Autorizado primeiro "bebé-medicamento" em Portugal

Casal pediu para ter um bebé que possa ser dador de medula compatível com a sua filha que tem leucemia. A transferência de embriões já foi feita numa clínica no Porto. É o primeiro caso em Portugal.

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Carlos Barria/Reuters

Chama-se “diagnóstico genético pré-implantação” a um processo em que embriões obtidos em laboratório, por fecundação in vitro, são avaliados geneticamente e em que, depois de um processo de escolha, os que são seleccionados são transferidos para o útero da mulher.

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Chama-se “diagnóstico genético pré-implantação” a um processo em que embriões obtidos em laboratório, por fecundação in vitro, são avaliados geneticamente e em que, depois de um processo de escolha, os que são seleccionados são transferidos para o útero da mulher.

Em Portugal esta técnica é permitida apenas por razões médicas e em poucas situações. Uma delas é em caso de risco de transmissão de anomalias ou doenças genéticas graves — cá, o procedimento usa-se, por exemplo, no caso da paramiloidose (doença dos pezinhos) —, sendo transferidos apenas embriões não portadores de doença.

Mas a lei portuguesa que regula a procriação medicamente assistida (de 2006) abre a porta à possibilidade da concepção dos chamados “bebés-medicamento”, em casos excepcionais — “quando seja ponderosa a necessidade de obter grupo HLA [sigla em inglês de antigénios leucocitários humanos, que definem a compatibilidade dos transplantes] compatível para efeitos de tratamento de doença grave”, lê-se na legislação.

Em causa estão situações em que há um filho anterior do casal afectado por cancro ou doença genética passível de ser curada por transplantação de células estaminais do sangue do cordão umbilical de um irmão com compatibilidade HLA ou em que é expectável que a vida da criança doente possa ser prolongada com a transplantação.

Os dois primeiros pedidos deste tipo deram entrada no CNPMA no ano passado, soube o PÚBLICO, e são ambos casais acompanhados no Centro de Genética da Reprodução Prof. Alberto Barros, no Porto. As duas situações foram autorizadas porque estavam esgotadas outras possibilidades de tratamento para os filhos doentes e o risco de saúde dos irmãos “era elevado”, explicou o presidente do CNPMA, Eurico Reis.

Alberto Barros, o director do centro que formalizou os dois pedidos, informa que num dos casais, cuja filha sofre de leucemia linfoblástica, houve transferência de embriões há pouco tempo, mas ainda não se sabe se resultou em gravidez. O outro caso autorizado ainda não avançou.

Já este ano deu entrada no CNPMA um outro pedido, este formalizado por um centro público da região Norte, de um casal com um filho que sofre de leucemia linfoblástica aguda. O prognóstico depende de muitos factores, mas “a taxa de sobrevivência global aos 5 anos é de aproximadamente 80%”, escreve o oncologista Vítor Costa do do Instituto Português de Oncologia do Porto, no site Oncologia Pediátrica.

O CNPMA ainda não se pronunciou sobre o caso deste ano, tendo pedido mais esclarecimentos, nomeadamente junto do Instituto Português do Sangue e da Transplantação, no sentido de saber se estão esgotadas todas as possibilidades de haver dadores compatíveis com o menino doente por esta via, afirma o presidente do CNPMA, Eurico Reis. Ao mesmo tempo, esta criança com leucemia “está estabilizada”. O CNPMA também pediu esclarecimentos ao centro que fez o pedido, para apurar qual “é o grau de probabilidade de recidiva”.

Eurico Reis afirma que ter um filho compatível com o irmão “seria a hipótese mais fácil”. “Estes pais ficariam com um dador certo e seguro. Esta criança estaria disponível, caso seja necessária, sem haver as angústias da procura de um dador.”

“A lei diz que só em último caso. Só se não houver outras soluções possíveis”, que era a situação nos dois únicos casos aprovados em Portugal. “A vontade do legislador é restritiva”, sublinha o responsável. Eurico Reis diz que as deliberações do CNPMA “são actos administrativos e que, como tal, podem ser contestados em tribunal”.

“Instrumentalização”?
O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida produziu um relatório que aborda este tema, da autoria do geneticista Fernando Regateiro, e põe em perspectiva as várias faces do problema. A selecção de um embrião para poder “tratar” um irmão pode surgir como “uma forma de instrumentalização”, podendo o embrião ser visto “como um meio e não como um fim em si, dado que apenas será implantado se for compatível com o ser humano a quem se destinam as células (se for útil)”, lê-se no documento, de 2007. Coloca-se assim a questão de os filhos dadores poderem ficar “marcados pelo facto de terem sobrevivido porque eram úteis, passando a saber, quando atingirem a razão, que tiveram a sorte de serem úteis”, continua o relatório.

A instrumentalização “é relativa”, defendeu, por seu lado, o especialista em bioética Bryn Williams-Jones, do Departamento de Medicina Social e Preventiva da Universidade de Montréal, no Canadá. Citado pelo jornal canadiano La Presse, disse: “Nunca temos filhos por razões puramente altruístas. Podemos ter uma criança por motivos puramente egoístas. Não há razão para que ele seja menos amado simplesmente porque foi instrumento para a cura de um outro filho.”

Guido Pennings, professor de Bioética na Universidade de Gante, na Bélgica, vai no mesmo sentido. “Não é possível dizer que os pais não irão amar e cuidar da nova criança”, “não estando posto em causa o seu valor intrínseco”, escreveu este especialista num artigo da revista científica Human Reproduction.

Uma revisão dos poucos estudos que existem sobre o impacto psicológico nas crianças que vêm ao mundo para curar os irmãos “sugere que estão sujeitas a sofrimento psicológico, independentemente do sucesso do tratamento [dos irmãos]”, escreve-se num artigo publicado em 2007 no Journal of Psychosocial Oncology. Os autores defendem que devem ser feitos mais estudos para tentar compreender “os efeitos positivos e negativos nos irmãos dadores”, que deverão ter acompanhamento psicológico a longo prazo.

Há outros autores, que o relatório de Fernando Regateiro refere, que só consideram a prática aceitável quando também serve para rastrear uma doença do próprio, fazendo-se então, ao mesmo tempo, “estudos adicionais dos embriões destinados a salvar um irmão doente”. É a hipótese ‘dois em um’.

Aquele que terá sido o primeiro caso no mundo foi precisamente uma dessas situações. Foi um bebé concebido nos Estados Unidos para tratar Molly Nash, que na altura tinha 6 anos e sofria de anemia de Fanconi, uma deficiência rara na medula óssea. Neste caso, de 2001, dos 30 embriões que resultaram das fertilizações in vitro, foram primeiro escolhidos 24 não portadores de anemia de Fanconi; cinco destes embriões livres de doença foram então seleccionados, porque eram compatíveis com a irmã doente; três deles foram transferidos para o útero e um deu origem ao nascimento de Adam Nash, que é considerado o primeiro bebé-medicamento no mundo.

A britânica Michelle Whitaker diz que se arrepia quando chamam “bebés-medicamento” a estas crianças. Ela prefere chamar ao seu filho Jamie, nascido em 2003, “bebé salvador”. Numa entrevista ao The Guardian, o pai, Jayson, disse: “É fácil evocar polémicas éticas quando nós próprios não somos confrontados com o problema.” Michelle acrescentou: “Se o nosso filho viesse a morrer, nunca nos podíamos perdoar por não termos feito tudo o que era possível para o salvar.”