A meio mundo de distância, a NATO ajuda o Japão a ganhar força na Ásia

Com uma Constituição pacifista, Tóquio não pode ir para a guerra, mas não quer ficar fora do jogo em termos de capacidades militares. As missões contra a pirataria são uma forma de se afirmar.

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Desfile das forças de auto-defesa do Japão, que não têm o mandato ofensivo de um exército Issei Kato/REUTERS

“Não é de espantar que as relações internacionais estejam num processo de ajustamento”, afirmou Ishii, que falou com o PÚBLICO na semana passada, numa passagem por Lisboa, para explicar de que forma a parceria com a Aliança Atlântica está a ajudar o Japão a ancorar-se melhor no Pacífico.

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“Não é de espantar que as relações internacionais estejam num processo de ajustamento”, afirmou Ishii, que falou com o PÚBLICO na semana passada, numa passagem por Lisboa, para explicar de que forma a parceria com a Aliança Atlântica está a ajudar o Japão a ancorar-se melhor no Pacífico.

“A NATO é a marca com mais sucesso internacional em termos de segurança, e também a força mais capaz de estabilização. Faz sentido para o Japão aprender com a Aliança Atlântica, como organizam as vossas forças militares, como as operam. Fazemos isso participando em treinos e exercícios conjuntos com a NATO, em que aumentamos o nosso nível de interoperabilidade”, explicou.

Este aumento de intimidade do Japão com a NATO tem a ver com a posição que Tóquio se vê assumir na Ásia, o continente em mudança: “Alguém tem de se esforçar para manter a estabilidade”, diz o embaixador Ishii. Esse papel de irmão mais velho, de um actor regional “que possa avançar para garantir a segurança ou evitar uma crise”, é o papel que o Japão gosta de atribuir a si próprio. “Num olhar global, podemos dizer que há apenas três pilares dispostos a assumir esta posição: os Estados Unidos, a Europa, e as democracias da Ásia, Japão, Republica da Coreia e Austrália.”

O primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, terá um palco privilegiado para apresentar a visão geopolítica do Japão esta semana, quando discursar, pela primeira vez, numa sessão conjunta do Congresso norte-americano, a 29 de Abril. Em causa está não só a sua posição no tabuleiro regional como a relação nipónica com os EUA.

É a China a maior ameaça que Tóquio pressente na sua região, ou é dela que quer tentar ser esse irmão mais velho? “A China pode não ser o único problema – a Coreia do Norte é uma questão mais séria e mais urgente”, afirma o diplomata. “A China é um desafio. Temos de coexistir com ela, é o que o Japão tem feito nos últimos dois mil anos. Coexistimos e prosperamos juntos, é o que queremos fazer. Claro que temos de nos preparar para o pior, mas na esperança de que este momento nunca chegue.”

A disputa territorial em torno do arquipélago Senkaku – ilhas desabitadas administradas pelo Japão desde 1895, mas que a China também reclama – é o motivo de confronto mais recente. “Mas as relações começaram a voltar ao normal, e isso é bom. O Presidente Xi Jinping e o primeiro-ministro Shinzo Abe encontraram-se em Novembro [e de novo a 21 de Abril, na Indonésia], e isso é bom. É bom que a China tenha acedido a sentar-se à mesa para discutir a criação de um mecanismo de solução de crises, finalmente. Embora no tereno, a cada dez dias, duas semanas, continuem a haver trespasses territoriais de navios”, diz o também embaixador nipónico em Bruxelas.

À volta do artigo 9.º
Não é de agora a aliança do Japão com o Tratado do Atlântico Norte, embora tenham meio mundo a separá-los: a parceria fez já 35 anos este ano. Mas com o primeiro-ministro Shinzo Abe, o desejo de afirmação nacional ganhou novo fôlego – e também a vontade de descartar, ou pelo menos aliviar, a formulação do artigo 9.º da Constituição, que afirma que o Japão “renuncia à guerra como um direito soberano da nação e à ameaça ou uso da força como um meio de resolver disputas internacionais”, bem como ao direito de manter uma força com capacidade de combate.

Este artigo é uma herança da II Guerra Mundial, na qual o Japão foi derrotado militarmente e também castigado com duas bombas atómicas pelos Estados Unidos, as primeiras – e até agora únicas – armas nucleares utilizadas num cenário de guerra. Em troca de ceder o direito a fazer guerra, os Estados Unidos assinaram um tratado com o Japão, em que se comprometem a assegurar a defesa do país, se alguma vez for atacado.

A vontade de mudar este status quo do pós-II Guerra não é nova, mas o abandono da Constituição pacifista é um assunto muito polémico, embora o Japão tenha constituído algo semelhante a um exército: as forças de autodefesa do Japão, bastante bem equipadas. Mas não têm um mandato ofensivo, ao contrário de um exército de outros países.

No ano passado, o Governo conseguiu impor uma modificação da interpretação do artigo 9.º da Constituição, que reconhece o direito a usar “a autodefesa colectiva” e a acção militar se um dos seus aliados for atacado – um passo que tem em vista um possível ataque com mísseis norte-coreanos.

“As palavras ficaram na mesma mas, se até ao ano passado só se admitiria uma resposta armada se a sobrevivência do país estivesse em perigo, dissemos ‘a situação internacional mudou, já se passaram mais de 60 anos sobre o fim da II Guerra Mundial, hoje é preciso cooperar para resolver os problemas. Se se ficar à espera de ser atacado, como é que se pode esperar que cooperem connosco?”, explica Masafumi Ishii.

“Mesmo antes de o Japão ser atacado, a sua sobrevivência pode ser posta em causa. “Imagine-se uma situação em que os EUA são atacados – pela Coreia do Norte, por exemplo!”, ilustra. “Não podemos ficar à espera do ataque para ajudar os EUA. Esse ataque poria em causa a sobrevivência do Japão mesmo antes de nós sermos atacados.”

Neste momento, está a decorrer no Parlamento japonês o debate de um pacote legislativo apresentado pelo Governo para o novo quadro legal de actuação das forças de auto-defesa do Japão, à luz desta reinterpretação da Constituição – “deve ser aprovado até Julho”, diz o embaixador nipónico na NATO.

Ser “proactivo para paz”
Em causa estão as eventuais missões das forças de auto-defesa japonesas no estrangeiro – que são sempre de apoio, como tem acontecido no Afeganistão, por exemplo, onde dão formação à polícia afegã, no âmbito da cooperação com a NATO. Mas já não têm possibilidade de agir para dar resposta ou tentar salvar cidadãos japoneses raptados pelo Estado Islâmico ou outros jihadistas – como aconteceu recentemente.

“Embora tenhamos reinterpretado a Constituição, nem as palavras nem o princípio instituído no texto fundamental foram alterados. Isso quer dizer que só estamos autorizados a fazer uso da força se a nossa sobrevivência enquanto país estiver em risco. Claro que não é bom que cidadãos japoneses sejam mortos, mas poderá dizer-se que isso coloca em causa a sobrevivência do Japão, que isso corresponde à exigência constitucional que permite mobilizar o exército? Acho difícil…”, comenta.

O que faz muito sentido para o Japão é reforçar a cooperação com a NATO ao nível do combate à pirataria, para preservar a segurança das rotas marítimas – é algo que se encaixa bem na doutrina “contribuição pró-activa para a paz” da sua política externa.

Dois contratorpedeiros japoneses participam na operação Ocean Shield, para combater os piratas ao largo da Somália, na costa oriental africana. “É um interesse comum da NATO e do Japão, e teoricamente é possível alargar a área das patrulhas conjuntas”, sugere Masafumi Ishii.

“Claro que não esperamos que a NATO venha para a Ásia. Mas espero que a Aliança Atlântica e os países europeus continuem interessados em manter a segurança da navegação marítima no Golfo [Pérsico]. Aí nós podemos ajudar, e também no Oceano Índico, na zona ocidental, porque hoje em dia os piratas não se limitam à costa da Somália, movem-se mais para Leste. Nós temos exercícios conjuntos com a Índia e a Austrália, podemos coordenar-nos com a NATO”, adianta.