Pedro Cunha

A maioria dos crimes e incidentes motivados pelo ódio relatados à ILGA foram identificados como tendo ocorrido em Lisboa (43%) e arredores. Jovens entre 14 e 20 anos de idade foram os principais alvos.

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A maioria dos crimes e incidentes motivados pelo ódio relatados à ILGA foram identificados como tendo ocorrido em Lisboa (43%) e arredores. Jovens entre 14 e 20 anos de idade foram os principais alvos.

O agressores são, muitas vezes, outros jovens. Há casos de violência extrema (69), incluindo violações, e de ameaças de vários tipos. A esmagadora maioria dos agredidos (93%) contaram que não reportaram à polícia o que sofreram. “Não queria dar mais ‘vergonhas’ à minha família”, disse uma das vítimas.

Esta é a segunda vez que a ILGA-Portugal apresenta um relatório com estas características. A primeira foi no ano passado, com dados referentes a 2013. Na altura tinham sido contabilizadas 112 situações que cumpriam então os critérios para definir um “crime de ódio” usados pela Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE).

É essa definição da OSCE (a quem este relatório é entregue anualmente) que continua a ser usada pela associação, explicou Marta Ramos, dirigente da ILGA-Portugal, nesta sexta-feira, num seminário promovido em Lisboa pela Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, a propósito do Dia Internacional de Luta contra a Homofobia e a Transfobia que se assinala no domingo.

A legislação portuguesa não reconhece o crime de ódio enquanto figura penal autónoma. Mas prevê agravamento de pena para certos crimes cometidos por motivos relacionados com a real ou percepcionada orientação sexual ou identidade de género da vítima (entre outros). Já para a OSCE há um leque vasto de “crimes de ódio”, desde homicídio, a “danos a carros ou outros bens pessoais que pertencem a membros da comunidade LGBT”, por exemplo. Nalguns casos, é uma definição mais lata do que a legislação portuguesa, diz Marta Ramos.

E na escola?
Perante uma plateia constituída por muitos agentes da PSP e da GNR, um outro relatório foi apresentado por Gustavo Briz, da rede ex aequo (associação de jovens LGBTI - lésbicas, gays, bissexuais, trans, intersexo e apoiantes). Nele faz-se o balanço das queixas que chegaram a esta associação, em 2013 e 2014, relacionadas especificamente com homofobia nas escolas.

Houve 20 jovens a relatar situações à associação, entre as quais 16 agressões verbais, 15 casos de agressão psicológica e quatro ataques físicos. “O número de denúncias não reflectem os casos de discriminação vividos e testemunhados pelos jovens portugueses em contexto escolar. Temos esta experiência graças ao Projecto Educação LGBTI que nos leva a escolas de Norte a Sul do país e ilhas e, infelizmente, contactamos com casos que ainda não são reflectidos nas denúncias que nos chegam”, diz Gustavo Briz.

Tendo essa convicção, a associação lançou recentemente uma campanha para apelar à denúncia de casos de homofobia nas escolas. Chama-se #QuebraOSilencio. No domingo, a ex aequo organiza uma acção de rua em Lisboa a promovê-la. E entre as 17h às 19h, no Rossio, Lisboa, distribuirá “abraços contra a discriminação”.

Cinco tentativas de suicídio
“O que sentiu após a agressão?” foi uma das questões colocadas pela rede ex aequo aos jovens que lhes enviaram testemunhos. Cinco referiram ter tentado suicidar-se. O mesmo número diz ter abandonado o sistema educativo.

Citação de um rapaz de 17 anos, da Madeira, usada pela ex aequo no relatório: “Acabei por abandonar a escola em Janeiro de 2014, isto devido a (...) não aguentar mais a pressão psicológica tanto em casa como na escola, ter de encarar aqueles brutamontes todos os dias... e estava na altura de pôr o meu ponto final, já não aguentava mais a situação, quanto para mais eu sabia que a escola não estava minimamente interessada em defender os meus direitos.”

Sabendo-se que muitos não contactam nenhuma associação para relatar o que passam é difícil fazer análise de tendências. Mesmo os dados da ILGA de 2013 não são totalmente comparáveis com os de 2014, explicou Marta Ramos. O relatório referente a 2013 contemplava apenas denúncias recebidas entre Abril e Outubro. O de 2014 abarca o ano todo.

A ILGA utiliza diferentes métodos para recolher este tipo de informação: por um lado, a “sistematização de informação proveniente dos diversos serviços da Associação ILGA-Portugal (o Departamento Jurídico, a Linha LGBT, o Serviço de Integração Social e o Serviço de Aconselhamento Psicológico)”; por outro lado, a análise dos dois formulários que estão disponíveis online e em versão impressa, “em locais estratégicos”, onde vítimas ou testemunhas podem relatar “incidentes homofóbicos e/ou transfóbicos”.

Cada pessoa relata, muitas vezes, mais de que um episódio, daí que os 339 questionários recolhidos em 2014 tenham levado a ILGA a chegar a 426 denúncias de “incidentes” e “crimes de ódio”, explica-se no documento. A maioria (210), foram apresentados pelas vítimas, os restantes (129), por testemunhas.

Polícias na Marcha?
De acordo com a análise, a maior parte da vítimas são homens gay. Mas há um padrão: nas denúncias de abusos verbais, violência física, destruição de propriedade, ameaças e violência psicológica foram identificadas mais vítimas homens; quando se fala de assédio sexual, violação e outro tipo de violência sexual a maioria das vítimas são mulheres.

Há também alguns casos de violência no seio da família. Por exemplo, olhando para a violência física, em 18% das situações os agressores foram “figuras parentais”.

“Partiram-me o telemóvel, chamaram-me nomes, disseram que tinham vergonha de mim, nojo, raiva. Não querem ter uma pessoa assim na família”, é outro testemunho do relatório.

No capítulo dos “outros incidentes, predominam os insultos ou abuso verbal (182 denúncias), mas também foram relatadas situações de “recusa no acesso a bens e serviços; recusa no acesso a cuidados de saúde ou outros serviços públicos; recusa de protecção policial; e, recusa de emprego e/ou despedimento”.

Marta Ramos sublinhou que têm sido feitos enormes progressos ao nível da formação das forças de segurança — de resto, a ILGA-Portugal tornou-se em 2014 a primeira organização LGBT na Europa a dar formação à Academia Europeia de Polícia —, que estão hoje mais despertas, na sua opinião, para as especificidades das vítimas LGBT.

“Mas a comunidade LGBT ainda não tem noção do bom trabalho que está a ser feito nas forças de segurança” e ainda desconfia, razão pela qual muitas vítimas não apresentarão queixa. Para que essa confiança seja conquistada, Marta Ramos deixou sugestões. Uma delas: que as forças de segurança se façam representar na Marcha do Orgulho Gay. E marchem. “A participação na marcha pode ser uma boa maneira” de ganhar a confiança destas pessoas.